Volume 1 – Arco 1
Capítulo 19: Apelo ao Duque
Khajilamiv Fortuna, 1340 D.M
— Entrega urgente para o excelentíssimo senhorio da pousada, nobríssimo Khajilamiv! — O carteiro esperou por alguns minutos, então bateu três vezes na porta. Ainda sem resposta, gritou novamente: — Alguém se encontra!?
Prestes a desistir e retornar a carta, a porta se abriu.
— Onde eu assino...
“Por que todos os sonhos bons são cortados na metade?”
O carteiro ofereceu uma caneta e uma prancheta com um papel, para confirmar a entrega, Khajilamiv assinou, então ele fez uma despedida tão desnecessariamente formal quanto seu anúncio de chegada e partiu para sua próxima entrega.
Khajilamiv largou o envelope em uma mesa repleta de livros e papeis relacionados a processos criminais envolvendo heróis e saiu para a cozinha.
Se lesse o conteúdo da carta naquele momento e ela fosse sobre o que ele suspeitava, talvez nem conseguisse tomar o café da manhã. Por isso, primeiro fez tudo que tinha que fazer e só depois de acordar por completo, se sentou e rasgou o selo.
— Isso é sabotagem... Ele só pode estar tramando com algum reino vizinho, tem que ser isso! Como alguém consegue estragar tudo em tão pouco tempo?
Khajilamiv se apressou para seu quarto, se trocou para suas roupas formais, saiu da pousada, acompanhado de dois guardas e correu para o centro da pequena cidade, onde estava morando enquanto o caso do Lucca estava se desenrolando.
— Uma carruagem para a prisão, três pessoas.
— Me desculpe, mas a primeira viagem do dia só parte daqui a uma hora.
— Pago quatro vezes mais que o normal.
— Quinze minutos e já estamos saindo!
— Dez vezes.
— Cinco minutos! Menos que isso é impossível...
— Tudo bem.
As carruagens para a prisão federal já eram estupidamente caras, ao ponto de até os familiares dos presos darem meia volta, mesmo tendo percorrido todo o caminho até um dos vilarejos próximos, só de olharem os preços.
Uma mera viagem de vinte minutos custava o mesmo que atravessar metade do Ducado inteiro. Mesmo assim, Khajilamiv comprava essa passagem diariamente, para visitar Lucca.
E esse não era nem o maior dos esforços que havia feito para ajudá-lo.
Logo que ele foi sentenciado, Khajilamiv enviou uma série de cartas para convencer seu pai a permitir sua visita a prisão. Uma vez que conseguiu a permissão, partiu imediatamente, só com as roupas do corpo e uma pequena mala, para enganar os cavaleiros, dando a aparência que essa só seria uma viagem de ida e volta. Mas quando chegou, correu para o banco mais próximo e sacou uma enorme quantia com a conta especial, que ganhou de aniversário.
Depois de subornar os seus guardas de escolta para inventarem alguma desculpa, ele comprou uma pousada inteira e tudo que precisaria para ficar por algumas semanas ali, incluindo a seção inteira de direito da livraria local, torcendo para que o Barão não voltasse mais cedo da expedição e descobrisse que ele fugiu.
— Pode subir — disse o cocheiro.
Khajilamiv entrou na carruagem sem rodas e cheias de hélices de decoração, colocou um imã na capa dos livros que carregava e os grudou em uma mesa de metal, que se estendia da lateral dos bancos.
— Quando quiser — disse Khajilamiv.
Então tudo começou a tremer e lentamente a carruagem foi se distanciando do chão.
O primeiro motivo do preço: o único caminho para civis comuns chegarem na prisão federal, é pelo ar, em uma máquina auxiliada por quatro pássaros e só possível por uma custosa magia que mantem o peso da carruagem em uma pequena fração do normal.
Isso faz o interior da carruagem se comportar de uma maneira curiosa, pois além da gravidade diminuída, como são pássaros conduzindo e não máquinas, a variação de altura pode dar a sensação de estar de ponta cabeça. Por isso a precaução com os livros.
