Volume 1 – Arco 1
Capítulo 5: Procurando culpado
Dessa vez o sino tocou três vezes da forma tradicional.
— O que significa isso agora? — perguntei.
— Que acabou o almoço e que estamos ferrados — disse o Corvo.
— Traduzindo, é a hora da contagem de prisioneiros — disse o Poeta. — Fazemos isso nos dormitórios e infelizmente, você está em um diferente do nosso, então não vamos poder te guiar até lá.
Como que eles sabem que são de um dormitório diferente se nem eu sei o meu? É por ordem de chegada ou força?...
— O guarda! Pode levar esse novato aqui para o prédio dele? — gritou Vibogo.
Assim como os outros, ele vestia roupas militares, uma rapieira, um chapéu longo como dos guardas reais ingleses, um sapato com uma sola alta, uma tatuagem temporária em seu pescoço e o que pareciam piercings furando a ponta da palma de sua mão. Sua pele estava levemente avermelhada como se estivesse queimado, mas ele não se incomodava com isso.
Sua expressão, diferente dos outros, era muito mais séria, não assustadora, mas como um médico experiente, ele parecia um trabalhador sobrecarregado, confiável pelos visíveis anos de experiência.
— Qual o número do seu dormitório? — perguntou o guarda.
— Não sei.
— Me siga.
Ele começou a andar em direção a um complexo de prédios, eu virei minha cabeça para me despedir, mas eles haviam desaparecido.
Estava claro que eles me usaram para despistar o guarda e tentar fugir.
Bom, não é da minha conta, tenho mais coisas para me preocupar, como os meus futuros companheiros de cela.
Pelo que vi até agora, não me surpreenderia se eu tivesse minha própria suíte particular com uma cama tamanho King, uma TV de tela plana e serviço de quarto. Mas é bom estar preparado para tudo isso ter sido fachada e o lugar onde vou passar boa parte do meu tempo aqui seja uma cela pequena com duas beliches de ferro para dez prisioneiros e um buraco no chão cheio de ratos e baratas.
— Não é ali que ficam as celas? — perguntei.
— Era, mas tenho que fazer seu registro primeiro. — Para mim, ele falava no nível certo de frieza. Os outros prisioneiros tinham uma relação desconfortavelmente próxima com os outros guardas, mas também um que abusa de seu poder não é bom. Esse era o nível certo.
Pode ser que isso mude no futuro, mas eu espero que não.
Caminhamos por mais um tempo até chegar em uma construção que parecia um cartório antigo. O guarda conversou com o único homem que trabalhava lá, ele mexeu em alguns papeis, procurou pastas e entregou um cristal rosado que tinha uma agulha em seu topo.
— Coloque seu dedo na agulha — disse o funcionário.
Eu furei meu dedo na agulha, o sangue escorreu até tocar no cristal que revelou diversas palavras na língua desse mundo.
— Você pode ir — disse o guarda.
— Não tenho que fazer a contagem? — perguntei.
— De novo?
— Então essa foi a contagem... Posso ir ver a minha cela?
O guarda conversou com o funcionário, que mexeu em mais pastas, abriu uma gaveta trancada e entregou um cartão.
— Essa é a chave da sua cela, não perca — disse o guarda, de uma forma que me lembrou dos recepcionistas de hotel. — Você está no dormitório de número oito.
Tudo nessa prisão está estranhamente bom, e é exatamente nesses momentos que tudo começa a desandar. Redobrei minha atenção e comecei a olhar mais atentamente para meus arredores, para ver se encontrava algo de errado.
— Encoste isso na tinta do vidro que a porta vai se abrir, o número da sua cela está escrito no cartão. Quando decidir o setor que quiser trabalhar, o supervisor daquela área vai te ensinar como usar a função de transação monetária — completou o guarda.
— Obrigado.
E fui para o prédio oito, analisando o cartão que me entregaram.
Eu esperava que o material do cartão chave fosse como o plástico, mas estava mais para o ferro. O cartão era branco e o número que estava escrito em preto era oitocentos e trinta e dois, o que interpretei como dormitório oito, andar três e cela dois.
