Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 9: O início da investigação

Oliver olhava para o próprio pescoço e logo sua mente o transportava para o momento onde o invasor quase o matou. A dor da perda de Placide não tinha como não se misturar com o sentimento de culpa, mesmo que ele tivesse recebido de Bernard a máscara do mentor na forma de um legado que carregaria consigo.

Outra dor que o afligia era a de ter sido expulso da Guarda. Sua luta, embora reconhecida como nobre, não foi o suficiente para justificar suas atitudes, consideradas de modo geral como imprudentes.

— Você tinha razão, vovô. Não durei um dia — disse mantendo os olhos na máscara pendurada no pescoço como um lenço.

— Não fique assim, rapaz. — Albert ajeitava algumas frutas em um cestinho de palha que ele havia confeccionado. — Seus amigos estão aqui, vamos falar de outra coisa.

Leanor havia passado o último mês desde a morte de Placide visitando Oliver em sua caverna, que ele revelou a localização antes de se despedir. Sempre que ela podia, também levava Lucien junto, como era o caso daquela manhã.

— É, você tem que pensar no que conseguimos resolver — ressaltou Leanor. — Lucien recebeu uma permissão para continuar fazendo os treinamentos individualmente e eu soube que o Bernard vem te ver de vez em quando para vocês dois praticarem um pouco.

— Apesar de eu achar arriscada essa última parte, concordo com ela — disse Lucien. — E o Conselho em momento algum quis te exilar por conta do que aconteceu. Nem a Vivienne parecia querer te condenar a esse nível.

— Que se dane o Conselho. — O garoto mantinha-se cabisbaixo.

Os amigos e avô de Oliver continuavam querendo animá-lo, até que decidiram seguir com as atividades normais de quando se encontravam. Reuniam-se perto da caverna, sentavam na grama beirando a parede para aproveitar a sombra, pegavam algumas frutas para comer e bebiam da água do córrego em frente, sempre cristalina e fresca.

Nos primeiros dias, a falta de padrões de etiqueta e utensílios apropriados como talheres e copos havia causado uma estranheza em Lucien, gerando situações cômicas que deixavam o jovem mago mais distante da tristeza de ter perdido sua grande chance.

Quando a diversão não era suficiente, o trio conversava sobre o que faziam no dia a dia, passando a se conhecer melhor e aprendendo sobre como era a vida em Prospéria para pessoas tão diferentes entre si.

Lucien morava com o pai e a irmã em uma grande casa próxima da saída Leste do vilarejo. A vida dele havia mudado quando a mãe faleceu no parto de sua irmãzinha. Os curandeiros não conseguiram usar suas habilidades para dar forças a ela, e ele tinha a certeza de que se existisse um curandeiro de fogo na época, isso não teria acontecido.

Essa motivação continuava ardendo dentro dele e mesmo as duras críticas que o garoto sofria do próprio pai não o tiraram de seu caminho.

Leanor, por outro lado, alegava nunca ter tido problemas na família, mas continuava buscando uma vida melhor em algum outro lugar. Já Oliver, tentando pensar em qual seria um outro rumo possível para sua trajetória, se sentia perdido.

A voz que o chamou durante a luta e salvou sua vida acabou surgindo mais algumas vezes nos dias que se seguiram, mas sempre com frases pela metade ou palavras soltas. O jovem chegava a se irritar em alguns momentos com a falta de clareza.

Porém, nada tirava de sua cabeça que existia um propósito naquela comunicação. Ainda tinha algo a ser resolvido.

 

 

— Ei, Oliver. — Leanor estalava os dedos para chamar a atenção dele para a conversa novamente. — Ouviu? Eu conversei com o Bernard e ele apresentou uma nova proposta para mim.

— Ah, é, você acabou não conseguindo se manter como guerreira lá dentro, não é mesmo? Foi mal.

— Já se passaram semanas desde que vocês me contaram e eu ainda não acredito que tentaram fazer uma coisa dessas. — Lucien balançava a cabeça negativamente.