A carruagem se estabilizou e Khajilamiv voltou a estudar, foleando as páginas freneticamente e fazendo anotações quase ilegíveis, batendo seu pé no chão e mordendo suas unhas inconscientemente.
“Eu posso usar isso? Não, esse caso foi específico demais e aquela lei mudou... Para esse, eu teria que ter a ajuda do imperador?”, o caso do Lucca já seria difícil por si só, mas agora com a adição da nova fuga com agravantes, só a ajuda do herói não seria o suficiente.
Um frio na barriga surgiu de repente, a carruagem voltou a tremer e ela começou a pousar.
— Chegamos.
O cocheiro desceu com um pulo e amarrou a corda que segurava as aves em uma das árvores, então mexeu em um compartimento de bagagens e de lá retirou uma escada.
— Obrigado.
Na mão que ele estendeu para ajudar Khajilamiv a descer, depois do nobre partir, o cocheiro percebeu que ali havia surgido algumas moedas de prata, então se curvou, agradecido pela gorjeta.
As duas escoltas do Khajilamiv pararam na entrada da prisão e cumprimentaram os guardas que guiaram ele em um passo acelerado até um tribunal, onde a sentença de Lucca já estava sendo decidida:
— Declaro que mediante a todos os crimes mencionados, a pena capital deve ser prontamente...
— Esperem! — gritou Khajilamiv. — Como membro legítimo da família Fortuna, invoco meu direito de nascença e apelo que esse caso seja levado diante do atual Grão-Duque!
Essa era sua última carta na manga: uma lei antiga que não tinha registros de ser usada, há pelo menos sessenta anos.
— Como desejar... — O juiz suspirou e corrigiu sua sentença. — Declaro esse caso como suspendido até o banquete, onde o Duque fará a melhor decisão.
Khajilamiv comemorou essa pequena vitória, já que o juiz poderia muito bem negar esse apelo, sem precisar de nenhuma justificativa.
Mas como o Duque atual era conhecido como um dos piores da história em questão de leniência, era possível desse caso terminar com ele simplesmente aceitando a sentença anterior, sem nem ler nada sobre.
“Olho da Fortuna.”
O brilho anormal que Khajilamiv enxergava bem diante de seus olhos, era o suficiente para o motivar a fazer todas essas atitudes arriscadas.
— Khajilamiv! Esse herói que você trouxe para testemunhar é um... — Lucca veio correndo para explicar tudo o que tinha acontecido, desde o início da fuga, até o julgamento.
Tudo soou como um grande ruído de fundo.
Ele só conseguia pensar no tanto de trabalho e no tamanho do castigo que levaria, agora que o caso se tornaria público e no que faria, se sua aposta, que já havia custado três quartos de toda sua poupança, terminasse em um fracasso.
A habilidade hereditária nunca esteve errada, mas os recentes eventos estavam levando essa confiança até o limite.
“Eu só queria dormir em paz...”
Lucca M. Monti
— Fica de olho neles, se cuida!
Depois da minha segunda sentença, fui algemado e levado até a biblioteca, onde passamos por um caminho diferente e chegamos no subterrâneo através de uma rampa, barrada por três portões de ferro consecutivos, cada um com uma cor diferente, guardados por seis chapéus normais.
Chegamos em um longo corredor sem saída, passamos por duas portas de ferro com várias fechaduras e cadeados, e andamos até o final do corredor, onde havia outras duas portas.
Uma delas, à direta, já estava aberta. E depois de ser empurrado para dentro, a porta foi trancada.
“Eles não se decidem mesmo”, nesse ponto, a disparidade entre as atitudes desumanas e os diretos exagerados para os prisioneiros, estava pitoresca.
Aparentemente, para compensar o desgaste mental que é a falta de interação com humanos, a cela da solitária é tremendamente confortável.