Fiquei com a tal da transação monetária presa na minha cabeça. Esse mundo usa cartões de crédito? Esse lugar parece extremamente avançado em algumas áreas, mas totalmente retrógrado em outras.
Uma das teorias que pensei para isso ter acontecido é que os heróis que vieram para cá da Terra tentaram replicar nossa tecnologia aqui, mas não conseguiram quando as máquinas eram complexas demais, por serem pessoas comuns e não especialistas na área. Mas então me lembrei de quando vi o que parecia um foguete voando no céu, quando cheguei nesse mundo e já não tinha mais certeza de nada.
Em algumas partes eles conseguem até superar a nós da Terra, então é totalmente possível que eles descobriram tudo isso por conta própria. Mais uma dúvida para eu estudar enquanto estiver aqui.
— Com licença, acabei de chegar aqui, o 832 escrito aqui significa andar três, cela dois? — perguntei para outro guarda próximo.
— Exatamente.
— Muito obrigado.
Finalmente estava em frente ao dormitório oito.
Nos dois grandes portões, bem menores que os da entrada, mas ainda consideravelmente altos, também feitos de metal maciço, estava gravado os horários em que os portões se abriam e fechavam.
— Sete até sete... Acho que é quando está aberto. Oito até seis, quando fechado. — Os números tinham pequenas alterações, mas eram muito parecidos com os indo-arábicos, como na Terra. Mas ainda não tinha ideia do que as palavras significavam.
Será que dá problema se eu entrar e não for o horário certo?
Mesmo que o Sol daqui funcione da mesma maneira que na Terra, não tem como eu me guiar por ele. Por enquanto é impossível saber se eu estou mais perto das extremidades ou do centro do planeta, se o dia dura mais ou menos. Pelo menos consegui confirmar que o sistema de tempo daqui é como na Terra, com os dias divididos em vinte e quatro horas, a partir dos vários relógios que fiquei encarando por minutos.
Depois de todas essas considerações, decidi tomar o risco e entrar.
Eu esperava que todos estivessem aqui para fazer a contagem, mas o lugar estava desértico.
— Será que eu confundi os horários? — Decidi continuar mesmo assim.
Andei pelos corredores vazios até encontrar uma escada, que usei para subir até o terceiro andar.
Bem perto da escada, estava lá a cela de número 832.
Uma coisa que havia notado enquanto andava até aqui era que todas as celas não tinham grades de ferro, mas sim painéis de vidro opacos, um vidro fino, mas resistente, marcado com um desenho enorme em tinta preta que parecia um grafite com a logo que os guardas carregavam em seu peito, provavelmente o brasão da família Fortuna.
Encostei o cartão nesse brasão e o vidro magicamente se tornou transparente.
— Se isso for como a porta do quarto do Khajilamiv... — Encostei novamente o cartão no vidro e uma abertura em formato retangular surgiu.
O quarto ficava no meio termo do que eu estava imaginando.
As camas e o travesseiro pareciam descentes, mas o banheiro tinha um formato estranho. A cela era realmente individual, um cubículo da metade do tamanho das celas que já vi quando fui em uma excursão escolar a prisão. Obviamente não havia uma TV, mas tinha uma estante com alguns livros desgastados.
— Agora como eu fecho isso? — Saí para procurar algum tipo de botão, e o vidro surgiu automaticamente na aparência de quando estava opaco, me dando um leve susto pelo alto barulho elétrico.
Eu até queria ter uma visão da prisão completa de um lugar mais alto, mas não havia janelas e o último andar precisava de uma permissão especial para entrar, então desci as escadas e fui procurar os prisioneiros que tinham me usado para tentar fugir.
Perguntei para outros prisioneiros sobre eles e recebi até alguns xingamentos de tabela por causa disso, procurei nos lugares que já havia visto antes e não encontrei nada, então tive que ir para os lugares que não conhecia.
— Será que eles tiveram sucesso?
Passei por uma construção cheia de estantes com jogos de tabuleiros, de onde os que jogavam no parque pegavam emprestados e cheguei em uma grande piscina olímpica, muito tumultuada.