— Olha, gente, não importa mais. Pelo que entendi, o Bernard me falou que tem um cara que era um antigo forjador de equipamentos e armas na Guarda, um velho conhecido dele. É um ex-guerreiro que pode me acolher como uma ferreira aprendiz e até me treinar para lutar na Guarda um dia.

— Você leva jeito para construir coisas, mocinha — disse Albert. — Esse cesto de frutas é fruto do que você me ensinou.

— Nossa, vai começar com essas piadas horríveis? — Oliver tapava o rosto, envergonhado.

— Só agora você vai mudar de função? O senhor Bernard explicou por que?

— Ele me falou que precisava esperar a hora certa, porque pelo jeito esse amigo dele é uma pessoa complicada.

— Acham que a hora certa de fazer justiça pelo Placide vai chegar? — O silêncio voltou a pairar no ambiente.

Antes que alguém pudesse dizer algo, Albert baixou a cabeça e soltou os braços, deixando cair a faca e a fruta que segurava. Era como se tivesse desmaiado. Não demorou para Oliver sentir a energia espiritual dele aumentar como nas vezes em que o garoto passava pela provação dos espíritos.

Um deles estava ali novamente.

— Se tivesse nos ouvido com atenção, saberia que a luta não acabou. Onde estava sua mente nos vários dias que se passaram? Um gigantesco tempo ocioso onde você só se preocupou com o mundo material. Nada além de treinos exaustivos que esvaziaram sua cabeça e enevoaram seus pensamentos.

A voz aterrorizava Leanor e Lucien, mas o jovem mago, mesmo impressionado, não se amedrontou. As palavras saíam de Albert com muito esforço, em um sussurro rouco misturado com respirações pesadas.

— Por que estão me culpando? O que eu deveria ter feito?! Se sabem de algo, é só dizer.

— Só vemos aquilo que você também vê, mas temos uma percepção do mundo ao redor bem melhor do que os seus sentidos, criança, por isso você continua vivo. Sabe tão bem quanto nós que a sensação de perigo não passou, um sinal claríssimo de que a situação não está sob controle.

— Isso aqui ficou muito bizarro. — Leanor se arrepiava com os quase grunhidos de dor que Albert soltava quando os espíritos forçavam suas cordas vocais a falar em tom mais rígido.

— A verdadeira vida é a espiritual, uma que você não está trabalhando direito. Preste atenção no caminho que está traçando, pois sua alma está presa demais ao corpo.

Em uma longa puxada de ar para recuperar o fôlego, Albert estava de volta, consciente de si.

Os garotos o ajudaram a se acalmar e levaram o fraco senhor para deitar-se. Quando se reuniram novamente, Oliver sentou no chão cruzando as pernas e juntando as palmas das mãos para fazer o símbolo tradicional de sua família.

— Pessoal, preciso que fiquem calmos e me ajudem a não perder a concentração. Eu ainda preciso saber o que os espíritos têm para falar comigo. Não vai demorar muito.

— Só tome cuidado — disse Lucien, inquieto. — Seu avô ficou bem debilitado depois dessa coisa estranha que acabou de acontecer.

Leanor estava muda e ainda com medo.

O círculo de magia começava a se formar nas costas de Oliver e o vento assobiava mais forte conforme ele estabilizava sua energia. "Se vocês estão sempre perto de mim, então terminem de dizer o que precisavam", ele chamava os espíritos mentalmente.

Seus olhos estavam parcialmente abertos, mas foram fechando lentamente conforme seu estado consciente ia diminuindo, como se estivesse caindo num sono. Em seguida, na vastidão escura de sua inconsciência, dois brilhos apareceram diante dele e chamaram sua atenção. À medida que se aproximavam, ele percebeu serem olhos que o observavam fixamente.

De repente, esses olhos se arregalaram.