A luz artificial, feita a partir do que parece magia, tem dois modos que podem ser trocados na entrada: uma muda de intensidade de acordo com a hora do dia e a outra mantem o brilho fixo em uma das cinco intensidades.
“Se as solitárias fossem assim no Brasil...”
Além desse interruptor cheio de opções, no corredor da entrada tinha uma sapateira com pantufas, sapatos formais, tênis casuais e um pé de pato.
Sim, fiquei encarando o pé de pato, por mais tempo que deveria.
Peguei um par de pantufas e troquei com os meus calçados atuais, extremamente desgastados por conta da fuga.
Saindo da entrada, me deparei com uma sala de estar surreal.
O espaço em si era maior que muitos apartamentos e mesmo assim não havia nenhum lugar totalmente vazio: Havia um sofá direcionado para uma fogueira artificial, quatro poltronas de couro, dois bancos com mesas cheias de materiais para escrita, pintura e estudo, vários relógios de diversos formatos e tamanhos, quatro cenários enormes das quatro estações decorando cada uma das quatro paredes, no chão um carpete cinza e por cima dele, no centro da sala, um tapete branco com um recorte circular, contendo um círculo mágico suspeito.
“Melhor não tocar nisso, por enquanto.”
O teto possuía nuvens artificiais que eram geradas por umidificadores gigantes, ativáveis através de um segundo painel que controlava a temperatura da sala.
As nuvens não se dissipavam até que o aparelho fosse desligado e elas se reuniam em formatos específicos que se repetiam, outra função que se esperaria de uma casa de um artista multimilionário entediado.
“Será que esse foi o caso?”
Aqueles enviados à solitária, geralmente são condenados à prisão perpétua ou pena de morte.
Então é provável que o desespero de ter que passar o resto da vida preso em um lugar, somado a falta do contado humano e a culpa pelos crimes cometidos, tenha levado a maioria a desistir de viver, logo no início de suas sentenças.
Mas como a capacidade destrutiva dos prisioneiros enviados para cá, é grande demais para deixar a punição da solitária como temporária, então os responsáveis pela prisão tentaram remediar isso com um ambiente luxuoso, o que deve ter se repetido diversas vezes, até chegar nesse ponto extravagante.
Indo mais além, faria sentido se eles atendessem algum dos pedidos dos prisioneiros daqui e no caso dessa sala, o anterior pode ter sido um artista.
Por mais que a força bruta dos prisioneiros daqui seja incomparável com os da Terra, a resistência mental ainda deve ser parecida. Então não importa o lugar, viver assim sempre vai ser um inferno, até mesmo com todos os seus móveis dos sonhos.
Felizmente, minha sentença ainda não é nenhuma das duas, meu julgamento é daqui a algumas semanas e meus únicos resultados possíveis são a morte ou a liberdade completa.
Então tirando todos os agravantes, mentais e emocionais, já que não sou culpado de nenhum dos crimes que me acusaram, isso é praticamente ficar de bobeira em um hotel de luxo.
— Mas eles podiam maneirar nesse perfume...
Me levantei do sofá, olhei para os três caminhos possíveis e comecei explorando o da frente.
Atravessando um corredor com um closet vazio no caminho, cheguei em um quarto enorme com uma cama de casal, acompanhada de um abajur, um teto cheio de estrelas que brilham no escuro, mais uma estante com livros e paredes de vidro com uma bela vista a um aquário protegido por um sistema de segurança.
Dentro do quarto havia uma porta que se ligava com o corredor da direita, na sala de estar, passando por um banheiro, chuveiro, uma enorme banheira, que mais parecia uma piscina, e uma sauna com uma temperatura ridiculamente alta.
“Noventa e cinco?”, podia ser a medida dos Estados Unidos ou alguma desse mundo.
Em ambos os casos, não sabia converter na mão e nem sou louco para testar por conta própria.
No último caminho que faltava, me deparei com uma sala contendo uma tuba em formato de flor, acoplada em um tocador de discos. Junto dela, havia uma seleção ampla de álbuns, mas todas eram músicas clássicas.
