Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 14: Um segredo descoberto

Estar deitado na grama em uma tarde de pouco sol poderia ser o clima perfeito para um cochilo. Porém, com todos os problemas que estavam acontecendo nos grandes vilarejos do Leste, era impossível. Isso deixava Cédric ainda mais indisposto para bancar o mestre.

Ele passou mais de uma hora observando sua "aprendiz de ocasião" atirando flechas e correndo por obstáculos em volta da torre de arquearia. Estava acompanhado de um insuportável arrepio correndo pelo seu corpo, além dos rumores passando por sua cabeça.

Desaparecimentos haviam sido registrados em diversos locais. O mais assustador para os civis foi do homem que sumiu no meio do festival na Baía de Cristais.

Leanor estava lá, mas não parecia querer falar sobre aquela noite. O silêncio constante deixava o treino ainda mais demorado. E se já era difícil para Cédric puxar assunto com alguém, quando essa pessoa se negava a conversar sobre o único assunto que ele teria capacidade de desenvolver, era um pesadelo.

Restava continuar o que estavam fazendo.

— Pensei que aquela moça estaria aqui — disse Leanor, quebrando o silêncio.

— Pode ter certeza que ela está nos observando.

— Como você sabe? Eu não vi nem sinal dela aqui por perto até agora.

— Não conseguiria nem se tentasse, é o que faz a Marcelle ser tão perigosa.

— Então como você sabe? E como ela pode ser super perigosa e andar por aí tranquilamente?

— Sobre saber ou não, é uma espécie de calafrio que eu sinto que você não entenderia.

— Tá, mas e a outra pergunta?

Cédric suspirou longamente.

— Viu os olhos dela no outro dia?

— Sim, pareciam…

— De uma víbora — completou. — Acontece quando ela tem alguma emoção forte. É parte do animalismo, mas já aprendi a lidar com isso. Uma das maneiras foi deixá-la vivendo sozinha em um lugar afastado.

— Isso é horrível! — Leanor jogava um olhar de repulsa para ele.

— Nunca disse para você que eu era uma pessoa legal. Nosso lado da muralha não é um paraíso. Agora, concentre-se no que está fazendo, já perdi a conta de quantas vezes errou o circuito.

— Sim, senhor.

Apesar de ter tomado a iniciativa para falar, o tom mais frio e respostas mais diretas do que na primeira vez em que se viram eram infantis demais para uma jovem que foi aprendiz de um Conselheiro.

"Tropeços, uso excessivo de força e respiração pesada. Tem algo errado com ela", pensou enquanto criava disposição para conversar novamente.

— Vamos parar um pouco — disse levantando-se e fazendo um gesto de pausa com as mãos.

Ambos ficaram se encarando brevemente até que a garota desviou o rosto para baixo, inquieta com o olhar carrancudo de Cédric.

— Escuta, menina, eu sou péssimo nisso, tá? Então por que não me conta logo o que aconteceu?

— Não aconteceu nada — respondeu ainda olhando para o chão.

— Foi o incidente no Festival? Não precisa ter vergonha de sentir medo. Não tínhamos problemas assim há um tempão.

— Não tem que se preocupar comigo, não aconteceu nada.

— Tudo bem, dane-se — respondeu virando as costas e jogando os braços para cima.

O mestre arqueiro caminhou até um amontoado de troncos cortados e pegou dois para servirem de banquetas. Fazia tudo lentamente enquanto rezava para que Marcelle ou qualquer outra pessoa aparecesse ali para resolver o problema por ele.

Quando acabou de ajeitar dois assentos, um de frente para o outro, chamou a jovem para acompanhá-lo.

— O que vamos fazer?

— Resolver isso do meu jeito — Cédric segurou as mãos de Leanor sem mesmo que ela as cobrisse com sua manta.

— Você não... — respondeu hesitante, querendo recolher os braços.

— Sou péssimo com palavras. Falei de medo, mas tá na cara que não é, sei lá porque usei uma frase tão clichê, então vamos resolver isso com ações.

Ele olhava para as mãos pálidas e levemente calejadas da jovem, evitando apertá-las demais, somente as apoiando por cima das suas.

— Isso aí é raiva, então vamos fazer o seguinte: aperte minhas mãos com toda a força.

— O quê? Não, eu não tenho raiva de ninguém — balbuciou envergonhada.

— Se não fizer o que eu mandei, te expulso daqui. E não se preocupe, você não vai me machucar. Use toda sua força.

Leanor manteve-se no lugar por alguns minutos sem fazer nada, somente olhando para a palma das próprias mãos. Depois, virou contra as palmas de Cédric. Essa situação continuou por algum tempo, até que ela segurou levemente as mãos dele.

Gradualmente, a situação foi mudando.

