Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 10: O arqueiro banido

Depois de viver a situação assustadora com o avô de Oliver e receber o aviso para não ficar sozinha, Leanor achou melhor não esperar até que o tal novo mestre dela estivesse em um dia bom para que ela o visitasse.

Por conta disso, logo após ir embora da caverna, resolveu ir atrás de seu objetivo.

Tudo o que a garota sabia até o momento era o nome dele e que ele passava um bom tempo perto de uma torre branca na estrada Norte que ligava Prospéria ao Vale do Céu.

Era estranho, já que o caminho era familiar para ela e a torre sempre pareceu um local abandonado, como se fosse um projeto de moinho no meio da planície que acabou sendo deixado de lado antes de ficar pronto.

Chegando lá, não viu ninguém, mas podia saber que o homem estava por perto.

Fiações quase transparentes estavam precisamente posicionadas no chão em meio ao gramado, provavelmente conectadas a algum tipo de armadilha, mas nada que fosse grande ou letal.

Havia também uma mudança na atmosfera, algo característico de quando a garota treinava com Bernard sobre furtividade e ele utilizava a Natureza de sombra para esconder seus passos.

Leanor parou e fechou os olhos, concentrando-se para identificar o som da armadilha quando fosse acionada, e então puxou um dos fios com o pé.

O mecanismo tirou de dentro do tronco de uma árvore próxima uma série de dardos que foram lançados rapidamente na direção das costas da garota, que abaixou-se para desviar.

Ao fazer isso, ela ouviu mais um fio sendo tensionado para um novo disparo, mas não era a mesma armadilha. Era o som de um arco atirando por cima.

— Achei você — sussurrou.

Ela deu uma cambalhota para trás, fugindo da primeira flecha, mas quase foi pega pela segunda, que arrancou a sua touca.

Ambos os disparos vieram do alto da torre. O homem estava lá, de cabeça para baixo, se segurando com os pés em uma viga de madeira. Ele vestia um colete branco, calça, capa e máscara pretas e um chapéu de bambu em formato de cone.

— Não sei quem você é, menina, mas pode ir embora — gritou lá de cima.

— Eu vim pelo Bernard. Ele disse que você pode me ajudar. — Leanor levantou os braços, rendendo-se.

— Tenho cara de quem ajuda as pessoas?

— Você cria armas e equipamentos para a Guarda, não é? Cédric Bertrand?

O homem pareceu intrigado. Ele sacou um mecanismo preso na lateral da sua perna esquerda e prendeu no braço, utilizando-o para disparar um pequeno arpão na estrutura da torre e descer pela corda amarrada nele.

— Eu criava — disse enquanto se aproximava de Leanor. O olhar dele era ameaçador, mas não condizia com o tom apático da voz. — De qualquer forma, nunca ensinei ninguém sobre forjar armas, então não é hoje que eu iria começar. A estrada para o Vale do Céu é voltando para onde você estava, ou pode seguir para Leste e chegar nas Terras Taciturnas, atrás das montanhas ou cruzando o deserto, tanto faz.

— Espera! — exclamou. — É sério, preciso de ajuda. E se não quiser me ajudar com isso, tudo bem, eu já sei criar equipamentos. Aprendi com a minha mãe.

— Que legal, então pede um martelinho para ela e vai brincar em outro lugar.

Leanor estava começando a se irritar com a frieza e ironia do homem, mas não queria ser grossa, então pensou que demonstrar suas habilidades faria ele prestar atenção.

— Seu arco está desgastado.

— O quê?

— O arco. — Apontou. — A madeira é velha e a corda também. Pode até não ter risco de arrebentar, mas eu consegui ouvir ela tensionando daqui de baixo e isso entregou sua posição.

— Você não sabe como eu luto, criança, mal conseguiu desviar. — Cédric deu as costas para ela.

— Sei que a sua classe precisa ser discreta. — Insistiu. — Eu aprendi cedo a caçar para comer e fiz treinamentos de furtividade com o Bernard, sei do que estou falando.

— Ir atrás de coelhinhos e capivaras não te dá experiência de luta. — Ele voltou a encará-la. — Se acha esperta porque sabe algumas tecnicalidades? Eu posso fazer a mesma coisa com você. Pega!

O homem jogou seu arco e uma flecha para ela. Mesmo sendo pega de surpresa, Leanor agarrou os dois itens sem deixar caírem.

— O que quer que eu faça? — A garota franziu a testa.

— Atire na árvore onde eu posicionei os dardos, eu quero ver. Não ligo de você ser vermelha, pode usar o arco à vontade.

— T-tá bom.