Do lado dessa sala, as outras três portas levavam para salas cheias de livros e assim concluí meu tour pela minha casa provisória.
— A comida ainda continua horrível.
Depois de almoçar, me deitei no sofá, fiquei apreciando as nuvens de mentira e comecei a digerir o banquete de informações, da fuga de ontem.
“Os prisioneiros da solitária foram soltos pelo Saturno e Vibogo. E depois de soltos, incitaram revoltas, que escalaram até o ponto que foi necessário chamar o general.
O tempo que Saturno levou para caçar, foi para reunir os vinte prisioneiros?
Havia mais fujões, que saíram do grupo.
Existe uma construção que trata a água do rio e provavelmente consegue manipular o fluxo, causando aquela onda gigante.
O objetivo era roubar o artefato do general ou libertar os prisioneiros?
Fundador da guilda Lance...
O Saturno se jogou na solitária propositalmente ou foi uma falha que atrasou o objetivo?
O grão-mestre cooperou com a nossa fuga. A barreira que ele se deparou, era o Vibogo? Mas sua surpresa parecia genuína...
Os lobisomens despareceram sem deixar rastros.
Quem estava nos seguindo?
Ele incitou a vingança do Brutamonte, para servir de justificativa para me convencer a fugir?
Os quatro fujões conheciam as histórias uns dos outros, eles cooperaram?
Argh, ainda falta mais alguma coisa, nada parece se conectar!”
...
Lentamente, um sentimento terrível começou a invadir minha mente.
— Quanto tempo passou? — olhei para a portinha e o balcão de onde vinham as refeições e lá estava a janta e o almoço, com a exata mesma aparência nojenta.
Mais de um dia?
Me levantei, tentei ler alguns livros da biblioteca, nadar na banheira, praticar magia...
“Mas se eu não lidar com isso agora, só vai piorar.”
A morte deixa um sentimento inesquecível, inevitável e doloroso de uma forma estranha, principalmente quando vem de forma tão trágica.
— Nunca mais vou encontrar ele. Isso é óbvio demais para ser tão excruciante.
— Você nem o conheceu por tanto tempo assim, para sentir desse jeito.
— Sentimentos ignoram a racionalidade...
Como não senti nada no instante em que aconteceu, pensei que lidaria bem com o luto, mas todo esse sentimento guardado voltou com tudo.
— Os instintos de sobrevivência prevalecem acima de quase todas as coisas, mas uma vez que o perigo passou...
“Como deveria me sentir agora?”
Antes de morrer, ele me deixou um pedido bobo, até podia ser só uma brincadeira, mas vou levar isso a sério.
— Destruir a reputação do Saturno? Não soa tão bem quanto imaginava.
— Está tudo bem, ele não iria querer isso.
— Quem orquestrou esse plano terrível nem era ele. Estou agindo irracionalmente?
— Mas eu tenho que... Fazer alguma coisa.
— Que tal deixar isso passar naturalmente?
— Não, uma parte de mim vai ser destruída se eu agir assim.
— Devo chorar, então?
— De novo, não era tão próximo dele. Me vingar faz mais sentido.
— Mas isso me prejudicaria demais.
— Quer me apagar?
— Nesse mundo, não preciso de você.
— Tem certeza? As pessoas têm em mente um herói ideal. Se não agir de acordo, vai ser jogado fora.
— Realmente não tem outra forma?
— Posso esperar por um tempo e me tornar esse herói ideal, alguém que lida com isso, como sacrifícios nobres para o bem maior. Já fiz isso tantas vezes.
— E nesse meio tempo? Já estou começando a errar mais vezes que o normal. Oito em um mês!
— Existe uma enorme justificativa para isso. Só de começar a se sentir mal por ele, já é um bom sinal de que está melhorando.
— Você disse exatamente isso, quando me deixou totalmente sozinho, naquela ilha.
