Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 13: Um assassino no Festival

A areia branca do vilarejo da Baía de Cristais era aconchegante e mantinha o frescor o tempo todo, especialmente à noite.

Uma brisa fria vinda do mar corria pela praia enquanto a luz da lua estava a ponto de ser refletida no chão, apenas ofuscada pelas fogueiras cuidadosamente distribuídas por todo o festival.

— Ei. — Nicollas tentava constantemente puxar assunto com Denis, que não aguentava mais a falação do garotinho. — Por que tem umas fogueiras grandonas aqui? O festival não é para a Lorde da Água?

"Agora eu virei professor de história", pensou Denis, levando a mão ao rosto. Mesmo alguém que tivesse crescido nas Terras Taciturnas teria ouvido falar da história de todos os Lordes, mas seu companheiro mal havia terminado a escola primária.

— Flamus e Aquion foram grandes amigas, então as duas Lordes são homenageadas, só que a Aquion é a principal aqui na região. Ela ajudou Flamus a ser uma curandeira depois da guerra, ela criou aquelas calotas espinhudas de gelo que a gente vê lá longe onde a muralha acaba, para que ninguém passe para cá navegando, e ela também foi a maior curandeira que já existiu.

— Legal. — A resposta rápida e distraída do menino o irritou ainda mais. — E aquela rosa gigante ali?

Nicollas apontou para o alto de um rochedo na ponta da praia. Havia uma rosa de gelo gigante perfeitamente esculpida de frente para o mar. Em certos momentos, quando as ondas eram mais fortes e subiam até a escultura, a água salgada a fazia brilhar ainda mais sem que ela quebrasse ou sequer derretesse.

— O nome é festival da rosa de gelo. Você tá de brincadeira, né?

— Eu sei, bobão, dá até para ver daqui aquela menina azul e a amiga dela dançando para homenagear a Lorde e todo mundo aplaudindo. É que no festival da corrida na areia, a gente sai para observar as gazelas correndo, porque elas representam a beleza, agilidade e brilho nos olhos da Lorde Terrion. A rosa de gelo existe para quê?

— São só símbolos. — Denis queria matar a conversa logo. — É tipo a lâmina de fogo de Flamus que fica queimando lá no centro da praça de Prospéria, o catavento do Lorde Arion no Vale do Céu, o ouro de Luzon na Floresta Frondosa e a montanha bizarra de Darkron lá no Oeste.

— Entendi — respondeu Nicollas enquanto dividia um picolé com seu tamanduá. Com todas as dúvidas respondidas, o pequeno animalista ficou mais quieto.

Como ele havia destacado, a dança da rosa ainda acontecia, então poucas pessoas se concentravam onde a dupla estava.

Alguns comerciantes estavam chegando para o pós cerimônia e um ou outro civil era visto andando pela praia. Para a tristeza de Denis, os casais andando de mãos dadas deixavam tudo ainda mais insuportável.

No entanto, a parte final da dança foi animadora, e por ser a primeira vez de seu companheiro de equipe testemunhando o festival, era divertido ver sua reação de entusiasmo olhando para o céu.

O ato final foi jogar para o céu vários flocos de gelo no formato de pétalas que começaram a cair pela praia. Alguns viraram água logo acima da fogueira, a maioria chegou no chão, mas um ou outro era caçado pelo garotinho e seu tamanduá que queriam experimentá-los.

— Se já terminaram, precisamos fazer uma nova patrulha — avisou.

— Vem logo então, vamos chegar primeiro, não é Danuja? — O tamanduá balançava sua cauda de bandeira e parecia empolgado para disputar uma corrida.

— Não é competição! E vê se fica de olho, a carroça de bebidas alcoólicas mal chegou aqui na praia e já tem gente bebendo.

 

 

Quando a dupla chegou na saída da cerimônia, a aglomeração era enorme. Quase não havia espaço para transitar no meio das pessoas, então Denis guiou Nicollas e Danuja para esperarem recostados na base do rochedo da rosa de gelo.

Era uma cena comum ter pessoas de vários lugares do continente prestigiando os festivais de cada Lorde, mas na Baía de Cristais era diferente. Uma qualidade altíssima na apresentação, que era muito mais festiva do que religiosa em relação às outras, também acabava trazendo mais público.

Como os aprendizes ficaram como únicos responsáveis pela patrulha, era possível ver alguns guerreiros elite - que eram um nível acima deles - aproveitando seu descanso.

— Vigiem direitinho — disse um arqueiro passando ao lado da dupla com duas mulheres abraçadas nele.

"Acho que eu devia ter aceitado a proposta da folga secreta", pensou Denis.

