Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 15: Caminho sem volta

Cédric andava para um lado e para o outro. Ele olhava cada detalhe da casa de Leanor e avaliava a situação em que a garota se encontrava naquele local. Enquanto isso, Marcelle fuçava nos mecanismos criados pela jovem.

— Temos que admitir, a menina sabe o que faz — disse enquanto remexia os fios amarrados no cadáver. — Nem você conseguiu perceber essa engenhoca. Todo mundo iria pensar mesmo que a mãe ainda estava viva.

— Não sei até que ponto ela usava isso para enganar as pessoas. Talvez quisesse só enganar a si mesma — respondeu friamente.

Chegando no quarto dos fundos, que sequer tinha uma porta separando-o do resto da casa, Cédric viu o corpo do pai. Estava debaixo de uma coberta velha e parecia ter passado mais tempo em decomposição. Mal dava para reconhecer quem quer que ele fosse.

— Eu já falei o que tinha aí dentro — O grito de Marcelle vinha do outro cômodo.

— Como você sabia de tudo isso? — perguntou enquanto voltava para a entrada da casa.

— Ah, fala sério, né? De repente uma vermelha quer ser guerreira da Guarda? Esse pessoal vive se escondendo, ninguém suportaria ficar perto deles. Para ser sincera, fiquei surpresa que você aceitou fazer parte disso. Acho que foi só para me tirar do caminho de novo.

— Lá vem você com essa história.

— Diz para mim então que não é culpa sua que eu tive que ir morar isolada do mundo porque fui considerada uma "ameaça de grandes proporções".

Cédric observava os olhos de Marcelle esverdeando como pedras de berilo, mostrando que a víbora da floresta continuava sendo um obstáculo na vida dela.

Uma criatura misteriosa havia tomado a mulher quando ainda era jovem. Ela seria a nova protetora da vida animal, mas tamanho poder para um humano às vezes saía do controle.

Cédric já havia pagado caro no passado pelos erros que cometeu com ela. Isso fez com que ele se afastasse de Marcelle por uma questão de segurança, principalmente dela. Era melhor evitar conflitos e absorver quaisquer acusações e xingamentos sem revidar.

— Covarde — resmungou Marcelle, revoltada com o silêncio.

No lado de fora não parecia haver sinais de que outras pessoas tinham chegado naquele local antes. A casa era bem encoberta pelas pequenas árvores e arbustos. No entanto, o fim da tarde logo iria chegar. Aquele cenário na calada da noite poderia trazer outros indícios.

— Vamos esperar anoitecer. Quero investigar mais um pouco. Quando Leanor voltar, podemos ir embora.

 

 

O silêncio e a escuridão não eram uma novidade para Cédric.

Agir nas sombras tinha sido um costume nos tempos em que vigiava a muralha durante a madrugada. A situação trouxe uma espécie de nostalgia misturada com ansiedade, pois a recordação não era das melhores.

Ele e Marcelle haviam acabado de enterrar os corpos dos pais de Leanor. Apenas estavam aguardando o retorno da jovem enquanto se atentavam para alguma outra pessoa que poderia acabar passando ali por perto.

— Esse lugar não é nenhum esconderijo — reclamou Marcelle. — Se as  pessoas sabiam que tinha uma família vermelha vivendo aqui, ninguém iria passar perto da casa.

— Prefiro ficar de olho no que pode acontecer — insistiu Cédric. — Alguém pode aparecer. Talvez algum perseguidor. Ela claramente estava tendo problemas com os outros guerreiros.

Era uma noite sem lua e, até aquele ponto, entediante para ambos. Eles haviam passado horas em cima de galhos nas árvores em frente à casa da família vermelha. O mestre arqueiro estava torcendo para a jovem aparecer logo.

Seu pedido pareceu ter sido atendido quando ouviu passos lentos vindo em direção à residência. A jovem devia estar cansada. Porém, quando viu Marcelle sacar sua espada da cintura, apressou-se em descer para observar.