Nunca pensei que sentiria falta daquelas consolações sem substância alguma, por pessoas que nem conhecia direito.
Nunca pensei que sentiria a necessidade de um funeral.
A dúvida irracional, que fica ao existir a mínima chance de o improvável acontecer, é cruel.
“Isso deve servir por enquanto.”
— Qual que era o nome daquela escola que o Brutamonte foi expulso...
Em uma das salas, escondidas entre os corredores confusos, havia uma placa de metal parafusada na parede, escrita: “nível de acesso 2”, em quatro línguas. E quando fui dar uma folheada nos livros dessa sala, percebi que todas eram sobre magia ou artes marciais, organizadas em ordem alfabética, desde o básico até o avançado.
— Cem passos... Cimitarras... Dardos... Dez... Fundamentos da escola das dez barreiras!
Em um livro de história dos heróis mais recentes, descobri que durante a época chamada de segunda retomada, onde os primeiros de outro mundo começaram a surgir, os países em que eles mais ajudaram, começaram a adotar o idioma natal deles, como segundo idioma oficial.
Por causa disso, no painel de organização dos livros, havia quatro línguas: o idioma nativo de Kalogakathia, um que não consegui identificar, inglês: a língua do herói que salvou esse continente e português: o idioma da santa Luchiena, da habilidade que quase me matou na ilha.
“Será que, na ilha, o sistema ativou a habilidade da Santa, por afinidade de país?”
[Não]
Quando me aproximei do painel e movi a alavanca de trocar de idioma, a estante mergulhou no chão e outra tomou seu lugar, pelo mesmo vão.
Entre as técnicas da escola das dez barreiras, uma das únicas que não dependia em nada de mana, era chamada de: “Treino físico, modulo 3. Usando aumento de regeneração para recuperar lesões e efetivamente fazer um mês de progresso em treinos, em um dia.”
Pela minha experiência de leitura, cogitei desistir de tentar aprender, pois roubar a técnica de uma escola renomada, sem permissão, poderia resultar em grandes problemas no futuro. Mas na capa dos livros traduzidos para português, havia uma grande estampa escrita “não confidencial”.
Fui até a sala e comecei a repetir os passos descritos no livro.
— Passo 1: treine até destruir todos os seus músculos.
Considerei como modo de falar e fiz alguns exercícios básicos: flexões, abdominais, agachamentos e polichinelos, até me esgotar totalmente.
— Passo 2: encoste na pedra elemental, na contracapa do livro.
[Habilidade adquirida: regeneração básica]
— Passe 3: use a habilidade adquirida, cem vezes.
Como ela não consumia mana, consegui usá-la sem problemas.
“Cem é demais... Vou testar dez.”
Meu cansaço se foi e meu corpo estava melhor que nunca.
— Passo 4: Repita os processos anteriores.
Depois de repetir esse treino por duas horas, os resultados eram perceptíveis. Agora eu conseguia fazer dez vezes mais repetições, em todos os exercícios e os móveis se tornaram mais fáceis de se levantar.
“Como que o Brutamonte precisou de bomba, tendo acesso a uma habilidade roubada dessas?”
[Regeneração básica, nível 10 > 9]
— Diminuiu?
[Penalidades liberadas]
Meu estômago começou a doer, minha boca começou a salivar muito e o mundo começou a girar.
— Que... Fome.
Meus músculos começaram a serem arrebentados, minha gordura desapareceu e era como se meus ossos estivessem sendo raspados por uma lixa.
Engatinhei até o balcão e bati nele, derrubando e estilhaçando os dois pratos.
Meu corpo se moveu sozinho, lambendo até a última molécula daquela pasta marrom, pouco se importando se estava me cortando com os pedaços afiados de vidro.
A comida acabou e eu ainda estava me sentindo como se não tivesse comido nada em dias.
— C-comida... Por favor!
— O que? — Um guarda levantou a portinha e me viu agonizando de dor. — De novo não... Chamem o médico!