Quando quase todos os civis já estavam se encaminhando para a praia, David apareceu ao lado de Aika.

Os dois estavam um tanto cabisbaixos e contidos. Vinham junto de um grupo de pessoas, a maioria eram os outros guerreiros aprendizes, mas também estavam lá as irmãs mais velhas de Aika, sinal de que o plano parecia não ter funcionado.

No momento em que o garoto viu Denis, chegou perto dele para conversarem.

— Falei para você me ajudar, cara! A gente ia escapar no meio da multidão lá em cima.

— Você está com uma garota no festival, dá um tempo, nem isso eu tenho. Por que não tentam enganar as duas aqui na praia e sobem lá de novo?

— Daria para ver a gente daqui de baixo. E, para falar a verdade, a Aika não quer mais, sei lá o que aconteceu que desanimou tanto ela. Eu fiquei a um passo de conseguir o que queria.

A bela curandeira saiu de perto das irmãs para falar com os garotos, mas foi impedida por Danuja, que parecia querer pular nela.

— Ai, tira esse bicho daqui! — O faniquito dela fez Nicollas gargalhar.

— Ele gostou do seu perfume de flores.

— E daí? Não quero que ele fique lambendo minha perna. Eu posso te obrigar a pôr uma coleira nele.

— Esse bichinho é tranquilo, vai por mim — disse Denis, tentando acalmá-la.

— Da última vez que acreditei em você, tinha dito que ia ajudar a gente — sussurrou.

— Espera aí, o David que falou por mim aquele dia.

— Não importa — respondeu irritada olhando para as irmãs e sentando ao lado do lutador de fogo.

— A Marin é fácil de distrair. Marjorie adora tanto ela que as duas não pararam de conversar desde que o festival acabou. Ela gosta de se exibir para todo mundo, mas tem alguma coisa na minha irmã que deixa ela mais escandalosa. O problema mesmo é a Miwa, que não sai do meu pé.

— Aika! Não sai de perto, ouviu? — A irmã do meio gritava enquanto o grupo continuava em frente para chegar na praia.

— Viu só? É um saco.

— Falando em gente irritante — disse David cutucando Aika com o cotovelo.

Mais três pessoas estavam chegando para entrar na praia e não demoraram para chamar a atenção dos aprendizes. Era a equipe de Lucien, que mal parecia ter dado atenção a eles enquanto passavam conversando entre si com certa pressa.

— Acho que temos uma forma de fazer a patrulha ficar mais interessante. — Aika estava com um sorriso impiedoso.

— Gente, os três não são proibidos de ficarem aqui — advertiu Denis. — Não se esqueçam que um deles é filho de Conselheiro.

— Não precisamos ser maldosos e expulsar eles de graça, é só termos motivo para isso. O mago é fácil de provocar, vamos lá.

Oliver foi barrado por Julie e Gabriel, seguidos de perto por Marjorie, que abandonou sua conversa com Marin para confrontar a garota vermelha. Talvez a briga fosse começar antes mesmo de alguém falar alguma coisa.

Aproximando-se, Denis viu Gabriel segurando o cabo da sua espada de pedra e fazendo um gesto para o grupo recuar.

— Facilita as coisas, por favor — disse o espadachim.

— Não queremos problemas, Gabriel, é sério — insistia Lucien.

Oliver não falava nada, sequer olhava para algum deles, estava mais preocupado em olhar para a multidão.

— Queríamos assistir a apresentação. Aliás, eu gostei bastante — disse Leanor olhando para Marjorie.

Ela ainda estava com o vestido utilizado na dança, feito de seda e todo decorado com pequenas pedras de gelo. Era uma vestimenta que só alguém da Natureza da água aguentaria usar.

— Ah, legal, acho que… você... Acho que não tem problema me elogiar — respondeu virando o rosto e empinando o nariz.

— Como se ela soubesse o que é bom, eu não aceitaria bajulação vindo de alguém assim, é nojento — exclamou Aika. — Ela mentiu sobre ser uma maga, pode estar mentindo na nossa cara de novo agora mesmo. E se veio só para assistir ela e a Julie dançarem, o show já acabou.

"Ótimo, agora ferrou", pensou Denis.

— Galera, deixem que eu cuido disso. Gabriel, você nem gosta de lutar e tem muita gente aqui, alguém ia acabar se machucando por causa do seu poder.

— É, tá certo — respondeu prendendo a espada nas costas novamente. — Eu quero descansar.

— Seu preguiçoso maldito! — gritou Julie, furiosa. — Dá para trabalhar pelo menos uma vez na vida?