Quem apareceu foi um homem. Ele seguia na direção da vizinhança da parte baixa do Vale do Céu. Inicialmente, ignorou a presença dos dois guerreiros que olhavam para ele. Cédric aproximou-se devagar, sacando o arco.

O tal sujeito era um pouco mais alto que ele e estava todo vestido de preto. Apesar da feição calma e amigável, um dos lados da boca estava totalmente deformado. Era um visual asqueroso, mas familiar.

— Placide?

Quando ele virou o rosto para que Cédric pudesse encará-lo, não havia mais dúvida. Estava vendo seu velho amigo novamente.

Sombras começaram a surgir ao redor de Placide. Em um movimento de chute, ele arremessou essa energia na dupla. Marcelle rapidamente tomou a frente do confronto e cortou o ataque com sua espada.

— Eu sei o que você está pensando agora, mas não é ele — disse, trêmula. Seus olhos brilhavam ainda mais na escuridão e ela rangia os dentes deixando respingar um líquido venenoso na lâmina da espada. — Vamos acabar com isso.

A dupla o cercou e Cédric atirava as flechas sincronizadamente com os movimentos de Marcelle, buscando criar aberturas na defesa de Placide. Porém, o mestre lutador era rápido e não parecia se cansar de forma alguma.

Por fim, a espadachim conseguiu fazer um corte no braço direito dele, aplicando o veneno que ela tinha imbuído na lâmina.

— Escuta, acabou! — gritou apontando a espada para ele. — Você sabe que o efeito do veneno é rápido. Vai piorar se você se mexer.

— Não vai adiantar — comentou Cédric. — Olha a sua espada. O sangue dele já está apodrecido e o furo no peito ainda está à mostra. Temos que causar danos mais sérios.

Placide avançou para cima de Cédric e ambos travaram um combate corpo a corpo espantoso. A cada soco e chute que um dos dois bloqueava, a energia de sombras subia. Havia uma grande disputa de poder que os escondia completamente dos sentidos de Marcelle.

Diferente da mãe de Leanor, o corpo dele parecia não ter decomposto, mesmo depois de tanto tempo. Isso indicava que alguém havia desenterrado-o poucos momentos após o funeral e tomado os devidos cuidados para mantê-lo daquela forma.

A velocidade dos golpes era difícil de acompanhar. Cédric certamente iria acordar com um olho roxo depois de todos os socos que não puderam ser bloqueados. Um arqueiro e um lutador em um combate físico era a derrota certa para o lado menos experiente. Só restava se entregar.

Cédric acabou sendo chutado para longe em uma explosão de sombras que expandiu aquela nuvem que os escondia. Placide aproximou-se e parou de pé por cima dele sem qualquer sinal de que recuaria. Já havia preparado o punho para enterrar a cabeça de seu adversário no chão.

Antes de levar o golpe fatal, Cédric rapidamente pegou duas flechas da aljava e as fincou nas pernas de Placide, prendendo-o no chão. Em seguida agarrou o torso e os braços dele.

— Marcelle, é a sua chance!

Após o grito, sentiu a animalista invadir as sombras para atacar. Logo após um corte horizontal certeiro, as duas metades de Placide estavam no chão.

Cédric levantou-se ainda descrente do que havia acabado de testemunhar. Marcelle olhava apavorada para o cadáver atrás dele.

— Tudo está ficando pior a cada dia — disse batendo a roupa e pegando seu arco. — O que houve com você?

A nuvem de sombra começou a surgir outra vez. Ao virar para trás, Cédric viu a metade inferior de Placide preparando um outro chute com a energia sombria enquanto o resto do corpo também se levantava.

Rapidamente ele tomou a espada de Marcelle e a imbuiu com sua própria sombra para revidar. Ambos os golpes foram tão equilibrados que uma onda de energia irrompeu. Todos foram jogados para longe.

— Use a outra espada — disse Cédric, levantando-se apressadamente.

— Ficou maluco? Depois de tantos anos.

