Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 12: A verdadeira luta

Pela primeira vez, Oliver tinha ido até a casa de Lucien. Na verdade, era a sua primeira vez pisando dentro de uma casa na vida.

O assoalho era todo composto de tábuas maciças de madeira de ipê, as mesmas árvores que preenchiam o grande quintal da família Leclerc.

Antes que fosse autorizado entrar, Oliver teve que lavar os pés em uma pequena cisterna que ficava embaixo de uma dessas árvores. Parecia uma grande besteira, mas como Lucien prometeu dar a ele um par de sapatos novos, o jovem mago não demorou para fazer o que foi pedido.

— Caramba, é macio mesmo andar com isso aqui — disse enquanto rodeava a sala de estudos dos Leclerc olhando tudo, da mesinha cheia de livros abertos até as paredes da seção dos fundos, que tinham algumas marcas de queimaduras.

— Só não mexa em nada. — Lucien ajeitava uma cadeira para Oliver. — E sente-se aqui para eu dar uma olhada nos seus ferimentos.

Como ainda estava treinando intensamente apesar da expulsão, o jovem mago acabava se machucando bastante. Por conta disso, sempre procurava seu ex-companheiro da Guarda para tratar os ferimentos de forma adequada, desde luxações até cortes profundos, mas nenhum osso quebrado, uma promessa que ele tinha feito para Lucien.

— O que é essa cicatriz no seu braço esquerdo? — perguntou Lucien agarrando o braço de Oliver para não deixar ele recuar e atrapalhar o diagnóstico. — Parece até que um bicho fincou as garras em você.

— O vovô sempre disse que era uma marca de nascença — respondeu segurando a expressão de dor —, mas agora que você comentou, eu lembro que senti uma dor forte nesse lado quando aquela presença estranha apareceu lá na caverna ontem.

— Já conseguiu falar com a senhora Emmanuelle? Seria bom a gente saber a composição completa do veneno.

— Ainda quero juntar coragem para falar com a Vivienne antes, na verdade. Não vejo ela desde que o Placide morreu.

— Só promete que eu não vou ter que subir lá na parte alta do Vale do Céu para te buscar com uma maca.

— Foi ela quem começou!

— Então termine! — respondeu aplicando um leve chamuscado na ferida da perna de Oliver para limpá-la, algo que quase fez o garoto chutar seu rosto.

Enquanto Lucien preparava uma bandagem para o tornozelo dele, Oliver viu uma menina se aproximando da porta da sala de estudos. Ela vestia a mesma túnica que o curandeiro usava por baixo de sua capa vermelha.

— Ei, acho que ela quer falar com você.

— O que foi, Alice? — perguntou Lucien ao virar para ver a garotinha.

— Esse é o seu amigo sem teto? Ele tem cabelo de velho. — A garota segurava o riso.

— Como é?!

— Vai embora, anda. — O curandeiro foi se aproximando da porta para fechá-la de novo.

— Você tem outra visita.

— OI, LU! — Uma garota entrou escancarando a porta.

— M-Melanie?! O-oi, e-eu não te esperava aqui hoje.

Oliver quase soltou uma gargalhada ao ver Lucien ficando completamente atrapalhado de repente.

— Ah, desculpa, não sabia que você estava atendendo.

— N-não se preocupa não, é só um conhecido, e eu já estou acabando os curativos.

— Sou só um conhecido agora? — perguntou, ofendido.

— Entendi. Oi, meu nome é Melanie, prazer. — Aproximou-se de Oliver para cumprimentá-lo.

A garota tinha pele bronzeada e cabelos negros com uma pequena franja acompanhada de mechas onduladas ao lado do rosto e um rabo de cavalo alto. Porém, o grande destaque eram os olhos turquesa dela, combinando com seu colete rosado e calça roxo escuro.

— Prazer, eu sou...

— Oliver Rivail, uma pessoa que fez várias coisas erradas e que está precisando consertá-las agora — disse Lucien entrando no meio dos dois, virando-se para a garota. — Por que você está aqui?

— Sabia que seu pai não estava, então pedi para sua irmãzinha me deixar entrar. Lu, eu ainda quero que você pense no que conversamos.

— Melanie, eu não vou colocar você como minha nova dupla.

— Vai, por favor. — Ela insistia enquanto segurava a mão de Lucien. — Por que não? Esse garoto voltou a treinar com você?