Gabriel seguiu para a praia, tentando ignorar a garota quase pulando no pescoço dele para continuar discutindo.

— Cadê a Daiane? — perguntou Denis virando-se para Marjorie.

— Ela patrulha sozinha às vezes. Tá lá do outro lado, perto da base da muralha, depois ia me encontrar na carroça de frutos do mar. Acho que o Marlon está por lá também.

— Segunda árvore aqui do nosso lado — disse Nicollas, apontando para um arvoredo próximo enquanto escutava cochichos de seu animal familiar. — O Danuja sentiu o cheiro da Polo, a harpia dele, vocês não viram?

Marlon realmente estava no alto da árvore indicada, parcialmente camuflado na folhagem com sua grande harpia ao seu lado e apontando uma flecha para Oliver.

"É por isso que o mago não se mexeu? Um mês e meio atrás ele nem conseguiu desviar do ataque do David", pensou Denis.

— Se eu quisesse, teria me escondido melhor — respondeu abaixando o arco.

— Vai precisar. — O defensor aproveitou o único momento que teve para exaltar sua dupla na frente de todos. — O tamanduá do carinha aqui tem um olfato absurdo, você esqueceu de controlar o vento para desviar seus cheiros.

— Minhas irmãs estão longe demais para te ouvir, mas foi uma boa explicação. Vocês trabalham bem juntos. — Apesar da tentativa frustrada de receber atenção das meninas, ouvir a risada meiga de Aika foi música para os ouvidos dele.

— Meu amigão aqui sente tudo — disse Nicollas abraçando e acariciando Danuja com um sorriso de orelha a orelha.

— Você consegue dizer para gente se tem mais alguém escondido aqui? — Finalmente Oliver havia falado alguma coisa.

— Por que quer saber disso? — perguntou David, que só recebeu um sinal de Lucien para ficar quieto.

O grupo esperou o tamanduá fazer mais uma busca pelo olfato por alguém que estivesse por perto. Os ronquinhos da respiração do animal eram um tanto engraçados e ele às vezes colocava a língua para fora, como se estivesse se esforçando.

Por fim, virou para Nicollas e grunhiu uma resposta que só ele saberia decifrar.

— Cheiro de cerveja no meio dessa mata aí atrás da gente.

— Ai, ninguém merece — reclamou Marjorie. — Outro bêbado estúpido que ou vai vomitar ou vai fazer as necessidades no mato. Todo ano é isso!

— Acho que a pessoa não fez nada não — disse o pequeno animalista. — Ele sentiria o cheiro de vômito e bosta.

— Olha a boca, moleque! — advertiu Denis. — Tem mulheres aqui.

Danuja grunhiu alto e correu para trás do garotinho, enrolando-se nas pernas dele.

— O que aconteceu? — perguntou Leanor.

Nicollas olhava apreensivo para as árvores e abaixou-se para acalmar seu amigo de quatro patas. A harpia de Marlon crocitou abrindo suas grandes asas cinzentas e começou a levantar voo, indo imediatamente para onde o tamanduá olhava.

— Ele sentiu cheiro de sangue.

 

 

— Eu sabia! — vociferou Oliver preparando-se para correr, mas foi impedido por Denis, que sacou seu escudo para impedi-lo.

— Ei, pode parar aí. Você não é parte da Guarda, é assunto nosso.

— Que diferença faz?! Alguém foi atacado.

— Faz toda a diferença — respondeu David. — Marlon já saiu correndo atrás da Polo, vamos.

— E você pode parar aí também, vermelha — advertiu Aika, posicionando-se à frente de Leanor. — As areias aqui não precisam da sua podridão. Vai causar mais apavoro do que já precisamos e você nem tem habilidades da Natureza.

A discussão entre as garotas só aumentava, mas não havia tempo para isso. Denis, David e Nicollas saíram correndo observando a Harpia voar por cima das árvores até conseguirem encontrar seu alvo.

Passando pelo meio da multidão, ninguém parecia suspeito e nem mesmo haviam percebido o sumiço de alguém. Tão pouco os Elites se deram conta da urgência dos aprendizes, já que continuavam com a sua farra.

— Aqui! — Nicollas apontava para uma pequena trilha que continuava no fundo da mata.

Denis colocou seu escudo à frente. Tinha o formato de um triângulo com uma ponta laminada e apresentava uma coloração azul turquesa quando sua habilidade de gelo era passada para ele, uma lâmina fria perfeita para cortar o matagal que estava no caminho deles.

Ao chegarem quase no meio do local, Danuja começou a farejar novamente. A pouca iluminação naquela mata fechada, somente sustentada pelas fogueiras ao longe, não ajudava muito. Também havia um silêncio muito incômodo no ambiente, era tudo tranquilo demais.

