Volume 1 – Arco 1
Capítulo 1: Biblioteca dos livros vivos
Lucca M. Monti, ???, ???.
Atravessando a porta de madeira com a chave estranha que roubei, eu me deparei com uma biblioteca tão majestosa e espaçosa que nem parecia real.
Com um olhar, tive certeza de que na Terra inteira não havia livros o suficiente para preencher nem sequer uma prateleira desse lugar: tão altas que alcançariam a Lua, tão largas quanto uma pequena cidade e tão decoradas quanto uma catedral gótica.
Cada centímetro estava perfeitamente limpo, todas as construções e prateleiras eram totalmente brancas e até os livros, com exceção daqueles com um cadeado em sua capa, eram da mesma cor.
Depois de passar um bom tempo admirando esse lugar, olhei para frente e vi algo que não estava quando cheguei:
Seu rosto estava embaçado, ele se sentava em pleno ar, como se estivesse meditando e suas roupas, um manto longo, quatro vezes maior que seu corpo, chegando a tocar ao chão, continha milhares de estrelas, galáxias e nebulosas, se movendo lentamente, orbitando um globo de vidro que parecia completamente preto à primeira vista.
“O bibliotecário?”
— Com licença... Essa chave por acaso é sua? — E ele acenou negativamente.
A medida em que descia, seu manto se encolhia. Após pousar, começou a andar em minha direção.
O encarando com mais atenção e com ele chegando mais perto, consegui ver que a escuridão no globo estava se movendo lentamente. Não era uma cor sólida, mas sim palavras e símbolos o suficiente para escrever um livro inteiro. Círculos, triângulos e muitas outras formas e fórmulas, uma sobrepondo a outra, em uma densidade tão alta que dava a impressão de ser uma cor sólida.
Magia! Essa foi a primeira palavra que me veio à mente quando observei aquilo. Por um momento o meu entusiasmo por tentar entender como aquilo funcionava sobrepôs o meu medo, mas logo um novo sentimento tomou conta.
“Esses símbolos são estranhamente parecidos com aqueles encontrados no incêndio rotulado como um simples acidente de vazamento de gás.”
— Eu sabia! Não era paranoia...
Então aquele homem, que pude identificar como um pela voz, me chamou para mais perto. Pela falta de opções, já que a porta por onde eu entrei desapareceu, eu segui sua ordem.
O ambiente colossal bagunçou totalmente minha visão espacial. Parecia que ele estava perto, mas minha caminhada foi se estendendo cada vez mais.
Cada passo ecoava com uma acústica surpreendente, mesmo tentando abafar o alto som. Comecei a notar que o vento só soprava contra mim, independente para onde me virava.
Quanto mais me atentava, mais esse lugar parecia ter saído de um sonho lúcido.
Logo quando finalmente cheguei perto, ele encostou na minha testa. Meu corpo se enfraqueceu, dezenas de paisagens e pessoas que nunca vi começaram a passar diante dos meus olhos até finalmente se organizarem em uma só cena, então cai.
Região do extremo norte de Jithnaris
“Hoje é o dia! Hoje é o dia!”
Na troca de guardas, no último andar da prisão subterrânea de segurança máxima do império demoníaco, os soldados tiveram uma surpresa. Enquanto faziam os cumprimentos formais, o prisioneiro, que havia permanecido quieto desde sua chegada, abriu a boca pela primeira vez.
— Leve um casaco, hoje vai nevar! — disse uma voz, que vinha do alto da cela mal iluminada.
No breve silêncio que o guarda tomou para pensar no que havia escutado, o som rítmico de gotas caindo, ecoavam sobre o andar colossal em forma de labirinto, cheio de armadilhas, monstros e guardas, tudo preparado para só um prisioneiro.
— Hahaha, ele já ficou maluco? — perguntou outro guarda.
— Louco mesmo seria se ele estivesse bem depois de tudo aquilo — comentou o outro guarda.
Era esperado que o tratassem como louco. O clima, para o império demoníaco, era algo tão certo e imutável, quanto as leis da gravidade. Em toda a vida dos guardas, o calor, capaz de ferver água só de encostar no chão, sempre se manteve o mesmo. As raríssimas chuvas já eram um evento especial, mas neve seria a primeira em milhares de anos.