A maior parte ficava boiando tranquilamente na água, mas uma minoria nadava furiosamente, disputando uns contra os outros.
— Com licença, algum de vocês viu o grupo dos fujões? — perguntei.
— Eles usaram até o herói para tentar fugir? — Ele riu. — Esqueça eles, qual dormitório você está?
— Oito — respondi.
— Um herói no dormitório oito? Eles devem ter avaliado errado... Acho que não conheço ninguém de lá. Mas pode me chamar se precisar de ajuda!
Realmente havia um critério para ordem das celas. Pelo jeito que ele falou, eu devo ser fisicamente fraco para os padrões desse mundo, ou é culpa “daquilo”, o que faria mais sentido.
— Obrigado.
Passando pela piscina, eu cheguei em uma das três grandes quadras.
Essa quadra estava dividida em oito retângulos, cada um com dois prisioneiros — ou em raras exceções um ou dois guardas — que jogavam esportes de rede. Alguns eu reconheci, como tênis, peteca e vôlei de praia.
Mas outros eu não fazia ideia, como um que eles usavam magia para fazer como se fosse uma queimada, mas com algumas regras que eu não entendi e um esporte de chute com uma rede baixa que pontuava quem fazia... Alguma coisa?
— Fujões? Não vi eles não. — Finalmente uma resposta normal.
Nas outras quadras eu vi o que parecia uma simulação de guerra e outros esportes. Como o resultado foi o mesmo, então eu entrei no primeiro salão fechado, que ficava do lado das quadras.
— Aqueles insetos sub-humanos? Queria ter visto, mas é impossível eles passarem por aqui a essa hora.
Naquele lugar havia alguns prisioneiros praticando tiro ao alvo com um arco e flechas de ponta de pano. Não vi nenhuma arma de fogo, mas é totalmente possível que elas existam aqui, já que ninguém é doido o suficiente de entregar elas nas mãos de sentenciados por crimes, nem nesse lugar com tantos privilégios.
No outro salão fechado tinha mais prisioneiros, que treinavam em grupos de quatro contra um Golem de barro em formato de monstro.
— Herói! Tem alguma coisa que posso te ajudar?
— Sobre os grupos dos fujões...
— Vá embora.
Sai desanimado, mas continuei minha busca.
Andando bastante, cheguei a uma biblioteca que se destacava bastante do resto da prisão por suas cores pasteis, do tamanho da biblioteca estadual da minha cidade. Nela havia uma placa escrita “nível de acesso 1”.
Não consegui investigar o interior direito, porque quando eu perguntei para o bibliotecário sobre os fujões, o sino tocou novamente.
— O que esse toque significa? — perguntei.
— É o jantar.
— Tão cedo?
— Melhor você ir logo, porque é longe daqui.
— Tudo bem, obrigado pela ajuda. Voltarei mais tarde.
“Onde que era... Onde que era...”
Tive um pouco de dificuldade de me localizar, mas acabei encontrando uma placa com um mapa enorme, no centro da prisão.
Vendo ele, eu percebi que estava indo na direção contrária ao refeitório.
Instantaneamente comecei a correr para lá. Não porque estava faminto, mas porque se eles não conseguiram fugir, lá seria o lugar perfeito para encontrá-los.
Cheguei mais rápido que esperava, graças a rua principal, que tinha uma função que funcionava como se eu estivesse patinando no gelo.
— Alinhem-se! — Logo quando cheguei, me deparei com um guarda especial, que identifiquei por seu chapéu felpudo e dourado, várias medalhas de condecorações em seu peito e suas roupas, que pareciam luxuosas demais para um guarda, dando um discurso irritado. — Um de vocês tentou cometer assassinato. Dou um minuto para se revelar agora e ter uma punição leve, ou te desafio a tentar se esconder de mim, pelo custo de ser morto.
— O que você estava fazendo? Aquela pista é só para os guardas! — Do meio da multidão, Vibogo apareceu. — Ainda bem que ninguém te viu...