Desesperadamente procurei por qualquer coisa comestível, até que, sem perceber, passei por cima do círculo, no centro da sala.
Tudo se acalmou e retomei meus sentidos.
Cuspi e vomitei o amontoado de tranqueira que tentei comer, mas ainda não tinha forças para me levantar.
Conforme a dor foi passando, comecei a perceber que, mesmo com os olhos abertos, não estava enxergando nada e mesmo estando deitado no chão, não sentia que estava encostando em nada.
Em um breu completo, normalmente me desesperaria, mas havia alguma coisa externa me mantendo calmo.
Respirei fundo e senti uma coisa bem sutil, mas que na ausência de todas as distrações, se destacou.
Comecei a notar esse material em diversos lugares: na minha respiração, parecia ar, mas não cheirava como ar, dentro do meu corpo, circulava como sangue, mas não tinha a propriedade líquida, e na minha pele, pinicava quando se chocava entre si, mas não doía como sólido.
Pela falta de familiaridade, só podia descrever como os três, mas era algo diferente, era como um quarto dos estados físicos.
Depois de me acostumar com essa sensação nova, logo senti que o caminho da circulação estava andando para o lugar errado.
É natural que o sangue seja bombeado do coração até as extremidades do corpo, para retornar depois, mas tudo estava sendo levado ao coração, onde se dissipava e sumia completamente.
O afogamento de mana, agora não era uma explicação óbvia, porque se estivesse quebrado por sobrecarregar, ele vazaria para fora do corpo, não desapareceria.
Ao invés de um copo que recebe água além da sua capacidade, está mais para um buraco negro. Definitivamente, esse problema é artificial.
Mas se a gravidade aumentou, minhas esperanças de que seja solucionável, também.
Uma sonolência começou a embaçar a sensação da mana e minha consciência começou a apagar.
...
Naquela hora, o médico havia chegado e aplicado uma anestesia geral. Felizmente, o tratamento não foi nada surreal e os efeitos colaterais foram poucos.
Só vou ter que ficar tomando um soro especial e depois, comer mais que o normal, o pagamento pela habilidade.
“Melhor guardar para emergências...”
Após esse incidente, decidi selar essa habilidade, perigosa demais para ser usada na prática e cara demais para usar em treino, pelo menos por enquanto, nesse lugar onde a comida é escassa.
Apesar da perda, acabei aprendendo três boas lições dessa situação: descobri mais do meu problema de mana, aprendi que habilidades obtidas em livros são desgastadas conforme o uso e...
Acabei na mesma sala que o Corvo!
Não é bem uma lição, mas veio junto do mesmo pacote que os outros dois aprendizados.
Ele ainda estava meio emburrado, por causa daquela discussão, então desde que acordei, não trocamos nem uma palavra.
Independentemente, é bom saber que ele saiu ileso da revolta.
— Vou sair da prisão em alguns dias... — Ele permaneceu em silêncio.
No fim, conheci tanto sobre todos, para não saber direito de nada.
O Vibogo era uma figura famosa, se disfarçando para roubar o artefato de um general e antepassado distante da família que adotou a Selena... De pelo menos duzentos anos de idade?
Repetindo isso, parece ainda mais absurdo, será que foi uma mentira?
Sendo um elfo, até faria sentido, mas como humano, só se grão-mestres conseguirem usar técnicas de prolongamento de vida ou habilidades específicas para isso.
E ainda nem confirmei se elfos existem nesse mundo.
O culpado pelo crime, que assombrou o Brutamonte até o final da vida dele, ainda está perambulando por aí, em algum lugar dessa prisão.
O Poeta pegou prisão perpétua, por ofender um político e só se envolveu no meio de tudo isso, por acaso, o que por si só é bastante suspeito, visto as leis e juízes consideravelmente razoáveis de Fortuna.
Talvez o motivo da prisão seja outro, que ele não quer contar?