Começou como se estivesse dando as mãos para um bebê. Em seguida, como se cumprimentasse uma pessoa de respeito. Foi aumentando cada vez mais a força até parecer que tentava esmagar cada osso dos dedos do mestre.

Por fim, os dedos dele estavam encharcados de lágrimas. E ela continuava fazendo ainda mais força para não se soltar.

— Eu não sou podre — declarou em prantos —, nem faço nada por mal.

Cédric mantinha-se em silêncio. Sabia que suas palavras seriam ainda mais inúteis ali, mas sentia-se melhor por ter feito a jovem extravasar o sentimento.

— Eu só quero poder viver a minha vida. É insuportável ter que lidar com essa gente! Por que eu tenho que fingir que não existo?

— Porque essa é a regra do jogo. Não é, Cédric?

Marcelle surgiu atrás de Leanor, que saltou assustada com a abordagem perfeitamente sutil da mulher.

Ela estava com o típico casacão verde-musgo. Dessa vez, seus olhos aparentavam humanos e eram escuros como carvão. Também carregava um par de espadas consigo. Uma maior presa à cintura e outra mais curta nas costas.

— São as pessoas com problemas que precisam se adequar ao mundo. Assim, a vida comum dos demais não será afetada e eles não terão que mexer um dedo para sair da sua maldita rotina confortável.

— Não precisamos desse assunto agora.

— Precisamos sim, mas isso não é sua função. Você tem que fazer uma coisa para mim, então eu assumo daqui.

Marcelle e Cédric foram até a base da torre para que ela pudesse começar a falar. Ele queria sentar-se antes de levar o sermão, mas a mulher o segurou pelo braço para mantê-lo de pé e se aproximou para cochichar em seu ouvido.

— Tem uma casa velha no Vale do Céu que é praticamente emendada ao pé da montanha, como se continuasse para dentro dela. — sussurrou com cuidado. — Vá até lá dar uma olhada.

— O que isso tem a ver com o que ela está passando?

— Tem muito a ver, pode acreditar. E se alguém achar aquele lugar primeiro, ela pode acabar morrendo.

O olhar controlado e o cuidado na fala mostravam que não era uma brincadeira ou uma tática para tomar o lugar dele. Sem mais questionamentos, Cédric avisou Leanor que precisaria se ausentar e deu a Marcelle o lugar na finalização do treinamento.

 

 

A entrada do Vale do Céu fazia a distinção perfeita entre os moradores. Quem morava na base da montanha e quem ficava nas grandes residências tinham vidas bem diferentes.

Todas as casas da base se organizavam uma ao lado da outra. Havia uma estrada de blocos passando pelo meio delas até as grandes escadas. Era como se os lares mais humildes abrissem alas para os moradores de maior prestígio passarem.

Algumas dessas construções seguiam pelas laterais, circundando o local com madeira e tijolos. Porém, tinha moradia mais afastada. Era rejeitada pelas ruas do vilarejo só era visível por causa da pequena chaminé que vinha de dentro da rocha.

Cédric tentou aproximar-se para observar melhor a inusitada casa. Porém, foi convidado a se retirar pelo cheiro grotesco que vinha de lá.

A chaminé expelia uma fumaça de carvão. Parecia que estava queimando o resto de algumas brasas, mas não era suficiente nem para cozinhar algum alimento. No entanto, um som familiar começava a chegar sorrateiramente.

Eram batidas de um velho martelo de ferreiro, lentamente executadas em um ritmo constante. Porém, inadequado para forjar uma arma ou equipamento.

Chegando mais perto, Cédric vestiu uma máscara cobrindo o rosto até o nariz para lutar contra o mal cheiro e bateu na porta de madeira que estava a ponto de cair.

Nenhuma resposta.

O martelo continuava em suas batidas sincronizadas, mas nenhuma voz vinha lá de dentro. Uma nova tentativa na porta, com batidas mais fortes. Ela acabou soltando um pedaço, criando uma fresta.

A indelicadeza não pareceu incomodar a residente. Era uma mulher de meia idade que podia ser observada pela abertura trabalhando em um pedaço de facão de açougueiro.

Seus antebraços eram raquíticos. Suas roupas, simples trapos jogados por cima de seu corpo. Por baixo dos panos que cobriam sua cabeça, era possível ver fios vermelhos desgastados saindo de um coque lateral.

Ela batia na lâmina sempre no mesmo lugar, mas o facão já não estava mais em alta temperatura para que ela pudesse forjá-lo. O forno atrás da mulher, construído diretamente na rocha montanhosa, estava em suas últimas pedras de carvão.

Não parecia ter existido a presença de qualquer outra pessoa naquele local há meses. Outro sinal claro disso era o fedor que vinha não só da figura misteriosa na tábua de forja, como também do quarto nos fundos da casa.