— Não sou rancoroso, mas isso não significa que sou otário. Faça isso de novo e eu pulo fora — então perguntei: — É culpa de vocês isso aí?
— Estamos relacionados, mas não se preocupe, não somos os acusados. Para te explicar, vou ter que admitir que tentamos fugir sem você, mas falhamos mais miseravelmente que antes. Não me olhe com essa cara feia! Tem um motivo para eu ter concordado com isso. Essa foi uma fuga falsa, onde eu deixei preparado uma armadilha com antecedência. Ela funcionou! Agora tenho certeza, tem alguém aqui dentre os prisioneiros sabotando nossas fugas — respondeu Vibogo.
— Trinta segundos! — gritou o guarda.
— Então esse alguém tentou matar vocês? — perguntei.
— Não, o sabotador provavelmente é só um guarda disfarçado. Quem ele está tentando encontrar foi algo que descobrimos sem querer. Enquanto fugíamos dos guardas pelo teto dos dormitórios, eu vi um pedaço de concreto bloqueando a saída de ar de alguém.
— Vinte segundos!
— Como que isso iria matar alguém?
— No inverno, eles fecham todas as outras saídas de ar e deixam uma pedra elemental aquecendo o quarto. Com a única ventilação bloqueada e o vidro fechado, a pessoa morreria sufocada.
— Dez segundos!
— Entendi. Mas o que é uma pedra elemental? — Mesmo em jogos de rpg da mesma franquia, já vi elas terem muitas funções diferentes.
— Olha lá.
Ao terminar a contagem, o guarda tapou um de seus olhos com uma de suas mãos, então mordeu o dedão e tirou um cristal do bolso, o apertando como se estivesse carimbando um documento.
Ele tirou sua mão e abriu seu olho esquerdo, fez um gesto como se segurasse o ar e quebrou o cristal.
Um círculo brilhante enorme surgiu no céu, uma energia verde se espalhou por todo seu corpo e o vento começou a girar em círculos, como se um furacão estivesse sendo formado.
Nesse momento, um dos prisioneiros gritou e saiu correndo para longe. Então o guarda sacou sua espada, o alcançou com facilidade e cortou as duas pernas do prisioneiro, que caiu de cara no chão.
— Tinha uma magia de detecção dentro do cristal? — perguntei.
— Venha mais perto. — Então ele cochichou. — Na verdade isso tudo é só ele metendo o louco, quebrar um cristal mágico barato assim só dá um ventinho e mais nada. Mas o assassino não tinha como saber disso, então saiu correndo.
— Mas e se era só um prisioneiro inocente assustado? — reformulei minha frase ridícula. — E se o culpado pelo assassinato sabia que era uma magia falsa e não se mexesse?
— Então ele mataria alguém aleatório do dormitório dez e colocaria no relatório que cumpriu seu trabalho.
Estranhamente, tudo o que ele falou fazia sentido.
— Você está diferente. Tá falando meio inteligente demais e nem está cuspindo como antes, você de antes era um personagem ou estava chapado?
— Pense o que quiser.
Eu observei o prisioneiro ser arrastado pela camisa, deixando dois rastros de sangue pelo chão, que logo foram limpos por dois faxineiros.
— O Ducado se importa de verdade ou finge se importar com os prisioneiros?
Ou essa brutalidade seria o que mantem esse lugar em ordem? Mas não seria um desperdício ter todas essas medidas só para matar os prisioneiros de qualquer forma? Também existe a possibilidade do Duque verdadeiramente se importar com o bem de seus cidadãos, mas que esse guarda em específico é forte ou necessário suficiente para não ser punido.
É o constante medo da morte que deixa os prisioneiros na linha e os guardas tranquilos? Deixar um guarda tomar o papel de mau. Será proposital ou um inconveniente?
Me surgiu a vontade de discutir pessoalmente com o criador desse sistema estranho, para entender suas intenções. Espero que ele ainda esteja vivo.
Vou ter tempo o suficiente para pensar nessas coisas, então ignorei essas questões por enquanto e fui jantar com o grupo que me largou para trás.
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