O Corvo supostamente tem a mesma doença fatal que o criminoso que destruiu a vida do Brutamonte, mas não é o criminoso, por ser totalmente humano... Além de estar envolvido com algum esquema do laboratório.
Atualmente, esse é o único que posso investigar.
— O Brutamonte morreu. — Fui direto ao ponto, para chamar sua atenção.
Ele virou a cabeça rapidamente, levantou seu corpo e me encarou com uma expressão assustada.
— Ele... morreu? — E se deitou novamente. — Como?
— O gene-
Parando para pensar, ainda não cheguei a uma conclusão definitiva sobre quem teria cometido o assassinato.
Até agora, por ele ter cooperado comigo, achei improvável que o Aguilar abriria brecha para eu sobreviver, após impiedosamente atirar um golpe imparável no escuro, sem saber quem era.
Ele se simpatizava com os heróis, por isso agia assim, mas isso não se aplicava aos fujões.
Seu lançamento foi claramente diferente, mas a lança era dele.
Ou será que não era?
Assim como o general, ele sempre rondou pela prisão com uma espada, não lança.
A ajuda dele foi sincera? Ou era só fingimento?
— O Poeta também foi pego, mas não sei exatamente o que aconteceu com nenhum dos dois — optei por uma resposta vaga.
— Vi ele esses dias, já está cantando como de costume.
Fui pego de surpresa pela reação fria do Corvo, mas ele só estava se fazendo forte na minha frente. Pouco depois, ele começou a fungar o nariz e desabou nas lágrimas.
Pensei em confortá-lo, mas deixei ele ter seu momento sozinho.
...
Assim que se recompôs e nossa conversa começou a fluir como antes, comecei com meus questionamentos:
— Eu acredito que quem criou os rumores distorceu muitas coisas, mas consegue se explicar a respeito da sua doença e do encontro com a princesa?
— Eles mentiram sobre tudo, simples assim.
— Qual a sua evidência? Está defendendo acusações com mais acusações.
— Para ser mais convincente, vou confessar algo que realmente fiz. Eu sou o responsável por todos os fracassos anteriores, eu sabotava e avisava os guardas antecipadamente, em troca deles deixarem as encomendas da minha família passarem.
— Incluindo aquelas seringas de amplificação de força?
— Não sei ao certo o que pediram, mas posso te garantir que minha família nunca enviaria algo tão perigoso para mim.
— Nesse ritmo, vou ficar maluco, parece que sou o único que não consigo acompanhar o que está acontecendo... — Decidi tentar baixar a guarda dele, para ver se conseguiria pegar alguma frase incriminadora em um momento desatento, junto de um pedido genuíno. — Pode me ensinar a mentir?
O Corvo deu uma boa risada:
— Por que está me pedindo como se fosse um super poder?
— Estou falando sério, ao menos me ensine como descobrir o que posso tomar como certeza. Talvez assim, eu consiga acreditar mais em você.
— Você nasce mentindo e é ensinado a dizer a verdade. Mentir é um possível ganho momentâneo, seguido de um grande risco futuro. Quem consegue mentir muito bem e sai impune nas primeiras vezes, vive uma vida miserável. O que permitiu os humanos a se destacarem de todos os outros animais é a capacidade de pensar no futuro. Toda verdade vale mais a pena a longo prazo, seus pais não te ensinaram isso?
— É realmente só isso?
— Não existe nenhum truque milagroso para mentir. A sociedade não funcionaria se todos fossem desconfiados uns dos outros. A maioria acredita em qualquer mentira, porque são bons e esperam que você também seja. Uma vez que você quebra essa confiança, quem se prejudica é você.
— Que moral de história bonita... Te pagaram quanto para dizer isso?
— Sei que essas palavras podem soar estranhas, vindo de mim, mas esse resultado de agora é a prova disso: minha mentira para encobrir o que seria só um pouco prejudicial, quase custou minha vida e agora, de bônus, tenho a fama de ter cometido um crime hediondo, que nunca fiz.