Cansado de tentar abordar a situação amigavelmente, Cédric arrombou a porta para poder entrar. Um movimento simples para frente foi o suficiente para derrubar a porta que já estava debilitada.

Nem mesmo aquilo havia causado reação na mulher.

— Sinto muito pela porta. Posso fazer outra melhor para você.

As batidas do martelo continuavam sem que ela ao menos virasse o rosto. A cabeça permanecia baixa e os panos cobriam sua feição.

— Senhora, eu preciso saber o que está acontecendo aqui — disse cobrindo a máscara com a mão, para aguentar melhor o cheiro podre da casa. — O que está guardado nos fundos?

Cédric aproximou-se aos poucos da ferreira, observando os arredores da mesa de forja. Havia um pequeno jarro de líquido inflamável e outras ferramentas de corte, todas enferrujadas.

O martelo na mão direita dela, apesar de simples, parecia pesado demais para alguém de aparência tão fraca. Olhando atentamente, foi possível notar vestígios de cianoacrilato nos dedos.

— Ei, quem fez isso? Colaram a sua mão para não parar de trabalhar?

Quando foi apoiar a mão sobre o ombro da mulher, sentiu uma fina linha de nylon presa a ela. Imediatamente, pegou o pequeno jarro e o arremessou dentro do forno, iluminando todo o interior da casa com as chamas.

No teto, haviam vários mecanismos de cordas utilizando os nylons para manter a mulher em seu lugar, executando o mesmo movimento repetidas vezes sem interrupção.

Ao retirar os panos que estavam sobre a cabeça dela, Cédric pôde sentir alguns fios de cabelo grudados que vinham junto dos trapos velhos como se fossem pedaços de feno, e o rosto anunciava o horror da cena.

Era um cadáver velho e em decomposição servindo como um boneco.

 

 

Antes que a cena aterrorizante continuasse, gritos foram ouvidos do lado de fora da casa.

— Não, espera!

— Já acabou, menina. Ele está lá dentro.

Cédric sacou seu arco e apontou para a entrada da residência. A sombra de uma jovem se projetava na parede, hesitante por se deparar com a porta arrombada. Ela adentrava lentamente na casa.

Era Leanor, que quase teve seu crânio perfurado pelo primeiro disparo da flecha de Cédric.

— Espero não ter que atirar outra vez para fazer você começar a falar — ameaçou.

— Eu juro que posso explicar! — A garota ajoelhou-se com as mãos para cima.

— Abaixa essa porcaria, Cédric, e deixa ela falar — disse Marcelle, escorando-se na parede da porta. — Eu já sabia disso tudo aqui.

A jovem sentou-se no chão respirando fundo antes de dar suas explicações.

— Meus pais morreram há alguns meses atrás. Eu fiquei com medo que as pessoas fossem me tirar de casa quando descobrissem, então montei esses mecanismos de fios. Era para fazer parecer que minha mãe ainda estava viva e trabalhando.

— E o cheiro horrível nos fundos?

— Tem um corpo na cama — respondeu Marcelle. É seu pai?

— Sim, ele sempre teve problemas de saúde, então ficava na cama para cuidarmos dele.

— E por que você foi até a Guarda pedir para ser guerreira em vez de contar tudo para eles? Por que veio me pedir para te treinar?

— Dizer a verdade só para confirmar as suspeitas que já tinham de nós? Meu pai foi expulso da família dele por amar minha mãe. Aí, desenvolveu uma doença que nenhum curandeiro queria tratar por ele ter se relacionado com uma vermelha. No fim, acabou morto e sem ajuda.

Leanor lembrava da situação deixando escapar uma voz chorosa.

— Meus pais queriam que eu tivesse uma vida melhor. A verdade é que eu só queria ter a companhia dos dois. Depois que tudo isso aconteceu, decidi que se pelo menos eu tivesse uma morte digna, não envergonharia eles.

— Como é que você continuou aqui todo esse tempo tão tranquila? — Cédric observava a casa em pedaços por dentro. Parecia um depósito improvisado.

— Minha mãe passou a vida toda fingindo que estávamos bem, então peguei o jeito. Fica fácil com o tempo — respondeu olhando com tristeza para o cadáver na mesa. — Eu já não dormia mais aqui dentro. Só entrava de vez em quando para acender a forja.

Cédric e Marcelle se entreolharam, chegando a uma mesma conclusão.

— Leanor — disse a mulher —, a gente vai precisar organizar nossas cabeças com tudo isso que descobrimos. É melhor não falar disso para ninguém até tomarmos uma decisão. Entendeu?

— Sim, senhora.

Antes de se retirar, a jovem vermelha fez uma reverência em agradecimento aos dois mestres, depois, saiu a passos apressados do local.

— Preparado para as consequências? — Marcelle aproximou-se de Cédric com a cara fechada. — A partir de agora não tem volta.

 

***

 

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