Leanor andou para o lado e posicionou-se de frente para a árvore, cerca de oito metros de distância. Depois, respirou fundo e focou em seu alvo. A madeira do arco era realmente velha, mas não atrapalhava a pegada, já a corda novamente tencionava de maneira escandalosa para os ouvidos dela.

Depois de ajustar a mira, soltou a flecha. Um tiro perfeito onde Cédric havia pedido para ela.

— Viu só? — disse sorrindo para ele.

— Você só atirou a flecha onde eu mandei, e daí? É o básico.

— O básico?! — perguntou indignada, quase arremessando o arco na cara dele. — Isso é tudo que um arqueiro faz, atirar a flecha no alvo.

O homem avançou na garota e tomou o arco dela com força.

— Se tivesse prestado atenção em volta, teria se dado conta que escolheu um péssimo lugar para atirar. O vento está vindo da sua diagonal esquerda, isso pode mudar a trajetória da flecha dependendo da distância. Além disso, era necessário maior força de disparo para compensar a força contrária dele, mas não esse exagero que você fez. E se você tivesse que atirar rápido porque outro inimigo estava vindo para sua posição pelas costas ou nas laterais? Demorou demais para fixar a mira. E se um aliado estivesse passando na frente do seu alvo porque vocês estão enfrentando vários inimigos ao mesmo tempo? Um disparo forte significa mais velocidade, talvez tivesse acertado seu companheiro antes que ele pudesse se desviar e abrir caminho.

A garota olhava para ele tensa, tentando processar todas as instruções de uma vez. Nada daquilo havia passado pela sua cabeça.

Isso é a diferença entre "atirar uma flecha" e ser um arqueiro da Guarda. — Depois de todo o esporro, Cédric respirou fundo. — Fim da aula, pode ir embora. Eu quero ir até o cemitério prestar condolências a um amigo.

— Não, espera, eu posso aprender tudo isso que você falou. — Leanor correu atrás dele. — Aliás, seu amigo é o mestre Placide? Meus amigos e eu queremos saber mais sobre o que aconteceu.

Quando a garota o alcançou, Cédric estava parado olhando para uma mulher que estava vindo na outra direção, gritando o nome dele e acenando.

Era magra e usava um casaco verde-musgo aberto que era muito maior que ela. Seu cabelo preto ficava na altura dos ombros, todo picotado e desarrumado, e seus olhos eram estranhamente verdes e vibrantes, como os de um réptil. Ela deixou de se aproximar assim que viu Leanor.

— Quem é essa? — A mulher perguntou.

 

 

Cédric, por um breve momento, ficou encarando ambas várias vezes, como se estivesse tentando pensar em uma desculpa a cada vez que seu rosto virava para uma das duas.

— É só uma mendiga vermelha que veio pedir pão, eu falei que depois levo para ela.

— É sério isso? — perguntou a garota, indignada.

— Quer saber? Tanto faz, não vou me meter — disse dando de ombros. — Vim falar sobre o Placide. Você está bem?

— Isso já faz mais de um mês, Marcelle. Alguém atacou ele, o veneno era forte o suficiente para derrubar um boi e não houve tempo para mais nada. O Conselho já fez o que deu.

— Você está virando um covarde mesmo. E se não tivesse me jogado naquele buraco no meio da floresta anos atrás, eu poderia ter feito algo.

— Ele fez o quê?! — Leanor arregalou os olhos.

— É uma casa, foi exagero dela. Só fica meio longe do lugares com mais movimento.

— "Ai, é só uma casa", ele diz. É uma tortura! Você tirou minha honra e me excluiu da sociedade, seu desgraçado — gritou enquanto avançava para confrontá-lo.

— Olha, pessoal, acho que a gente pode conversar de um jeito bem mais tranquilo.

— Fica fora disso, vermelha! — Continuou berrando enquanto segurava o arqueiro pela gola do colete.

Leanor conseguiu ver melhor o rosto de Marcelle quando ela chegou perto. Os olhos eram realmente diferentes, como os de uma cobra. No olho esquerdo, havia uma cicatriz leve indo da bochecha até a testa.

— Veio fazer o que aqui? — A mulher perguntava encarando-a ferozmente.

— Queria que o senhor Bertrand me treinasse para ser arqueira em troca de ajudar ele a criar equipamentos para a Guarda.

Marcelle parecia confusa depois de ouvir aquilo e olhou de volta para Cédric, que desviou o rosto para o lado.