— Mas... E se ele não estiver brincando? — disse preocupado, um terceiro guarda.
Portanto, uma nova mudança de clima geraria eventos catastróficos no planeta e muito provavelmente o fim de todos os habitantes do extremo norte.
— Olhe para ele... — O guarda pegou uma das tochas penduradas na parede e trouxe para mais perto das grades da cela. — Você acha que o clima que não muda desde a geração dos avós de seus avós, mudaria em um só dia? Só porque ele disse?
O fogo deu uma visão melhor da cela.
Comparado com todo aquele espaço disponível, a cela pequena, parecia minúscula.
O chão estava cheio de musgo, insetos e poeira, cobertos por uma camada de arames farpados embainhados em um líquido roxo, um veneno importado do extremo sul, gerado em pequena quantidade por uma planta carnívora do tamanho de uma casa.
“Basta um pequeno toque na pele, que todo seu corpo fica dormente por horas”
Nas paredes laterais, coloridas pelo sangue que já secou faz tempo: dez círculos mágicos, cinco de cada lado, giravam lentamente, sinal de que estavam em perfeito funcionamento.
Já o teto estava limpo, sem sinal de infiltração, musgo ou sujeira, como nas paredes. Nele havia um grande e solitário círculo mágico que possuía um desenho muito mais complexo que os outros. Estava parado, desativado, e era bom que estivesse, caso contrário, todos os seres vivos desse e do andar de cima, evaporariam em um instante.
— Erm... Ainda não estou conseguindo ver ele.
— Tsc. — O guarda colocou a mão em seu bolso direito, soltou um grunhido ao não encontrar nada, procurou no bolso esquerdo, mas só encontrou o molho de chaves no bolso traseiro.
Então ele entregou a tocha para o outro guarda e começou a testar as chaves na fechadura da cela.
— Não precisa!
O guarda parou e se virou.
— Não precisa, o quê?
— Não precisa abrir a cela... Eu não estou tão curioso assim...
— Você... Nessa idade... Com medinho?
— Não! Não estou! É só que...
— Os rumores nem devem ser verdadeiros! Agora que vou abrir mesmo!
— Droga... E se o círculo ativar?
Clank
Um barulho metálico ecoou, a chave encaixou na fechadura.
— Deixa de paranoia, vamos.
O guarda pegou de volta a tocha, retirou sua espada da cintura e foi se adentrando a medida em que empurrava os arames para o lado.
— Não tem problema empurrar essas armadilhas? E se ele conseguir fugir?
— Impossível isso acontecer.
— Esse homem já fez muitos impossíveis se tornarem verdade... Só de ele ter conseguido chegar aqui já não prova isso?
O guarda medroso ficou encarando a porta, de fora da cela.
— Eu consigo ver bem daqui... — E ele foi puxado para dentro.
— Você deve ter um contato e tanto aqui dentro para conseguir ter entrado no exército.
— Eu entrei por conta própria...
— Sei...
A medida em que avançavam, o som de gotas ficava mais alto.
— Bom, esse é o máximo que a gente pode ir, sem ativar a armadilha, ele está ali em cima.
O guarda levantou a tocha.
— Bu! — sussurrou o prisioneiro ao ter sua face iluminada.
O guarda medroso soltou um grito, cambaleou e teria caído nos arames se não fosse pelo outro guarda.
— Olha só, ele é só um humano comum... Bem ferrado.
— Isso... Isso... Não tem como isso ser um humano!
O prisioneiro estava desnutrido, a ponto de seus ossos se tornarem visíveis. Seu corpo fedia como um cadáver, insetos rastejavam sobre seu rosto, mas ele mantinha fixo um sorriso macabro. O seu corpo, cheio de cicatrizes, novas e antigas, ainda respingava sangue fresco, fazendo com que o ralo, que armazenava esse sangue que pingava, transbordasse.
Ele se sentava de maneira desconfortável sobre um pedaço fino de madeira, colado na parede, a dez metros de distância do chão. Seus braços estavam presos na parede por duas estacas de ferro que perfuravam seus pulsos, e sua perna nem necessitava de algemas, pois acabava em seu joelho. O resto havia se tornado o almoço dos cães imperiais.
Sua face estava completamente desfigurada, pedaços de sua pele apresentavam carne viva, metade de seu rosto havia sido queimado, parte de seu nariz havia sido arrancado, seus dois olhos haviam sido destruídos e um colar de espinho perfurava seu pescoço.
