Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 16: Atraído pelas chamas

Um vento seco corria pela estrada Norte. O calor na região era ainda mais intenso dentro da carruagem que levava Adélard para Prospéria. Porém, o Conselheiro do fogo lidava tranquilamente com a situação, pelo menos melhor do que seus colegas mestres da Guarda que o acompanhavam.

Alexander, que havia convidado o Adélard para jantar em sua mansão no Vale do Céu, usava sua Natureza de ar para aliviar o mormaço. Enquanto isso, o mestre animalista Lohan e seu mico-leão-dourado, Akin, só conseguiam reclamar, envergonhando sua esposa.

— Qual é, pessoal? Vamos a pé. Vai ser bem melhor que esse forno aqui — disse Lohan enquanto prendia o longo cabelo preto em um coque alto.

— O Adélard foi convocado para uma reunião, meu bem, assim é mais rápido.

— É, se quiser, desce e vai sozinho — disse Alexander abanando-se com a gola da sua camisa de linho cinza.

— O velho Durant criou um plano para gente achar o culpado dos desaparecimentos, Ad?

— Estávamos pensando mais em um plano de contingência. Conversaremos sobre os detalhes hoje antes de passar para vocês.

— Nossa filhota disse que tá indo bem nos treinamentos que você e o Alexander coordenam.

— É verdade, ela está bem contente, mas vocês não estão pensando em colocar a nossa Daiane no meio disso tudo, certo?

— Isso tudo está sendo levado em conta, Gabrielle. Não se preocupe.

— E o seu filho, Adélard? O que houve com ele depois que o mago e a vermelha saíram? — perguntou Alexander. Todos ficaram quietos.

O Conselheiro não respondeu. Tudo o que fez foi suspirar de impaciência enquanto olhava para sua espada embainhada e apoiada na parede da carruagem. Ela dava alguns pulinhos quando as rodas passavam pelas imperfeições da estrada.

— Não quero soar desrespeitosa. — Gabrielle quebrou o silêncio. — Sei que você é um ótimo pai, mas você purificou seu filho no Templo da Lorde Flamus? Ter gente como aquela do lado dele pode fazer muito mal.

Adélard continuou calado.

— Escuta, amigo, eu te entendo. Vivienne perdeu a garota que ela protegia há um bom tempo, mas continua insistindo na ideia de ficar na Guarda e ser defensora. Agora até luta com o escudo. Ela ficou forte, mas é difícil pôr na cabeça desses jovens que fracasso é fracasso e nada apaga isso.

— Eu avisei o Bernard no dia que ele levou esses dois esquisitos: “Você está se rebaixando só para conseguir ter alunos”.

— Você mais riu do que falou, na verdade, Lohan.

— O cara é forte e burro! O Ad concorda comigo.

Adélard, mais uma vez, manteve-se quieto.

— Aí, você tá quietão, cara. Se estiver se concentrando para fazer o fogo da sua espada aumentar a temperatura aqui, vou te dar uma surra.

— Nem estou encostando nela, Lohan.

— E daí? Cara, parece que o calor tá aumentando, como pode isso? — Lohan esfregava o antebraço na testa para secar o suor e abriu parcialmente o hanfu dourado que estava vestindo.

— Amor, olha a postura! — o rosto pálido de Gabrielle estava fervendo de calor e vergonha.

— Ah, eu sou animalista, de um primata ainda. Tá no sangue ser mais selvagem. E o Ad tá fazendo alguma coisa.

Impaciente com a conversa e insistência de Lohan, Adélard pegou sua espada e sacou parcialmente a lâmina. Queria mostrar que ele estava errado, mas foi surpreendido.

A espada começou a soltar leves brasas, que passavam pela pequena janela da carruagem e seguiam em direção ao descampado à direita deles.

— Aí, eu sabia! — Apontou Lohan.

— Pare aqui! — Adélard deu três socos no encosto do assento para chamar a atenção do cocheiro.

Ao descer, ele deparou-se com uma grande área de grama rasa que estava com sinais de queimada.

— Didier, o que houve aqui? — Alexander descia da carruagem junto de Lohan e Gabrielle.

— Ninguém sabe, senhor — O cocheiro acalmava os cavalos, que começaram a se agitar. — Tem cara de ser adolescentes que vieram aqui fazer fogueira à noite e perderam controle do fogo por causa da ventania.

Adélard continuava olhando atentamente para o chão. Se alguém estivesse ali no momento do fogo, poderiam haver rastros, mas era difícil de identificar.

O chão queimado continuava chamando pela lâmina do Conselheiro, que a desembainhou e deixou que as brasas continuassem sendo puxadas.

— A espada ficou doida aí, Ad?

"Só existe uma pessoa no mundo com habilidade de absorver fogo", pensou, deixando de responder o mestre animalista.

— O que tem ali no fundo atrás das árvores, Alexander? — Apontou com a espada.

— Acho que é um barraco de vermelhos. Nunca quis chegar perto. Quer mesmo ir lá?

— Ai, gente, então vou ficar aqui — disse Gabrielle fazendo cara de nojo.