Oliver sentiu uma pressão enorme em seu corpo, quase o forçando a deitar no chão, como se uma pedra enorme estivesse a ponto de esmagá-lo. Algo ou alguém estava na sua frente, mas ele não conseguia levantar a cabeça para ver quem era.

Sentia uma dor latejante que aumentava conforme a pressão que o jogava para o chão ficava mais intensa, como se seu crânio estivesse a ponto de quebrar. Nem mesmo podia gritar, pois o corpo estava paralisado.

Aos poucos, quem estava na frente dele começou a se afastar. Antes que o garoto pudesse ver a figura misteriosa, nem mesmo que fosse pelo canto do olho, ele levou um chute na cara que o jogou para trás.

— Ai, desculpa! — gritou Leanor, levando as mãos à boca. — A gente não sabia o que fazer, você estava muito agoniado e se retorcendo e eu fiquei nervosa. O que aconteceu?

O jovem mago levantou-se apressadamente e olhou em volta, ainda tonto por toda a situação que acabara de vivenciar.

— Estamos sendo vigiados!

Rapidamente, o garoto grudou nos ramos da parede para subir e correr atrás daquele que o observava. Ainda era possível sentir sua presença, mesmo que pequena, após Leanor tê-lo acordado. Nenhum dos dois amigos conseguia entender o que acontecia, mas foram atrás dele.

No descampado acima da caverna não havia nada. O vento havia acalmado e nenhum som além da água passando pelo córrego era notado.

— Oliver! — gritou Lucien. — Dá para contar para nós o que foi tudo isso?

— Tinha alguém aqui — disse virando-se para o garoto curandeiro —, foi a mesma sensação que eu tive durante a luta na muralha. Quando isso aconteceu, os espíritos deram um aviso, mas eu não consegui desviar a tempo. Agora aconteceu de novo.

— Meninos, eu não estou gostando disso. Vamos procurar alguém.

— Não! — Interviu Oliver. — Não alguém qualquer. Ninguém vai me escutar e podem até suspeitar de mim. Eu vou falar com o Bernard.

— E o que nós dois vamos fazer? — perguntou Lucien.

— Por enquanto, só evitem ficar sozinhos. Vocês podem ser um alvo tanto quanto eu. O invasor que matou o Placide não era um inimigo normal, e ele ainda está em algum lugar desse lado da muralha.

 

 

O garoto correu até o portão da Guarda como nunca havia feito antes, chegando em tempo recorde. O sol da manhã havia ajudado a não deixar aquele trajeto tão desgastante, mas o desespero foi o verdadeiro motivador para tamanha performance.

— Bernard, sou eu! — Oliver dava uma sequência de batidas fortes e não parava de gritar por seu mestre até convencer alguém a abrir passagem.

No entanto, não foi necessário. Em poucos segundos o Conselheiro apareceu na frente do garoto mago descendo de uma das torres do quartel.

— Ei, ei, garoto, que ideia é essa? — perguntou transtornado com o olhar de Oliver para ele.

— Eu estou sendo perseguido, Bernard, tem alguma coisa errada.

Seu olhar para o mestre mostrava, além da agonia, a sinceridade sobre o que ele tinha presenciado.

— Vamos para outro lugar, então, mas tente se acalmar.

Ambos saíram de perto do quartel e foram mais para perto da base da muralha, em uma parte onde não haviam tantos trabalhadores, assim não correriam risco de serem interrompidos. O campo de visão amplo e a gigantesca estrutura de pedra atrás deles também gerava certa segurança no garoto.

Após sentarem-se em uma pedra para Oliver descansar as pernas, o mestre começou a falar:

— Agora, me diz o motivo de você vir tão esbaforido aqui na Guarda. Depois do julgamento ficou claro que não era para voltar, por isso eu ia visitar você e seu avô.

— Alguém estava me vigiando hoje, perto de casa. Eu senti uma presença muito forte quando tentei me comunicar com os espíritos dos meus familiares. Foi a mesma coisa lá na muralha, eles falaram comigo e aí alguém apareceu.

