Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 11: Preparativos para o Festival

Os primeiros raios de sol mal tinham iluminado as janelas do dormitório feminino e os cobertores já estavam dobrados e os trajes em mãos para serem vestidos.

Ambos os dormitórios - as maiores construções do quartel da Guarda - contavam com quartos individuais e coletivos, sendo o segundo feito abrigar até quatro pessoas, geralmente duas duplas que aceitavam dividir o espaço.

Não era apertado, mas também era proibido trazer muitos pertences, pois tornaria o quarto individual demais, algo que a maioria dos guerreiros considerava bom, assim evitavam conflitos menores e bobos sobre a decoração.

No terceiro andar do lado feminino haviam dois quartos coletivos divididos por um longo corredor. Um deles era ocupado pelas aprendizes e foi a melhor escolha para Marjorie.

A vista de cima de todo o quartel e a sensação gratificante de poder estar porta a porta com mestras da Guarda faziam valer a pena o esforço de dividir o seu espaço pessoal.

— Só estou dizendo que vocês deveriam considerar ficarem mais apresentáveis. — Ela tagarelava enquanto se admirava no grande espelho da penteadeira que ficava em frente à sua cama, terminando de envolver a trança em seu rabo de cavalo para prendê-lo melhor.

— É uma pré-avaliação, não um casamento — respondeu Aika, ainda com uma voz de sono. — Nem sei o motivo para você querer ficar tão pomposa, não temos treinamento com a senhorita Lambert hoje.

— O que você está insinuando? — Seu rosto estava completamente vermelho.

— Você sempre faz isso no treino sobre poções e antídotos. Acha que a senhorita Lambert vai te avaliar melhor pela elegância e a mesa arrumada no laboratório. Ela quer resultados e eu só vi você cuidar de resfriados a vida toda.

— É, pode até não ter problemas grandes na área nobre da Baía de Cristais, mas aqui em Prospéria uma pessoa morreu há pouco mais de um mês. Só avisando, caso tenha esquecido — ironizou Julie.

— Quando você conseguir se arrumar a tempo uma vez na vida, garota, talvez eu considere sua opinião — vociferou.

— Que tal termos uma manhã calma pelo menos uma vez, gente? — Daiane já esperava por Marjorie na porta. — E vamos respeitar o luto pelo mestre Corbin.

— Daiane tem razão — disse Aika —, porque não faz nem duas semanas que recebemos uma advertência da mestra Lavigne.

— Não é só por causa disso que deveríamos respeitar…

— Ai, aquela mulher me dá medo. — Julie lutava para desembaraçar o longo cabelo loiro. — O Gabriel me disse que no treino dos espadachins ela não expressa nenhuma emoção, é bizarro. Quase ninguém é legal como o Conselheiro Bruce e o mestre Bertrand. Os animalistas são os melhores. Aliás, o mestre Bertrand é seu pai, não é Daiane? Ele me passou umas dicas valiosas para fazer minha pré-avaliação.

— É, ele e mais uns quatro mestres vão ajudar o Conselheiro Leclerc hoje — ressaltou.

— Por que tudo isso? — Marjorie juntou-se à sua dupla na porta, aguardando as outras guerreiras.

— Eles também vão passar umas orientações sobre as rondas durante o Festival da Rosa de Gelo. Deve ser medo de alguém ser burro igual o cara de cabelo branco e fazer alguma besteira — respondeu Julie enquanto prendia um dos lados do cabelo com uma pequena presilha azul, para evitar perder mais tempo se arrumando. — Minha mãe disse que ele não morreu por muito pouco.

— Vaso ruim não quebra, fala sério. — Os olhos de Marjorie reviraram. — É igual aquela vermelha. Imagina o problemão caso alguém tivesse chegado perto dela por acidente?

— Meninas. — Aika terminava de abotoar seu colete de veludo rosa que tinha colocado por cima de uma cota de malha reforçada. — É cedo demais para falarmos sobre pessoas irrelevantes, então vamos encontrar a Francine e planejar nossa noite.

 

 

Era uma manhã mais barulhenta do que de costume no refeitório. Conversas iam e vinham sobre as patrulhas nos vilarejos, a fatídica noite na muralha e, é claro, o fato de Oliver e Leanor ainda estarem por aí no continente após o garoto ser defendido por Bernard no julgamento.

Porém, naquele iniciozinho da manhã, nada disso parecia chamar muita atenção de Denis, que revezava entre encarar seu café da manhã com certo desapontamento e olhar esperançoso para a porta.