 

 

Chegando na entrada do local, um cheiro estranho vinha de dentro, misturado com essências fortes de flores.

— Por que tem uma chaminé ali? — perguntou Adélard.

— Ouvi dizer que um casal morava aí. Uma vermelha e um cara qualquer. Cuidado onde toca.

— Não sou criança, Alexander — respondeu enquanto entrava para olhar por dentro da moradia — Por que eles ficavam aqui?

— Ora, você sabe, vermelhos moram em buracos quaisquer. Eles têm direito à terra se não incomodarem ninguém. Esse casal fazia uns talheres, facões e armadilhazinhas de caça em troca de comida.

— Nossa — exclamou Lohan, surpreso —, tem que ser maluco para aceitar alguma coisa deles.

— Não durou muito — ressaltou Alexander. — Tinha um açougueiro daqui de baixo vendendo carne podre. Descobriram que o facão dele foi feito pela vermelha, aí a reputação do casal foi por água abaixo. O homem morreu doente e a mulher deve ter definhado também. Se tinha mais alguém aqui, morreu junto com os dois.

— Por que acha isso? — Adélard mantenha-se atento aos arredores.

— É meio óbvio — riu. — A mulher não iria sustentar uma criança nem se quisesse vender o próprio corpo. Ninguém seria tão desesperado. Aí o que ia restar?

— Transformar a criança em uma caçadora nômade e fazê-la entrar na Guarda. — Adélard olhou para ele.

— Ah, tá brincando? — reclamou Lohan.

— Como você sabe? — Alexander estava atônito. — Achei que ela e o tal mago fossem uns imprestáveis.

— A mãe da Leanor era uma grande ferreira, que ensinou ela a caçar e se defender. O pai tinha uma doença terminal forte que não parecia ter cura. Lucien me deu bastante detalhes sobre os dois companheiros dele. Isso também justifica a queimada ali atrás.

Adélard apontou sua espada para frente e para o alto, na altura do ombro. Ao longe, era possível ver a ponta de uma torre branca.

— Cédric? O que aquele idiota do meu irmão tem a ver com isso aqui? — perguntou Lohan, franzindo a testa.

— A garota foi treinar arquearia com ele há alguns dias. E vocês dois sabem qual é a única espada da Guarda que consegue absorver o fogo assim.

— Lâmina da Chama Perseguidora — murmurou Alexander.

— Desgraçado, desgraçado, desgraçado, desgraçado!

Lohan baita com seu porrete nas árvores, chegando a derrubar uma delas em um único golpe. Rangia os dentes e urrava como um chimpanzé se preparando para lutar por território.

— Esse puto é quem sequestrou todo mundo. É isso ou ele tá tentando guardar algum segredo dessa suja vermelha aí. Eu vou matar ele!

Adélard, em passos leves e rápidos, levou sua espada para o pescoço de Lohan antes que ele pudesse derrubar mais uma das árvores.

— Ninguém aqui vai fazer nada — disse calmamente enquanto sua lâmina continuava liberando pequenas fuligens no ar, em direção ao chão queimado. — Eu vou até o conselho e apresentar tudo o que descobri. Até lá, procurem por Cédric e Marcelle.

— Fique à vontade para usar a carruagem, Adélard — disse Alexander. — Didier te leva até lá, para não atrasar tanto.

O Conselheiro do fogo agradeceu o amigo pela oferta e seguiu seu caminho na carruagem junto de Gabrielle.

 

 

Onze desaparecimentos e um assassinato.

Mesmo que a família de Etienne não tivesse sido parte desse infeliz grupo, isso o fazia sentir-se sufocado. A possibilidade de sua filha ou esposa serem as próximas era torturante.

Para um defensor, seria uma desonra enorme falhar na proteção de seu companheiro de equipe, mas falhar com a própria família era incomparável.

Mesmo que sua linhagem já estivesse aos poucos abandonando a tradição, ele valorizava suas conquistas. Conselheiro, pai, marido e descendente de uma linhagem renomada que outros deixaram para trás.

Àquela altura de sua vida, já pôde testemunhar a queda de outras pessoas, inclusive próximas a ele. Por isso, conhecia bem a tragédia da perda de uma boa reputação.

Quem nunca teve esse desgosto e parecia não se importar naquele momento era Adélard. Era o único membro do Conselho que ainda não havia chegado na Câmara para que a reunião pudesse ser iniciada.

— Isso é inacreditável. — Etienne resmungava enquanto batia os dedos na mesa apressadamente.

— Tenho certeza de que haverá uma justificativa. — A voz mansa do senhor Durant irritava-o mais ainda. — Enquanto isso, que tal me informarem sobre como as coisas estão indo no treinamento dos nossos novos guerreiros?

— A minha turma é incrível! — Bruce começava a rir orgulhosamente e sem fazer questão de baixar a voz. — Marlon vai alcançar o status de mestre com facilidade. Julie é muito criativa e sabe contornar bem suas imperfeições. E não tem como não falar do Nicollas. O baixinho tem uma disposição enorme e muita confiança!

"Nós vamos mesmo jogar conversa fora e perdoar a indisciplina? Não é à toa que o Bernard está aqui sentado com a gente", pensou.