— Na verdade, fiquei por conta própria mesmo — respondeu Oliver, levantando-se —, mas nós dois vamos nos juntar em uma missão agora e...

— Não! — gritou Lucien tapando a boca de Oliver em uma fração de segundo. — Não tem missão, não tem nada.

— Espera, é um projeto secreto de vocês? Anda, Lu, deixa eu fazer parte. Eu estou louca para sair de casa.

— Sem essa de ficar insistindo, eu não posso deixar você se arriscar. Nem consigo imaginar o que seu pai faria se você se machucasse.

— Espera, a Francine está envolvida nessa "missão" aí? — O olhar da garota mudou rapidamente.

— O quê?! Não, é claro que não. — Enquanto Lucien falava, ela parecia rosnar de raiva.

"A diversão já acabou, vou ajudar o coitado", pensou Oliver olhando a cara de vergonha do jovem curandeiro.

— Ele disse a verdade. Eu nem sei quem é essa aí que você mencionou.

— Melanie — gritou Alice, que tinha ficado na porta observando tudo —, vem ver meu vestido novo, deixa meu irmão de bobeira aí.

A garota acenou com a cabeça e virou-se para Lucien novamente.

— Depois eu volto, tá? E é sério, eu preciso da sua ajuda.

— Tá bom. — Ele respondeu timidamente, ainda segurando a mão da garota e acariciando-a.

Assim que Melanie e Alice saíram da sala de estudos, Oliver começou a encarar o curandeiro para ver a reação dele.

— O que foi?

— Ué, nada. Só fiquei surpreso que você não fica de olho só nos livros. E ainda tem concorrência por você.

— Pode parar! — O rosto de Lucien continuava completamente vermelho e ele suava frio. — M-Melanie é uma grande amiga minha e a Francine foi minha companheira de equipe no primeiro ano. Eu fui a causa da nossa reprovação, ela deve me odiar. É que as duas já não se davam bem antes.

— Tudo bem, não falo mais nada. 

— E a Melanie é filha do Conselheiro Etienne, não posso nem sonhar em fazer nada.

— É sério? Filha daquele insuportável?

— Ele é o defensor mais respeitado do continente, vê se toma cuidado com o que diz.

 

— Quer saber de uma coisa? Isso até me animou de ir conversar com a senhorita zero paciência. Se você conseguiu quebrar a barreira desse cara para dar em cima da filha dele, eu acho que eu consigo só falar com a Vivienne. — Oliver não fazia nenhuma questão de esconder o sorriso.

— Tomara que ela quebre seus dentes. — Lucien começou a guardar seus utensílios de tratamento. — Conheço várias receitas horríveis de chás medicinais para você beber a vida toda.

 

 

A parte alta do Vale do Céu tinha trechos de subidas desgastantes, com dezenas de degraus que iam tornando-se cada vez mais difíceis conforme a altitude mudava, exigindo uma respiração mais profunda.

Ventava frio e mesmo com os sapatos que Oliver tinha acabado de ganhar, não era o suficiente para escapas das dores dos calos que começavam a latejar. 

"Por que essa maluca tinha que viver no topo dessa maldita vila?", pensou enquanto esfregava os braços para poder se esquentar.

O caminho levava até um grande catavento no cume da montanha, mas antes que pudesse avançar, ele se deparou com um muro alto e uma placa de pedra ao lado que dizia "residência Villard".

Acima da placa havia uma corda amarrada a um sino.

— É claro que ela ia viver na maior e mais alta casa desse lugar — resmungou enquanto puxava a corda.

Alguns minutos depois, a própria Vivienne apareceu na janela no alto da residência que conseguia ser maior que a parede que a protegia.

— Não deveria estar aqui.

— Precisei vir falar com você, é importante.

De longe dava para perceber ela arqueando as sobrancelhas, curiosa. Não demorou muito para que a defensora descesse para resolver o assunto cara a cara.

— É bom ser rápido — disse enquanto fechava o portão de ferro da entrada, que tinha o formato peculiar de um grande escudo, como o que ela carregava —, não vou te convidar para entrar.

— Preciso falar com aquela curandeira que estava com a gente na muralha no dia da invasão.

— Para quê?

Oliver respirou fundo antes de tentar explicar para quem provavelmente era a pessoa que menos daria ouvidos a ele.