— É o único jeito de acabar com a luta. — Cédric tocou a ponta do cabo para desfazer o selo que prendia a arma. — Precisamos incinerar o corpo. Anda logo!

Marcelle sacou a lâmina menor que estava presa em suas costas. Logo que a pequena espada começou a sair da bainha, uma chama verdejante tomou conta dos arredores. O ambiente começou a ser engolido por um fogo ardente.

Ela levantou-se e, segurando no cabo com as duas mãos, fez um movimento para guiar o fogo para frente. Isso fez as chamas correrem como uma criatura descontrolada e queimar o corpo de Placide até o último centímetro.

Após um grande esforço para levar a lâmina de volta para a bainha, Marcelle debruçou-se no chão, aliviada.

— Há muito tempo eu não fazia isso. Perdi a prática — riu.

— Não dá para ficarmos aqui. Logo alguém vai aparecer e precisamos falar com a Leanor.

— Olha só para você. Escondendo as coisas do Conselho.

— Ela será a primeira suspeita de tudo o que está acontecendo — advertiu. — Você disse para eu me preparar para as consequências, não foi?

 

 

Leanor já estava correndo por horas para conseguir chegar até a casa de Oliver. Ela sequer se importava que suas vestimentas não estavam mascarando seu visual como deveria. Naquele momento, havia preocupações demais em sua mente.

"O que vão fazer comigo? O que vai ser da minha casa?" eram algumas das questões que repercutiam em seu subconsciente. Tamanha era a distração da garota com tais pensamentos, que ela acabou quase se perdendo do caminho e passava por seus companheiros de equipe sem se dar conta.

— Ei, Leanor! — gritou Oliver. — O que aconteceu?

— Ah, meninos. — Suspirou aliviada. — Os dois aqui, que bom, preciso da ajuda de vocês.

— Estávamos indo te procurar — disse Lucien. — Íamos investigar o desaparecimento que aconteceu em Prospéria hoje de manhã. As notícias estão começando a se espalhar rápido demais. O que houve?

— Escutem, eu... tive uns problemas em casa e não posso voltar. Se estão indo para Prospéria, pode ser em um lugar mais isolado?

O trio foi até o grande vilarejo e Leanor guiou os garotos por vielas onde os civis geralmente não passavam. Eram chamados de corredores vermelhos. Locais estreitos de terra batida por onde pessoas como ela costumavam andar. Isso foi antes da presença deles ser permitida ao ar livre com uso de proteção.

Mesmo que os vermelhos não estivessem utilizando aquele caminho há um bom tempo, ainda era mal visto que outros andassem pelo local. Era um significado de má sorte. Então não haveriam perturbações.

— Eu estou com um grande problema — disse enquanto ainda recuperava o fôlego de toda a correria.

— Aconteceu alguma coisa com sua família? — perguntou Oliver.

— Olha, pessoal, eu não estava sendo completamente honesta com vocês. A verdade… é que meus pais tinham morrido há muito tempo, mas eu nunca tive coragem de enterrá-los. Agora descobriram e eu acho que posso acabar perdendo minha casa.

Os garotos ficaram chocados com a revelação.

— Você estava correndo o risco de criar um depósito de doenças — reclamou Lucien.

— Cara, espera aí. — Oliver tentou acalmá-lo.

— Mas isso é sério — insistiu — os moradores da base da montanha poderiam estar em sério risco.

— E o que você faria no meu lugar, Lucien?

— O que eu fiz quando minha mãe morreu. Enterramos ela e prestei minhas últimas honras.

— Então por que você ainda veste a túnica dela? 

O garoto ficou sem reação, tomado por vergonha.

— Outra coisa: você tem seu pai e sua irmã. Oliver ainda tem o avô. Eu tinha perdido todo mundo!

— Eu... não quis diminuir a sua situação — ressaltou timidamente —, mas essa era uma situação que colocaria várias vidas em risco.

— Ainda vai colocar — disse uma voz furiosa no final da viela. — E eu devia começar com a dela.