Na mesa, tinha a mesma bandeja de pães, chá e um pouco de manteiga que se acostumou a pegar, além da companhia de seu pequeno companheiro de equipe: Nicollas Moreau, de 10 anos.

— De tantas beldades que estavam esperando por uma dupla naquele dia, eu acabei com o pirralho.

Só restou suspirar enquanto observava atentamente um grupo de garotas adentrar o refeitório, deixando-o mais melancólico. Algumas se sentavam para reservar a mesa e outras iam até a bancada para servirem-se.

— Nossa, cara, você é muito chorão — reclamou Nicollas. — Quem mandou demorar para escolher um parceiro. Mas não se preocupa não, eu sou o guerreiro mais forte da turma, vou fazer a gente passar na avaliação.

Denis somente direcionou um olhar descontente para sua dupla.

— É sério, não é só menina que tira nota alta na escola. Eu e o Danuja somos tão poderosos que eu tenho certeza que nós vamos ser os próximos conselheiros do templo de Terrion, até o Conselheiro Delyon disse que a gente consegue substituir ele.

— Seu animal familiar é um tamanduá, cara, o dele é um leão — disse voltando a olhar as garotas que estavam algumas mesas à frente.

— Tamanduá-bandeira! — reclamou. — Não é qualquer espécie. Ele tem garras que são tipo umas foices gigantes quando lutamos juntos e aí...

— Vocês já estão falando desse bicho de novo? — perguntou David enquanto tomava um espaço na mesa e ajeitava seu longo topete loiro para trás.

— O nome dele é Danuja!

— Tá bom, tá bom, esquece. — Desconversou. — Ei, Denis, já tá tudo ajeitado para eu pegar a Aika. Vamos na Baía de Cristais, vai acontecer o festival, e ela só me disse para levar alguém para tirar as amigas dela de perto.

— Chama o Gabriel para encher o saco da Julie, com o resto você se vira. E a gente vai lá para fazer a segurança do local, lembra?

— Lembrem-se que temos assuntos mais importantes para hoje.

O aviso veio do garoto de dupla classe, sentado na outra extremidade da mesa. Seu companheiro espadachim dormia no banco à sua frente, debruçado sobre sua bandeja vazia.

— David, é melhor ter cuidado para não ser levado daqui até o campo de treinamento pelas presas do leão do Conselheiro Delyon. Aposto que ele vai adorar tirar sarro de você de novo igual no primeiro dia.

— Até o cara com moicano escroto paga pau para aquele idiota — reclamou.  — Vem cá, por que vocês dois aí não participam da folga secreta com a gente no festival? Já facilita o meu lado.

— Gabriel — disse o garoto sem nem olhar para os demais colegas na mesa —, estão chamando você para vagabundear no Festival da Rosa.

— Me deixa dormir, Marlon — resmungou.

— Ele tá bem? — perguntou Denis. O espadachim havia respondido com uma voz fraca.

— Sim. Faltam quarenta e cinco minutos para o treinamento e ele aproveita todo o tempo que temos sobrando para dormir, é normal.

— Nenhum de vocês é normal, são muito lerdos — disse David. — Já entramos na Guarda, agora é só ir aos treinos e aproveitar a vida. Tudo do bom e do melhor em qualquer vilarejo que a gente pisar.

— Quem é lerdo? — Uma voz aveludada se aproximava da mesa.

— O Denis — respondeu Nicollas, que nesse meio tempo já estava no seu terceiro café da manhã. — David acha que ele tem que aproveitar a vida com as...

— Oportunidades de fazer o bem! — explicou-se rapidamente. — É isso que eu quis dizer.

"Não é possível que a Aika vai cair nessa", pensou Denis.

A presença da curandeira fazia os olhos dele brilharem, assim como os de todos os garotos que viviam em Prospéria.

Corpo com curvas suaves, pele bem clara e os característicos cabelos e olhos do clã Fujiwara, tão rosados quanto folhas de cerejeira.

Os seios não se destacavam muito por conta da cota de malha e do colete, mas David vivia dizendo que não havia chance de acontecer uma decepção quando ele testemunhasse o que havia debaixo de toda a parafernália do uniforme de guerreira dela.

De todos ali, seu colega é quem tinha maiores chances, isso era claro para Denis, mesmo não querendo concordar. Ser um lutador - e da Natureza do fogo ainda por cima - era algo difícil de competir contra, ainda mais sendo um defensor de Natureza da água, o completo oposto.

Aika havia chegado com algumas amigas, montando um grupo grande na mesa, quase uma roda de fofoca, como se os tempos de escola não houvessem acabado.