— Marlon também é meu aprendiz, o único dessa vez. Concordo com tudo o que o Bruce falou — reiterou Rose.

— Que ótimo! E você, Etienne?

— Dois defensores. A filha do Lohan e o garoto bastardo da Simone, não guardei os nomes. Estão progredindo como esperado já que são filhos de outros guerreiros.

— Os nomes são Daiane e Denis. — Bernard comentou sem olhar para Etienne.

— Desculpe se não sou uma pessoa com tanto tempo livre para lembrar. Além disso, tenho uma família para tomar conta.

— O Conselho deveria cuidar de todos.

— Meus caros. — Durant levantava as mãos pedindo calma. — Primeiro, estamos aqui justamente para tratar disso que Bernard ressaltou e, claro, não podemos ignorar nossas vidas pessoais. No fim, todos têm razão. Etienne, só tome cuidado quando for falar dos aprendizes, atente-se mais a eles.

Em um momento onde o clima não poderia ser pior, o ranger do giro de uma maçaneta foi ouvido. Em seguida, os passos de Adélard, calmamente aproximando-se da Câmara.

Sem dizer uma palavra, apenas sentou-se e fez um sinal com a cabeça para que o senhor Durant abrisse a reunião oficialmente.

— Não preciso me estender demais, certo? Sabemos que os vários desaparecimentos são o ponto principal dessa reunião.

— Um pouco tarde, se quer saber — reclamou Etienne.

— Eu entendo, meu jovem, mas estávamos tentando adquirir alguma informação nova desde que Bernard confirmou que o invasor estava morto. Como isso não foi possível, temos que começar a tomar decisões.

O Conselheiro do fogo levantou a mão direita acima do ombro, solicitando que conduzisse a reunião. Durant cordialmente acenou com a cabeça, permitindo-o seguir.

— Aconteceu alguma coisa na base da Montanha das Águias, fora da estrada que entra no Vale do Céu. Eu estava investigando e por isso me atrasei. Aparentemente, foi uma luta.

Todos os olhares na câmara passaram a dirigir-se para Adélard, incluindo Etienne, mais curioso do que espantado com a informação.

— Sabe quem estava envolvido? — perguntou Bernard.

— Não tenho total certeza, a área tinha sido engolida por chamas. Elas apagaram cheiros e rastros que revelariam quem era. O que posso afirmar é que vi as brasas da minha espada sendo lentamente puxadas pelo solo.

— A Perseguidora foi desembainhada? — Etienne passou a suar frio. — N-não tem como, o Cédric jurou na saída dele que isso não aconteceria.

Durant fez uma pausa, como se esperasse pelas palavras adequadas para seguir com seu comentário. Bruce levantou-se da cadeira apoiando os punhos sobre a mesa, inquieto.

— Ele é um homem de palavra, mas regras são regras — declarou. — Como ele já foi expulso, a única opção seria exílio. Respeitamos a senhora Deschamps, que foi mestre dele, e você, Etienne, mas precisamos seguir as regras.

A notícia de uma simples suspeita já abalava o Conselheiro da luz enquanto ele ouvia todas as declarações.

Sempre que caminhava pelo centro de Prospéria, Etienne recebia de seus vizinhos várias perguntas sobre o caso, até mesmo das crianças. Todos depositavam esperança nas atitudes que o grupo mais importante do continente teria.

O problema foi descobrir que teria que enfrentar seu antigo companheiro de equipe.

— Se as coisas saírem do controle, precisamos tirar os aprendizes do confronto, fazê-los patrulhar as terras vizinhas. — Bernard era um dos que mantinha-se sentado. — Cédric e Marcelle são fortes demais para qualquer um deles e podem não estar trabalhando sozinhos.

— Concordo. — Durant acenou com a cabeça, ainda abalado com a informação. — Eu não gostaria de colocar esses jovens na linha de frente, ou sozinhos em outros vilarejos, mas prefiro que seja dessa forma.

Naquele momento, todos na Câmara sentiram uma leve vibração nos móveis e um vento um pouco mais forte entrar pelo corredor principal, fazendo as diversas velas quase falharem em manter a sua chama acesa.

Não era um terremoto, mas foi possível ouvir um estrondo, que para Etienne era extremamente familiar.

O Conselheiro da luz puxou a fila que dirigiu-se para fora da Câmara do Conselho. Com escudo em mãos e um olhar aflito pelo que poderia estar esperando do lado de fora, rapidamente confirmou suas suspeitas. Bastou olhar para o alto.

Uma grande nuvem negra formava-se no céu a alguns quilômetros do quartel da Guarda. Sua densidade fazia parecer que eles estavam no meio de uma noite sem lua.

Os sons estrondosos percorrendo o céu não eram seguidos de luzes fortes, pelo contrário, pareciam escurecer mais ainda conforme a nuvem se expandia.

Não era uma tempestade, era Cédric.

Algo tinha feito seu velho companheiro, o arqueiro das sombras, voltar a lutar. A esperança naquele momento era que ele ainda estivesse do lado da Guarda naquele confronto.

 

***

 

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