O guarda medroso sentiu seu estomago revirar.
— Realmente... Ele mal está se mantendo vivo, fugir é impossível... Até mesmo para alguém como ele.
— Eu te disse, não tem por que se preocupar, ele está louco.
Os guardas se viraram para ir embora e o prisioneiro disse mais uma frase:
— Obrigado pela ajuda, hahaha!
O olho do prisioneiro brilhou em azul e o círculo mágico superior começou a girar.
— Ajuda?
Um estrondo ensurdecedor causou danos graves em até cinquenta quilômetros de distância, a fumaça ultrapassou a altura das nuvens, matando instantaneamente toda vida que inalou esse gás tóxico e a estrutura inteira colapsou em si, deixando uma fenda do tamanho de cem casas empilhadas.
Todos olhavam para o céu, mas não conseguiam acreditar em seus olhos.
Pela primeira vez, desde a queda do meteoro, há 1352 anos, começou a nevar.
20 HORAS DEPOIS
Todo reino havia sido exterminado, dentro do castelo do imperador, o sempre movimentado salão principal feito para banquetes e reuniões frequentado apenas pela elite da elite agora possuía a elegância de um estábulo, tudo estava destruído e todos os objetos valiosos haviam sido arrancados às pressas.
Todos os empregados fugiram para outro país ou traíram o reino entregando informações cruciais para o inimigo, em troca de refúgio. Nove dos dez generais demoníacos estavam mortos.
Caso contasse para um cidadão comum, há dois meses, que o grande império dos filhos do meteoro seria exterminado em menos de meio ano, nem um sequer acreditaria. Afinal, como a segunda maior economia e maior exército do mundo de Jithnaris cairia?
Ninguém entre os demônios era forte o suficiente para ir sequer contra um dos grandes dez generais, quanto mais o próprio imperador. Já do lado dos humanos, qualquer um que atrevesse atrapalhar o comércio entre as duas raças desapareceria no mesmo dia sem deixar rastros, traído por seu próprio povo ganancioso.
“Seriam os responsáveis por tal catástrofe que dizimou todo o reino demoníaco, os próprios generais demoníacos que se rebelaram, uma grande união de países ou um grupo revolucionário capaz de lidar com a guilda dos comerciantes?”, quando a notícia chegou à capital de Fortuna, nem mesmo aqueles que conheciam os verdadeiros responsáveis por isso acreditavam que eles tinham conseguido tamanha façanha sozinho.
Sentado no trono do chamado de “incomparável imperador dos imperadores”, estava o tão conhecido líder desse grupo, responsável por tudo isso.
— Acho que julguei mal esse rei demônio... Ele tem um ótimo gosto para cadeiras.
— Fica parado! — gritou o chamado de “herói da paz”, que desenhava o líder do grupo.
Aborrecido de ter que ficar parado como uma estátua para a produção do panfleto que seria distribuído por todo o mundo declarando que o “último inimigo da humanidade” havia caído, o líder chamado de “herói dos heróis” ou “grande herói” resolveu voltar a um passatempo antigo: avaliar minuciosamente os tronos dos reis derrotados.
Alguns eram terrivelmente desconfortáveis, feitos de ossos, ferro ou até monstros empalhados, enquanto outros eram mais razoáveis, feitos de madeira com detalhes em ouro.
Mas nenhum se comparava ao trono em que se sentava no presente.
A base era feita da madeira de mais alta qualidade, e seus enfeites eram ainda mais impressionantes, como o símbolo da família do imperador, que ia da cabeceira até o teto, todo feito de ouro, decorado com diamantes, esmeraldas e outras pedras únicas da região, e garras que saiam de trás do trono, engolindo todo salão, esculpidas a partir de um único cristal branco colossal.
Mas não era apenas na aparência que esse trono se destacava de todo resto. Seu nível de conforto era sem igual, um couro de altíssima raridade cobria a madeira e sobre o couro, um acolchoado macio e felpudo, era como a cereja no bolo.
Além da impressionante qualidade do material, no encosto do braço direito havia alguns botões interessantes. O primeiro era como um telefone, os quatro seguintes eram vários tipos de massagens e o último trazia um copo de bebida.