Senhor Bertrand? Treinar? — perguntou abrindo um sorriso que mostrava que ela tinha dentes afiadíssimos. — Quem foi o maluco que te deu essa ideia de vir até ele? Não devem ter te contado que o arqueiro das sombras aqui foi expulso da Guarda.

— Eu já tinha dispensado ela — respondeu Cédric, ainda desviando-se do olhar de Marcelle. — E você também não faz mais parte deles.

— É, sei, não desvia o foco para mim não. — Marcelle riu. — Quer treinar para quê, menina?

— Eu fui dispensada da Guarda, mas o Conselheiro Bernard disse que eu tinha potencial. Eu me dava bem nos treinamentos de furtividade e sou muito boa criando armadilhas.

— E o referencial de mestre furtivo dele era o Cédric? — Ela continuava rindo. — Eu sou a melhor de nós dois.

— Mas eu venci nossa última disputa.

— Por detalhes técnicos! — respondeu cerrando os dentes.

"Esses dois são muito esquisitos, mas ela acabou de me dar uma boa ideia", pensou Leanor.

— É sério que você também é guerreira? Pode me treinar?

— Como é? — Cédric ficou pasmo. — Não, não, não, espera aí.

— Isso pode ser interessante — comentou Marcelle. — Sou uma guerreira de dupla classe, espadachim e animalista de fogo. Nós duas podemos...

— Não! — protestou Cédric, se livrando das mãos dela. — A garota fica comigo.

— Pode parar de graça! Você ouviu ela pedir para mim, fim da conversa.

"Vitória para Leanor", pensou enquanto olhava para os dois mestres disputando pela tutoria.

— Tira esse sorrisinho da cara, menina — resmungou olhando furiosamente para ela. — Vai se arrepender de ter me arrastado para isso.

— Acha que eu vou deixar você me fazer de boba, é? Eu vou vir aqui monitorar esse treino e mostrar para essa garota a escolha erradíssima que ela fez.

O casal parecia não se suportar. Só faltava sair faíscas de cada mal olhado que ela jogava enquanto ele revidava com indiferença. No entanto, a aprendiz continuava maravilhada com o sucesso da sua estratégia.

— Pode vir, vai ser legal. É melhor ainda ter dois mestres para me ajudar.

Cédric pegou Leanor firmemente pelo braço como se tivesse medo de perdê-la para Marcelle e começou a levar a garota de volta para a torre a passos pesados sem nem se despedir da animalista.

— Primeiro de tudo — sussurrou —, nunca mais me chame de senhor Bertrand na sua vida.

— T-tudo bem — respondeu tentando se soltar, mas Cédric era forte demais.

— Segunda coisa. — Colocou a garota de frente para ele, ainda segurando-a firme. — Aqui ninguém é da família e eu não vou cuidar de você. Venha, treine, vá embora. Entendeu?

— Entendi — respondeu cabisbaixa após um momento de hesitação.

— Por que ficou de mal humor?

As instruções do mestre arqueiro eram as mesmas que ela já tinha ouvido na Guarda, o que era plausível. E, até então, não houveram comentários ruins sobre a maldição dela uma única vez.

Leanor tinha visto aquilo como um bom sinal, mas a esperança de conviver com ele com mais liberdade como fez com Lucien e Oliver foi um ato frustrado.

— Eu só estou, sei lá, cansada de sempre ter que ir embora para longe o quanto antes e me esconder do mundo — disse enquanto pegava sua touca do chão. Era difícil esconder o tom de tristeza na fala.

— Ficou bravinha por causa disso? É a melhor coisa que existe não ter que conviver com as pessoas.

— É claro que um cara feito você vai dizer que é bom viver sozinho — resmungou. — Eu te achei pendurado em uma torre cheia de armadilhas.

Cédric tirou seu chapéu de bambu e a encarou por alguns segundos sem dizer uma palavra. Parecia que os olhos dele tentavam ver algo além do que ela havia dito, chegando a deixar a garota envergonhada, como se sua mente pudesse ser lida. 

— Você só está desse jeito aí porque provavelmente viveu sozinha do jeito errado. — Ele estendeu a mão para Leanor. — Eu prometo mostrar para você como viver sozinha do jeito certo, aí nunca mais vai passar por esse problema. Fechado?

— Por que tá preocupado com isso?

— Não é preocupação, é um jeito de fazer você largar do meu pé depois que eu te ensinar a ser uma arqueira decente. Nunca mais vai precisar ficar perto de mim. Anda, fechado ou não?

— Fechado!

Leanor ainda parecia duvidar daquilo, mas aceitou os termos. Cobrindo a mão com a manta, ela cumprimentou o mestre arqueiro, firmando o compromisso.

 

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