— Garoto, já conversamos sobre isso. — Bernard jogava para ele um olhar de piedade e empatia. — Foi uma situação extrema para um primeiro confronto, eu cometi um erro em te incentivar.

— Eu não paralisei de medo! — esbravejou. — Era alguma coisa, alguma força que me segurou, e deve ter sido a mesma que me passou a sensação de estar sendo esmagado agora há pouco.

— Se faz tão pouco tempo, eu conseguiria achar essa pessoa por aí ainda?

— Não sei… A presença sumiu rápido demais.

— Então isso foi só um caso de estresse pós-traumático. — Ele apoiou a mão no ombro do garoto, segurando firme. — Você teria visto alguém por perto, não há muitos lugares onde se esconder perto daquela caverna e suas habilidades já melhoraram muito com os treinos.

— Só que você não viu o invasor naquela noite, nem a Vivienne. Não foi uma pessoa comum.

O mestre lutador largou o garoto e olhava para ele, indignado.

— Eu não sou perfeito, Oliver, mas ainda não é motivo para jogar os erros na minha cara. — Bernard suspirou, olhando para o chão. — Eu acho... que tenho que te contar uma coisa. Eu encontrei o tal invasor quando desci pela muralha.

— Então sabe quem ele é?

— Eu matei ele, garoto.

A notícia veio como um choque, mesmo se tratando de um inimigo. Era difícil pensar que a pessoa que mais sorria no meio de tantos guerreiros estressados e impacientes poderia chegar a tal ponto.

— Eu... achei que...

— Que guerreiros não matavam invasores? Sim, essa é a regra, fazemos isso como forma de não piorar a situação e não nos rebaixarmos ao nível deles, mas eu tinha acabado de perder alguém durante a minha vigília. Tudo o que eu tinha planejado para você deu errado e tive que correr atrás para evitar que a situação piorasse. Ninguém além do Conselho soube disso.

— Por que não me contou? — Oliver se sentia ainda mais culpado por tudo que tinha acontecido.

— Estava tentando tirar você dessa história. Você e a Vivienne. Pensei que talvez pudessem ficar alheios de uma escolha como essa e seguir em frente.

Bernard levantou-se para voltar para seu posto no quartel, enquanto Oliver continuava sentado refletindo sobre o que tinha ouvido. Com o soprar do vento, ele lembrava da voz que tentou chegar até seus pensamentos.

— A luta não acabou...

— O quê?

— Mestre, eu sei que isso ainda não acabou — disse segurando firmemente a máscara de Placide em seu pescoço.

— Garoto, eu já te falei que...

— É, falou, e eu respeito isso — disse olhando no fundo dos olhos de Bernard —, mas ainda preciso investigar a situação.

— E o que vai fazer? — Seu tom de voz mostrava que ele tinha desistido de fazer Oliver reconsiderar.

— Todos ficam contando a história da minha família como se eles tivessem causado a Noite dos Demônios Internos por crueldade, corrompendo a alma de todas aquelas pessoas em vez de ajudá-las. Eu nunca vou aceitar isso, mas admito que eles podem ter errado e deixado as coisas piorarem até saírem do controle.

As palavras saíam com um gosto amargo da boca de Oliver, que precisava fazer de tudo para convencer Bernard a apoiá-lo.

— É por isso que devem estar me avisando para ter atenção. Mesmo que o invasor não fosse páreo para você, ele tinha alguma habilidade ou conhecimento diferente, até a curandeira estranhou o veneno que ele usou.

— O nome dela é Emmanuelle. Vivienne a conhece melhor que eu. Procure a garota para te ajudar a entrar em contato com essa curandeira. Tomara que uma das duas tire a sua cabeça disso.

— Obrigado, senhor!

— Não tente me convencer com formalidades, garoto — riu —, só faça o que tiver que fazer. Mas vou ficar de olho em você, ouviu?

 

***

 

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