Tal como do lado esquerdo, com a mesma aparência, mas com funções mais perigosas, como o botão que ativava uma armadilha de fogo, o que emitia um alarme ensurdecedor para todo o reino e o de autodestruição, que foi um pesadelo para o herói das armadilhas interromper.
— Herói... Herói... LUCCA! — gritou o herói da paz, o trazendo de volta para a realidade.
— Ah, já terminou? — perguntou o grande herói.
— Sim, está tão cansando assim? E pode guardar essa cabeça... — disse o herói da paz, tampando seu nariz e virando seu rosto.
O verdadeiro motivo para o seu passatempo distorcido: depois de tantas vezes posando segurando a cabeça decepada dos reis derrotados — uma estranha exigência que o parlamento nunca deixava de relembrar — essa formalidade havia deixado de ser uma tortura psicológica e física, mas ainda era irritante o suficiente para precisar se concentrar em outras coisas, a fim de suportar o cheiro desagradável.
— Ha... Até que enfim... Gamaliel, qual o próximo reino? — disse o grande herói, colocando a cabeça do imperador demoníaco em uma sacola de pão.
— Na verdade, pode aproveitar à vontade. Não tem próximo reino — respondeu o arquimago.
— Como assim? Os de cima finalmente liberaram uma folga!?
O herói soltou a sacola no chão e com um miado um portal se abriu para pegá-la, se fechou e a sacola desapareceu por completo.
— Não. Esse foi o último dos reis demônio, sua missão finalmente acabou, agora você pode voltar para casa.
O herói encostou sua cabeça no trono, fechou seus olhos e gritou:
— Ligar função massagem! — O herói que lutou por décadas para voltar para casa, parecia mais feliz poder continuar testando as funções do trono do que voltar ao seu mundo antigo.
O motivo disso era a ausência de motivos para voltar, não havia nada ou ninguém de seu mundo antigo que lhe dava motivação para isso, pelo contrário, ele temia voltar por algo que lhe assombrava há anos, mesmo sabendo que sua força atual poderia resolver todas as suas preocupações.
— Miau. — A pata de um gato branco, o herói do infortúnio, tocou a perna do herói.
— Ele perguntou se vamos nos separar — traduziu uma mulher que vestia roupas brancas cerimoniais, a heroína da fortuna.
— Bom... Isso depende mais de vocês do que de mim, agora que esse mundo está em paz, quantos de vocês querem ir comigo? — perguntou o grande herói.
Houve uma comoção, os heróis começaram a discutir entre si, mas logo declararam sua vontade, afinal essa era uma escolha que, para a maioria, já havia sido decidida antecipadamente.
— Eu vou com você — disse a heroína da fortuna. — Pelo menos até a torre...
— Vou ficar — disse o herói da forja.
— Eu também — disse o herói das armadilhas.
— O que vai ser de você sem mim? Claro que eu vou com você! — disse o criador de quimeras.
— Hm... O que você vai escolher? — perguntou uma criança, que flutuava, girando livremente pelo ar, olhando para Gamaliel.
— Posso ter um tempo para pensar? — perguntou Gamaliel.
— Claro — respondeu o grande herói.
Todos os outros tomaram uma decisão de imediato.
— Isso não está certo... — disse um homem que vestia roupas excêntricas e uma máscara teatral, o herói da ópera dos mortos, enviando seus mortos vivos para impedir os que queriam ir embora de imediato. — Precisamos de uma última festa! Pegue as bebidas, gato!
— Miau... — seguindo seu miado, um portal surgiu.
— ...Só porque é a última vez — traduziu a heroína da fortuna. — Ah, e qual acompanhamento?
— Carne, muita carne, e de todos os tipos! — gritou o herói da música, colocando seus mortos vivos para tocarem canções de festa.
— Miau?... Miau.
— Isso vai ser... Bom, você que pediu.
O gato posicionou o portal sobre a cabeça do músico, despejando toneladas de animais mortos e carnes já prontas, fazendo jus a seu primeiro título de “pequeno mochileiro”.
A música parou.
— E-ele está bem? — perguntou um homem altíssimo vestindo uma grande armadura metálica e um crânio de demônio, que cobria todo seu rosto, o herói dos bárbaros.
— Se não estiver eu revivo! — gritou a criança, o discípulo de Gamaliel.