— Pessoal, eu não consigo usar o meu fogo aqui com força total, vou acabar incendiando tudo — argumentou David. — Se precisarmos bater mais forte, o pivete tem que estar pronto.

— Os dois aí ouviram, né? — Denis mudava seu escudo para postura de defesa, abaixando-se para esconder quase todo o corpo atrás da proteção. — Preparem-se.

O corpo de Danuja aos poucos foi sumindo e dando lugar a uma fina luz alaranjada que se destacava ao se misturar com o corpo de pele escura de Nicollas. O pequeno animalista mantinha-se de olhos fechados e esticava os braços dos lados para manter a energia luminosa fluindo somente naquela parte de seu corpo.

Logo essa energia formou pequenas garras com quatro dedos, sendo o terceiro um pouco maior e com unhas mais afiadas, como se fossem um par de foices abrindo suas lâminas.

Mesmo sendo possível ver as mãos do garotinho por baixo das garras luminosas, ele já não era mais totalmente humano.

— O cara do arco está aqui — disse Nicollas após farejar por conta própria o ambiente ao redor deles. — Também senti um cheiro estranho, alguma coisa podre.

Era possível ouvir o bater de asas da harpia, mas não havia ninguém onde o grupo estava posicionado. Denis olhava para o chão e via apenas um par de pegadas, mas nem a possível vítima estava por perto.

O trio circulava enquanto guardavam a retaguarda um do outro, observando atentamente as árvores e o chão.

— Denis, na sua frente! — gritou David. Alguém vinha na direção deles com algo pontiagudo na mão.

O defensor logo criou uma barreira de gelo a partir do escudo e usou os ombros como apoio para que David pudesse saltar por cima da proteção e atacar.

Acendendo levemente o punho direito, o lutador deu um soco que acabou pegando direto no chão, mas o levantar de brasas serviu para que Denis pudesse ver a pessoa.

Era alguém vestindo uma túnica do festival, ensanguentada na gola.

— É a vítima. Marlon, não atire!

O comando foi tardio e a pessoa acabou atingida no braço com um dardo, caindo de lado quase sem reação.

— Ficou maluco?!

— Foi só um dardo paralisante, ele estava armado.

— Porque deve ter ficado assustado, e provavelmente o cara bebeu. Pega leve.

— Cuidado! — David tentou avisar, mas o homem caído reagiu tão rápido que estava a um passo do rosto de Denis com sua faca.

O homem estava com a feição para baixo, como se estivesse praticamente inconsciente de tanta bebida junta do paralisante do dardo, mas nada o impediu de agir.

Vendo a lâmina chegar perto nesse ataque repentino, o garoto não conseguiria reagir. Quando já podia sentir ela começar a rasgar seu rosto, ele foi defendido por Nicollas, que segurou a lâmina com uma das garras e cortou o rosto do homem com a outra.

— Você está bem?

— É — respondeu ofegante —, eu acho que...

Repentinamente, ele ficou paralisado e seu corpo arrepiava, sentindo que algo estava tentando segurá-lo.

Era um aperto em todo seu corpo, somente permitindo-o mexer os olhos, e percebeu que não era o único. Os outros jovens guerreiros também travaram em seus lugares como se uma força maior os prendesse.

O homem levantou-se lentamente e, quando já estava de pé, começou a correr para o outro lado da mata, tentando escapar por fora da estrada principal.

O grupo não ficou preso por muito tempo, mas estavam impossibilitados de alcançá-lo. Denis viu Marlon passar por ele correndo desesperado e dar um salto com os braços esticados, pegando a harpia que caiu dura no chão, também vítima do estranho baque que os atingiu.

Antes que o perdesse de vista, o defensor viu uma grande barreira circular iluminada aparecer na frente do homem, que correu sem medo ao encontro dela, facilmente passando pela proteção.

— Esse maldito pode atravessar tudo?! — A voz de Oliver podia ser ouvida ao longe, berrando.

Lucien chegou logo em seguida, atendendo Marlon que estava caído com a harpia em seus braços. Marjorie também apareceu e foi atender os demais guerreiros com ajuda de Aika.

— O que aconteceu? — perguntou aplicando uma leve brisa gelada no corte de Denis.

— Não conseguimos nos mexer, eu sei lá o que houve.

— Cadê a vítima?

— Teoricamente, era aquele cara que saiu correndo.

As curandeiras se entreolharam, confusas.

— Vamos relatar tudo para o Conselho imediatamente. O festival não parou, então podemos fazer isso antes que chegue aos ouvidos do público.

 

***

 

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