— Escuta, eu acho que tem algo que a gente ainda precisa resolver. Senti alguém me observando ontem e foi uma sensação estranha, igual a quando o invasor me atacou, só que muito pior. Os espíritos me falaram…

— Ah, garoto, não tenho interesse — disse levando a mão ao rosto. — Se ficou com medo de alguém se vingar de você pelo que houve, bem-vindo à vida real. Ninguém mandou sair daquele buraco e se mostrar para Prospéria. As pessoas têm raiva do seu tipo, é igual a garota vermelha, vocês deviam estar acostumados.

Vivienne virou-se para entrar novamente.

— Tem defensores entre os aprendizes, eu mando um deles patrulhar os arredores da sua casa. Placide morreu, ponto final, não insista.

Ela falava cabisbaixa, mas o luto não parecia ser o sentimento que preenchia seus olhos. A impressão era de que havia uma grande culpa.

— Bernard matou o invasor, sabia disso?

— Como ousa? — A expressão da garota logo mudou para um olhar de desprezo.

— Ele me contou, não estou inventando. — Oliver recuou com os braços levantados. — Sei que vocês dois estão péssimos e querendo acabar com essa história, porque eu também estou, mas não posso parar enquanto não sentir que acabou de verdade.

— E vai fazer o quê? Profanar o túmulo dele?!

— Só queremos saber mais sobre o que a curandeira viu.

— Queremos? — Uma nuvem de sombra começou a surgir em volta de Vivienne. — Aqueles dois idiotas caíram na sua conversa?

— O Lucien e a Leanor viram o que aconteceu comigo, pode perguntar.

— Mais uma palavra e te expulso para o Oeste eu mesma!

Vivienne cercou Oliver com sua sombra e, segurando na barra de um dos lados do portão, ela o retirou e o posicionou à sua frente. Era de fato um escudo, apenas tinha sido dividido ao meio.

— Por que você insiste em achar que eu sou o problema?!

— Esse interesse particular no Placide, sua aproximação de Bernard, de mim. O que eu deveria pensar?  — Ela chegava mais perto, fazendo-o descer os degraus e quase cair de costas. — Somos os que sobraram, não é?

— O quê?

— Nossos Demônios Internos. É isso que você quer! Até você sabe que a Natureza das sombras não é algo honroso como as outras. Fogo, Água, Ar, Terra e Luz, todas vêm de sentimentos e ações nobres, só nós usamos o mal para poder proteger esse lugar.

— Eu não quero fazer nada com você — disse enquanto continuava recuando lentamente. — Vamos conversar. Tudo o que eu sei é que a minha família ajudava a manter os Demônios Internos dormentes, eu não conhecia essa ligação com a Natureza das sombras.

— Se eu ver você livre por aí outra vez é melhor rezar para ter alguém para te salvar.

Vivienne bateu o escudo no chão e disparou uma onda de energia com toda a sombra acumulada no ambiente que teria arremessado Oliver para longe se ele não tivesse conseguido criar uma barreira com sua energia espiritual.

“Estou ficando mais rápido, isso é bom, mas ainda é desgastante”, pensou.

A garota posicionou seu portão/escudo de volta ao lugar e entrou para casa. Uma tentativa completamente frustrada, mas que tinha trazido informações valiosas.

— A luta não acabou, a luta não acabou — murmurou Oliver enquanto descia as escadas rapidamente.

Naquele momento, o coração batia tão rápido quanto seus pés a cada degrau abaixo. Por mais ansiedade que tivesse em comunicar-se de novo com os espíritos de sua família, ainda tinha medo da figura que o observava.

Era uma sensação que não passava de jeito nenhum.

Oliver estava convencido de que a Noite dos Demônios Internos era a verdadeira luta que não havia acabado, e não a recente invasão da muralha.

Seja lá quem fosse a pessoa que apareceu no dia em que o jovem mago estava lá, a ligação dela era com uma catástrofe muito maior.

Na noite trágica, o grande contingente de mestres e elites que ninguém ousava enfrentar estava longe de onde tudo começou, deixando Prospéria completamente exposta.

Esse novo ataque poderia ter sido uma forma de voltar toda a atenção deles para o Oeste outra vez, como naquela noite, enquanto um novo evento que estava para acontecer iria juntar várias pessoas.

“Mais alguém vai morrer naquele festival no Sul. Eu tenho que impedir isso!”

 

***

 

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