— Desde quando você sabia reviver alguém? — perguntou o herói dos bárbaros.
— Aprendi hoje! Encontrei um livro muito legal na biblioteca pessoal do imperador! Ele tinha até desenhos, o que me ajudou para caramba!
— Ah, às vezes esqueço que sou o único inútil daqui... — disse o herói dos bárbaros cabisbaixo.
— Gato, não misture carne boa com essa carne podre. O necromante pode transmitir alguma doença para comida — disse Gamaliel.
Depois disso, ele balançou seus braços, fazendo surgir um enorme círculo mágico no chão. O amontoado de carne começou a tremer, e após alguns segundos, foi jogado para cima, parando em pleno ar, livrando o herói.
— Já disse que sou um músico! Um mú-si-co! E eu lavo muito bem meus mortos vivos... — disse o herói da música, limpando o sangue de sua roupa.
— Os mortos vivos tudo bem, mas já você... — disse Gamaliel, sorrindo.
— Será que um mago na minha coleção resolveria esse problema de higiene? — disse o herói da música, estalando os dedos, criando uma névoa verde que se separou e voou para fora do salão.
— Nem mil magos achariam a solução para seu fedor pútrido. — Inúmeros círculos mágicos de tamanhos e escritas diferentes começaram a surgir por todos os cantos.
Os mortos do castelo começaram a se reerguer e invadir o salão pelas janelas. Os círculos, com chamas e raios, os transformavam em pó, mas a medida em que o tempo passava, o número de mortos vivos superava o número dos círculos mágicos.
O arquimago percebeu isso, então colocou a palma de sua mão no chão, fechou seus olhos e começou a recitar um conto famoso:
— Da terra, da fenda e da morte nosso povo surgiu, o clamor do mar anuncia a nossa chegada...
A medida em que o arquimago avançava no conto, diversos símbolos e letras estranhas começavam a ser escritas no chão, gradualmente ganhando brilho, até se tornarem impossíveis de se olhar.
— Parem com isso! Vocês querem destruir esse castelo? — gritou o herói dos bárbaros. — Por favor, não briguem... Pelo menos hoje.
— Ah, perdão — disse o arquimago, tirando sua mão do chão, fazendo o círculo que cobria todo castelo e as escritas no chão, desaparecerem instantaneamente.
— Foi mal aí... — disse o músico, estalando os dedos, transformando os mortos vivos novamente em fumaça, que se dissipou rapidamente no ar.
Os outros heróis, que estavam em silêncio, observando o desenrolar da batalha, prontos para intervir ou fugir, voltaram a conversar e beber. A música voltou a tocar.
— Awn... Achei que finalmente ia ver os dois lutando com força total... — disse o herói sem título, que entregou um bloco de ouro maciço do tamanho de uma maça para o herói da paz.
— Você estava mesmo apostando com uma criança? — perguntou o arquimago, bastante irritado.
— Se tem idade para salvar o mundo, por que não apostar?
As escritas voltaram a surgir no chão.
— Espera! Se acalma Gamaliel, fui eu que comecei essa aposta... — suplicou a criança.
— Faça isso de novo, e eu pego de volta o coração de dragão que te dei de aniversário.
— Não! O coração não! Ainda nem terminei de fazer o feitiço que transforma tudo em bala... Tá bom, não aposto mais...
— Quem vai cozinhar hoje? — perguntou a heroína dos remédios.
— Miau — disse o gato, levantando sua pata.
— Tudo bem, eu te ajudo — disse a heroína da fortuna.
Enquanto o gato e a heroína da fortuna cozinhavam a carne, o arquimago e o grande herói saíram para a sacada do palácio para conversar.
— Quem diria que faria esse frio por aqui — disse o arquimago.
Tudo até o limite do horizonte, estava completamente coberto pela neve. A famosa piscina dos monstros marinhos, o lago, as plantas e até alguns demônios de um vilarejo próximo, estavam presos, congelados como estátuas.
— Você está mesmo bem?
— Como pode ver, estou completamente saudável. Não tem ferimento que resista contra sua cura e as poções dela — respondeu o herói.
— Não seu corpo, sua mente. Eu mal aguentaria um dia no estado que você estava... Nunca vi o Einar tão enfurecido em todo o tempo que passei com vocês, ele quase derrubou o império sozinho quando viu você.