Somente Julie não se juntou a eles, preferindo sentar-se para conversar com Marlon sobre os treinamentos de animalistas e brigar furiosamente com Gabriel sobre a preguiça dele, como Denis sempre a viu fazer.

— Já que estão falando de fazer o bem — continuou Aika —, que tal fazermos algo em prol do nosso bem e pensar na folga secreta e em quem vai ficar de olho nos mestres dessa vez? Temos que tirar as maçãs podres do caminho.

— Isso não é serviço de guerreiro, não colhemos frutas — respondeu Nicollas.

A garota só acariciou a cabeça dele e sorriu como quem passa por um filhotinho inocente na rua, então continuou a conversa.

— A pré-avaliação acontece no campo número cinco, vão deixar usarmos toda nossa força. — explicou Francine com certa frustração, já que era a única tendo que refazer o treinamento naquele grupo. — É só vocês mostrarem que não somos como aquela equipe desastrosa do Lucien e aí os mestres vão ficar menos desconfiados.

— O tal mago lá deve ter ficado mal com toda essa situação, ele e a menina pareciam ser bem intencionados — disse Denis.

Todos olharam descrentes para Denis quando ele disse aquilo.

A maioria ali era de rostos conhecidos, pessoas que cresceram juntos dele Prospéria, apenas um ou outro tinha vindo de vilarejos vizinhos para se alistar na Guarda.

Cada um deles tinha uma personalidade completamente diferente, a ponto de fazê-lo questionar se realmente passaram a vida toda no mesmo lugar. Porém, algo que havia juntado todos em um único objetivo foi a presença da dupla de magos.

Denis já tinha ouvido de sua mãe histórias sobre o que aconteceu na "Noite dos Demônios Internos" e fazia sentido pensar que descendentes de uma família criminosa poderiam trazer grandes problemas para o vilarejo. Um deles já até havia causado a morte de um mestre, o que não acontecia há anos.

No entanto, seu pensamento divagava para um outro lado, fazendo-o questionar-se se essa era a sua parte diferente dentro daquele grupo. Nenhum dos dois magos parecia representar perigo e o Conselheiro Bernard havia dito que o garoto não teve culpa pela morte de Placide.

Depois do incidente, o trio se desmanchou e em pouco tempo eles não foram mais vistos dentro da Guarda. Com exceção, algumas vezes, de Lucien, que vinha buscar livros com o Conselheiro Durant, mas não parava para conversar com ninguém.

Nicollas estava longe de nascer na época dos magos e toda sua família era de fora do vilarejo, então não dava para conversar com ele sobre o que fazer com relação a Oliver e a garota vermelha. Mas, de qualquer forma, Denis já sabia qual a resposta que iria ouvir: "Eu sou forte! Se me atacarem, eu ganho dos dois".

— Ei, Denis. — Aika estalava os dedos na frente dele. — Prestou atenção na explicação da Francine?

— Hã? — Ele voltava aos poucos para a realidade — Ah, sim, entendi, foi mal. E sobre essa "folga", dessa vez eu não quero participar.

— Ora, vamos. — A garota suplicou suavizando ainda mais a voz e olhando nos olhos dele. — Vai mesmo recusar um favor?

— É claro que não! — interviu David. — Ele vai comigo sim, pode deixar.

— Ótimo! — A garota sorria e acariciava o rosto de David. Em seguida, virou-se para os outros guerreiros na ponta da mesa — E vocês aí? Nada?

Nenhum dos três parecia interessado no assunto.

— O Marlon eu sei que está de bom humor, porque a reputação da Vivienne caiu mais ainda. — Jogou um sorriso provocante. — Depois que ela foi treinar com Bernard e tirou do seu pai o posto de guerreiro mais forte do Vale do Céu, essa queda da família Villard foi boa para vocês.

— Eu tô fora — respondeu Julie levantando a cabeça de Gabriel, que estava em sono profundo. — E esse idiota, acho que não liga também.

— Você não sabe como eu estou — respondeu Marlon, ainda sem olhar para o lado.

— Mas sei que concorda que, no fim, você ainda ganhou alguma coisa com essa história.

— Tanto faz.

— Ei. — David tentou chamar de volta a atenção de Aika. — Voltando ao nosso assunto, onde vamos ver vocês durante o festival?

— Eu e a Julie participamos da cerimônia no palco todo ano, tonto, onde acha que vamos estar? — disse Marjorie, que estava de pé próxima do grupo, mas recusava-se a sentar com os garotos.

— Então está resolvido. — Aika deu um pulinho de alegria. — Vamos entrar em detalhes ao longo do dia.

"Isso vai dar muito errado", pensou Denis.

 

***

 

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