— Mas e sua doença?
— Juro que vou processar o jornal que começou com esse rumor... Eu fui apenas acusado de roubo e sentenciado por um tempo, só para preservar a reputação do Duque. Se quer uma prova de que estou falando a verdade, é só esperar mais umas semanas, que serei solto.
— E quem garante que você não é só um nobre corrupto, que está abusando de suas conexões?
— Se depois de toda minha explicação, ainda não acredita em mim, nem sei mais o que dizer.
— Te falei antes, me ensine a mentir. Fiquei ainda mais curioso depois de você confessar que era o sabotador. Nunca me passou, nem em pensamento, a suspeita que poderia ser você.
Vencido pela insistência, relutantemente, ele começou sua explicação:
— Há uma maneira de se mentir com maestria e pelo máximo de tempo possível, de acordo com minhas conclusões anteriores: abandone sua dignidade como ser humano e pense, viva e aja como um animal. Isso vai além de acreditar nas próprias mentiras, é apagar o próprio conceito entre bem e mau, certo e errado, mentira e verdade. Como não estará explorando a bondade das pessoas, a perda de confiança será menor. E sua imprevisibilidade será tão alta, que nem sobre tortura alguém conseguirá tirar alguma informação útil de você. — Ouvindo minha confirmação verbal de que acreditava nele, percebi um alívio genuíno no Corvo, que acrescentou: — Mas nunca conheci alguém que possuísse o potencial de voluntariamente se degradar em um processo tão miserável, para se aproveitar totalmente de minhas descobertas. Eu mesmo, no auge da minha canalhice, passei longe do mentiroso ideal.
Dessa explicação, uma realização, súbita e devastadora percorreu pela minha alma. Através dessa conversa desconexa, senti que cheguei mais perto de descobrir as motivações daquele homem.
— Devo dizer que esse método é apenas uma teoria minha, feita a partir de um pensamento bobo: Tomando como referência o homem mais digno, mais honesto e mais confiável, criei uma pessoa falsa que materializaria o completo oposto de tudo, afim de encontrar a mentira perfeita. Mas um método completamente diferente é necessário, caso você queira que os outros acreditem em uma única mentira sua, mas por toda vida deles.
— No fundo, todos vocês eram pessoas academicamente avançadas, atuando como idiotas, por diversão?
— É o espírito desse lugar se infiltrando em nossos corpos. Desde nossos nomes, até nossos passados, a única maneira de proteger completamente é mentindo regularmente. Talvez isso comprove um pouco da minha pesquisa...
Usando a história da Terra como referência, era óbvio que esse lugar estaria cheio de pessoas inteligentes.
O que possibilitou o nascimento de tantos gênios e o avanço de milênios em décadas, foi a comida.
Quando os humanos não precisam mais dedicar todos seus esforços em alimento para própria sobrevivência, mesmo sem precisar ser exposto a uma pilha de livros, uma série de pessoas começarão a dedicar seu tempo em necessidades do topo da pirâmide de Maslow.
“Inconscientemente, todos nos tornamos mais animalescos...”
Com isso, surgiu a resposta do dilema do grão-mestre.
— Não importa o quão bom ele seja... Assim como a posição de prisioneiro degenerou os fujões, a autoridade e obrigação como perpetuador de uma tarefa violenta, o tornou perverso, possivelmente, contra sua vontade?
Aplicando isso a mim mesmo, me veio à mente um futuro assustador.
Serei eventualmente consumido pelo papel de herói?
O meu personagem ideal poderia me matar.
...
— Parando para pensar, será que toda essa conversa foi inútil?
— Por que?
— Por melhor que seja o mentiroso, com uma magia da verdade, tudo isso que discutimos, cai por terra.
— Não existe magia da verdade, é apenas uma piada interna dos compilados de magias, para enganar as crianças. Se fosse fácil assim, para que existiria a sala de tortura?
— Verdade...
Naquele dia, caí em uma mentira do Khajilamiv?
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