— Então o general que sumiu...
— Isso mesmo. — O arquimago olhou para cima, mas não conseguiu ver a lua, devido à densa nuvem que cobria o céu, então, retirou um cajado amarrado em suas costas e apontou para o céu. — Como é seu mundo?
— Nem me lembro mais.
O arquimago recitou uma pequena frase e o céu se abriu.
Estava estrelado, a lua brilhava no céu em sua forma completa, enquanto o resquício da mana, utilizada na conjuração, completou a paisagem, formando uma aurora boreal, de cor azul vibrante que se dispersava lentamente.
Os dois continuaram conversando sobre o outro mundo por mais um tempo, até uma ventania gélida fechar o céu novamente, fazendo os dois voltarem para se aquecerem.
— Criança, eu vou — disse o arquimago.
— O que disse? — E ele voou do outro lado do salão para escutá-lo.
— Eu falei que eu vou com o Lucca para o mundo dele.
— Então eu também vou!
— Parece que todo mundo fez uma decisão, vou embora — disse o herói da forja, junto de alguns outros.
— O banquete está pronto! — gritou a heroína da fortuna.
— ...Talvez não faça mal esperar mais um pouco. — No fim ele acabou ficando.
Todos os heróis e ajudantes se reuniram em uma longa mesa retangular, consertada pelo herói da forja e coberta por um pano vermelho carmesim com detalhes em dourado, costurado pelo herói das armadilhas.
O herói se sentou na ponta da mesa, se serviu com uma taça de vinho e a levantou para dar um discurso final.
— Eu sou péssimo em dar discursos assim, então serei breve. Alguns de vocês me acompanharam desde o início, quando eu não fazia ideia do que estava fazendo, outros se juntaram a nós perto do fim, mas a todos, muito obrigado por me acompanharem e confiarem em mim. Seus nomes ficarão marcados na história da humanidade, e alguns terão até uma estátua construída em sua homenagem. Aos que ficarem, aproveitem sua fama, e aos que forem comigo, tomarei a responsabilidade de ajudá-los a se adaptarem ao meu mundo. Um brinde a nossa jornada!
A visão se encerrou, eu retornei à biblioteca, mas como alguém que acaba de acordar e tenta se relembrar sobre o sonho que teve, eu tive a frustrante sensação de esquecer sobre quase tudo que vi.
— O que foi tudo isso? — E por algum motivo eu estava pendurado de ponta cabeça em uma cadeira flutuante. — Uma armadilha?...
— Uma medida de segurança, não se preocupe.
Mas mal tive tempo de reclamar e fui jogado em uma sequência ainda maior de visões.
???, Jiang Hu, ???
Depois de treinar em reclusão por dez anos e superar a barreira que ninguém na minha idade havia atingido, nem um membro sequer veio comemorar esse feito comigo. Quando saí, me deparei com um clã completamente diferente.
— Que palhaçada é essa? Por que estão brincando com uma criança no trono do líder!?
— Cale a boca! Abaixe a cabeça e reze para que ele não tenha te escutado.
— Por acaso ele é um dos príncipes ou uma guerra de sucessão aconteceu e um dos filhos ilegítimos mais novos ganhou por sorte enquanto eu estava fora?
— Se eu te contar a verdade você vai desmaiar.
— Conte logo, uma hora vou acabar descobrindo de qualquer forma... Aquela criança está fazendo tranças no cabelo do líder!? Tamanho desrespeito é inaceitável!
Nilo Fontes, Terra, ???
“Já faz meses que ela não volta, será que... Eu posso tomar o lugar dela?”
Tenho certeza de que ela me colocou nessa posição justamente porque não sou capaz de trair ela e roubar a guilda enquanto ela está fora, mas nessa situação atual, será que tenho mesmo a escolha de me manter em um estado provisório eterno?
Se tudo continuar assim os aliados e clientes vão começar a desconfiar e tudo vai lentamente ruir. Eu preciso fazer isso.
— Hahaha...
Finalmente o meu dia chegou, sabia que essa chance um dia iria aparecer.
Primeiro, vou tomar o lugar como presidente fixo, subornando os outros com poder de voto e a partir daí vou começar a me estabelecer de forma que quando ela volte eu já esteja forte o suficiente para contestar sua autoridade.