Era Marcelle, vindo correndo para confrontar a garota.

— O que eu falei sobre conversar com outras pessoas?

— Aí, deixa ela em paz. — Oliver tentou segurar o casaco dela.

— Não encosta em mim, moleque — esbravejou mostrando as presas, fazendo-o recuar imediatamente com o susto.

— Todos vocês vão ficar quietos e me escutar — disse Cédric, chegando pelo outro lado do corredor vermelho.

Quando se aproximou, olhou bem para os garotos e parecia ter reconhecido Oliver. Por último, encarou Leanor com o típico olhar carrancudo, deixando-a incomodada.

— Você não está com problemas... ainda.

— Se um de vocês fizer mal a ela eu...

— Você nada. — Cerrou os olhos ainda mais quando se direcionou para Oliver. — Eu não sou o Bernard, te mato em segundos se eu quiser.

Cédric ajeitou as roupas de Leanor e observou melhor o local em busca de olhares desconvidados.

— Algum de vocês ficou no cemitério após o funeral do Placide?

— Por que faríamos isso? — Lucien rodeava o local tentando entender o que o mestre arqueiro procurava.

— Porque encontramos o corpo, andando e lutando mesmo com os ferimentos que deveriam ter matado ele.

— E antes que vocês comecem a espernear — complementou Marcelle —, temos certeza de quem enfrentamos.

O trio estava quieto e com um sentimento de desorientação. Oliver olhava fixamente para o chão com os punhos cerrados e trêmulos. Depois, socou de lado uma das paredes, distribuindo xingamentos ao vento.

— Entendeu o tamanho do problema em que vocês se meteram, não foi?

Leanor olhava confusa para o mestre. Ela não conseguia criar uma conexão entre as histórias, mas sentia o coração quase sair pela boca.

— Ninguém vai explicar para gente?! — Abriu os braços, inconformada.

— Vovô já me contou uma história de pessoas que usaram magia como instrumento de tortura em tempos antigos.

Ele parecia estar se esforçando para fazer a revelação.

— É nojento. Magia feita para manter a alma presa ao corpo mesmo depois da morte. Era chamada de necromancia.

— Basicamente um cadáver transformado em marionete pelos magos — completou Cédric. — E agora, a gente descobre o teatrinho na sua casa e que o mestre de vocês foi revivido por necromancia. É por isso que eu disse que ainda não é um problema. Só que isso vai mudar rápido.

— Minha família nunca faria uma coisa dessas.

— E eles descobriram que não sou maga. Até fui dispensada da Guarda.

— Opinião de gente morta e dos vermelhos não conta — retrucou Marcelle.

— Vocês não têm escapatória que não seja descobrir o verdadeiro culpado. E espero que o Adélard não vire um obstáculo aqui. — Cédric dirigiu o olhar para Lucien.

— M-meu pai não vai saber de nada. Prometo. — O jovem balançava a cabeça rapidamente para firmar o compromisso. — E eu vou continuar andando com eles dois pelos vilarejos para investigarmos.

— Ótimo.

— E já que a bonita quis abrir o bico — disse Marcelle voltando ao seu estado normal, perdendo o brilho dos olhos —, não desgrudem um do outro daqui para frente. Vamos ganhar algum tempo para vocês.

O trio foi dispensado e eles voltaram para as ruas de Prospéria sob proteção do casal de mestres, que logo foi embora.

Apesar de ter recebido o aviso de Cédric que poderia ficar na torre de treinamento, Leanor sentia-se desamparada e ansiosa. Não tinha nem como se imaginar dormindo. Sua vida dependia de achar um inimigo que ninguém ainda tinha conseguido encontrar o paradeiro.

Cada segundo passado era uma oportunidade perdida, um centímetro a menos no caminho que a colocava para o exílio.

"Não tem mais volta", pensou enquanto olhava para seus companheiros de equipe, que pareciam compartilhar do mesmo sentimento.

 

***

 

Acompanhe Guerreiro das Almas no Instagram!

Clique aqui



Comentários