Ou melhor ainda, talvez ela nem volte.
Não, é bom que ela volte! Assim vou provar de uma vez por todas a minha posição.
— Eu nunca mais vou precisar me curvar para ninguém!
...
Logo que retomei a consciência, já voltei fazendo perguntas mais objetivas antes que voltasse a alucinar novamente.
— Que lugar é esse?
— Um dos planetas biblioteca do universo zero. Dentre os cem universos que morrem, renascem e se transformam, esse é o único que se manteve o mesmo. Nesse planeta reside todos os registros de todos os universos do passado, presente e futuro. Ligados por um tema especial.
— O que foram todas essas visões?
— Sua mente se acostumando com esse lugar. Diferente do seu mundo, aqui os livros são tão vivos quanto você. As histórias que ressoam com a sua existência estão te dando boas-vindas.
— Como eu faço para isso parar?
— Não tem como.
Enquanto conversava, a intensidade das visões aumentava.
Esfayl, Jithnaris, ???
— Não é possível. Como esses idiotas dominaram o mundo?
Membro do grupo mercenário? Brasil, ???
— Eu sabia que não devia confiar em um político, aquele desgraçado nos traiu! Depois de tudo que fizemos por ele, como pode... Temos mais quantos dias de suprimento?
— Quatro dias, sendo bem otimista.
— Droga, não temos escolha senão nos render?
Portador da primeira chave, Brasil, ???
— Sabia que esse elevador velho iria me matar algum dia.
Portador da segunda chave, ???
— Quantas oportunidades o Brasil não perdeu no passado? Sim, com isso poderemos mudar o curso da história e colocarmos nosso país no seu devido lugar, seremos a maior potência mundial!
Portadora da terceira chave, Estados Unidos, ???
— Todos vocês estão sendo manipulados pelo governo! Como não conseguem ver isso? Juntem se a mim, me ofereçam suas vidas e abrirei seus olhos!
Einar, Ásia, ???
— Eu vou matar eles.
— Se acalma, não é para tanto, pega leve enquanto a gente está no reality.
???, ???. ???
— Grande ganho, grande risco, essa frase não é de conhecimento comum?
— Realmente, enviar pessoas de alto valor é a única chance de isso dar certo, mas as chances ainda vão continuar muito desfavoráveis e suas perdas podem custar seu próprio mundo. Enviar pessoas para falharem é o mais seguro. Totalmente antiético, porém, quando as chances são tão baixas, a chance de um promissor suceder é quase a mesma que um comum. Ainda por cima, esse é um trabalho que não é para todos. Um herói justo, ético e bondoso, mas, ao mesmo tempo, capaz de massacrar milhões, e apesar disso não se corromper... Está pedindo por um anjo.
— Não, existe alguém com esse potencial, só precisa ser moldado. Só precisamos de alguém que não sinta emoções ou ao menos não tanto quanto a maioria. Alguém que não se leva pelas emoções é capaz de ter essa justiça incorruptível desde que guiado apropriadamente. Mas isso não é suficiente, alguém assim se recusaria a fazer esse tipo de trabalho. Por isso, esse alguém precisa ser um pouco quebrado, ter passado por uma tragédia, uma experiência terrível.
— Isso não o transformaria em um vilão?
— Por isso precisamos de outro alguém para o guiar no caminho correto.
— Acha que algo assim é possível? Novamente, a chance de encontrar alguém assim é baixíssima.
— Ele já está a caminho daquele mundo catastrófico.
— Ainda é uma aposta alta demais, com esses poderes e essa mente no limbo da insanidade, o menor deslise pode ter consequências maiores que podemos lidar.
— Se ele quiser destruir tudo, o que perdemos? Se vermos que ele causou o caos e enlouqueceu naquele lugar, é só destruirmos a chave e cortamos a conexão permanentemente. Nisso tudo só perderemos uma pessoa com potencial e alguns pontos de causalidade.
— Quem foi o louco que te escalou para essa posição com esse seu jeito de pensar?
— Eu mesmo subi sozinho até aqui.
— Respeitosamente, duvido.
— Independente se acredita ou não, está feito. Nossa caixinha de pandora foi aberta.
— Ainda acho que desenvolver ele de maneira saudável em nosso mundo traria muito mais benefícios, o poder dele é forte demais para desperdiçar em uma aposta tão descabida.
— Essa não é uma aposta justa, aproveitando que aquele mundo está sem leis, farei de tudo para que ele tenha sucesso.
— Isso bagunçaria a balança de probabilidades e rebateria de volta com força total.
— É isso que eu pretendo.
— O quê?
— É só pensar de forma contrária, aproveitando dessas condições tão improváveis e as forçando para situações piores ainda, podemos ter a maior monstruosidade já criada a partir da tentativa de equilíbrio. Talvez ele até possa suportar o fardo de herdar minha habilidade!
— Podemos conseguir passar pelos desastres com uma boa margem se isso der certo...
— Está finalmente me entendendo!
— Pode ter certeza que não. Só estou analisando os danos já feitos e tentando ver o lado mais positivo possível. Suas apostas ainda são tão prováveis quanto um viciado começar a jogar em dez cassinos com um real e sair como um milionário. Claro que os benefícios são incríveis, mas o caminho até lá é simplesmente inacreditável.
— Está corretíssimo. Se esse viciado perder, é apenas um real, quem se importa? Mas se ganhar...
— Já vi que essa conversa não vai levar a lugar algum. Tanto eu, quanto você, não vamos conseguir convencer um ao outro. Veremos os resultados, te vejo em alguns anos. Vou ficar bem ocupado preparando toda a burocracia chata e negociando com os outros administradores. Vê se não acaba invocando um juiz com toda essa maluquice.
Ele acenou e foi embora.
— Pare... Com... isso...
— Admito que é culpa minha por interferir no seu percurso natural ao outro mundo, mas infelizmente não vou poder te tirar daqui... Ainda. Então em compensação, responderei o que você quiser. Mas eu pessoalmente recomendo três perguntas, aproximadamente o tempo que nós temos até sua mente colapsar... Ah, já desmaiou?
Ele tirou uma pílula de seu manto e colocou em minha boca. Eu acordei, estranhamente bem e as visões cessaram por um tempo.
— As histórias se revelarão de maneira exponencial se não sair daqui logo antes do efeito desse remédio acabar, faça três perguntas e eu te deixo ir — explicou ele, novamente.
"Só três?... Não, acho que o famoso dilema dos três pedidos se aplica aqui, três é o número perfeito, mesmo ele não sendo um gênio e nem os pedidos sendo pedidos. Já me perguntaram sobre isso várias vezes, já ensaiei vários pedidos imaginários, na busca da resposta, e isso me preparou para essa situação.", quando ele terminou de falar, eu já tinha uma na ponta da língua:
— Quais são as duas melhores perguntas para eu fazer agora? — Pode parecer o desperdício de uma pergunta, mas depois de um intenso debate com alguns amigos, chegamos à conclusão de que esse era o mais seguro, mais versátil e mais útil, independente da personalidade do gênio.
— Eu sugiro que me pergunte qual é o seu propósito e qual a verdade do mundo que você vai ir, a chave que salvará o mundo do colapso natural.
Mesmo que ele não fizesse uma resposta direta, isso era um teste de segurança no qual ele passou da melhor forma. Com um sorriso no rosto, segui o seu conselho e fiz essas duas perguntas.
Para a primeira, ele respondeu claramente:
— Salvar o seu universo.
Para a segunda, ele me entregou um livro.
— No tempo certo você se lembrará que passou por aqui.
Comecei a pensar no que ele queria dizer, mas logo fui pego de surpresa por um pedido absurdo:
— Coma o livro.
Comer o livro? Quando criança já provei um pedaço de papel e tinha um gosto horrível, mas agora, nessa idade, comer um livro inteiro?
“Bom, olhando minha situação atual, pensar racionalmente parece a opção mais irracional”, então respirei fundo e dei uma mordida no canto inferior do livro.
Eu esperava uma textura dura e um gosto amargo, mas bizarramente o sabor e a sensação era de uma carne malpassada, respingando tinta ao invés de sangue.
— Coma tudo de uma vez, ficar enrolando é pior ainda.
— Tem um copo de água para ajudar? — E em pleno ar, ele formou uma bolha de água flutuante com um canudinho.
Quando terminei, duas portas se abriram em um corredor a frente.
No meio do caminho me virei para trás, mas aquele ser desapareceu.
(Henry, herói da música)
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