Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 17: Um plano de contingência

Necromancia.

Era pior do que Oliver poderia imaginar. Conversar sobre isso com o avô quase chegou a matar o coitado do coração. Sequer ele sabia que esse era o conflito que os espíritos familiares reforçavam para o garoto.

A única forma vil e cruel de magia estando de volta poderia enterrar a reputação dos magos de uma vez por todas.

Não havia outro pensamento que pudesse passar por sua cabeça naquele momento. O peso dessa informação dificultava o foco para conseguir procurar por mais pistas no vilarejo sobre os desaparecimentos.

Mesmo não oficialmente, ele ainda tinha o apoio de Lucien e Leanor como companheiros. Com a ajuda extra de Melanie, todos perambulavam pelo distrito Oeste de Prospéria.

A saída encaminhava para uma estrada feita de terra e cascalhos de pedra. Era um caminho que guiava os transeuntes para os acampamentos na base da muralha.

— Nada aqui também. — Lucien lamentava — Não existe outro jeito de fazermos isso? Só procurar pistas não adianta.

— Eu disse que poderia ter trazido a Núbia para ajudar a caçar esse invasor. — Melanie ficava olhando por cima do ombro de Lucien, sempre grudada com ele.

— Sua onça no meio de nós não ia ajudar muito. — O curandeiro disfarçadamente se afastava, envergonhado. — Você nem aprendeu a controlar ela perto de estranhos. Ei, Oliver, quando a Leanor volta?

— Eu não sei. Ela disse que só ia buscar o tal mestre dela e já vinha.

O jovem mago mantinha os olhos na muralha. Ele procurava lembrar-se de algum detalhe que pudesse ter passado despercebido na noite da última grande tentativa de invasão, mas nada vinha à mente.

— Ainda acha que mais alguém passou pela muralha naquela noite além do invasor que o mestre Archambault matou?

— Talvez — murmurou ainda pensativo —, difícil dizer.

— Não é estranho como aquele mestre da Leanor sabia sobre necromancia? Lembro que ele já foi além da muralha anos atrás em uma missão que gerou muitos problemas. É o motivo de ele ter sido expulso da Guarda. Ninguém nunca mais ousou sair do lado Leste depois daquilo.

Enquanto o grupo discutia o assunto, a garota vermelha apareceu no portal da saída Oeste. Ela vinha correndo e acenando, mas estava sozinha.

— Você não tinha ido buscar o tio Cédric? — perguntou Melanie.

— Ele disse que vem daqui a pouco — respondeu ofegante. Estava exausta do calor por ter que vestir a manta em uma noite tão quente. — Ele é seu tio mesmo?

— Só de consideração. Meu pai e ele formaram dupla durante vários anos.

Com uma conversa que não estava indo a lugar algum, Oliver voltou a pensar sobre o trajeto que o suposto invasor precisaria ter feito. Se deslocar da base da muralha até o grande vilarejo demoraria algum tempo e não teria muitas chances de camuflagem.

Não havia muito o que ele soubesse das capacidades de um necromante, mas era fato que eles utilizavam magia. Poderia significar que algum resquício dessa Natureza poderia estar presente nos locais onde ele passou.

No entanto, a identificação não era tão simples.

O garoto já havia sido ensinado pelo avô que todo ser humano possui uma alma, que se torna espírito quando o corpo morre.

Isso significava que qualquer sinal de energia espiritual presente poderia ser de uma simples criança que havia passado por ali ou de alguém que já morreu há muito tempo.

— Pessoal. — Oliver passou a observar a estrada. — Podem ficar de olho enquanto tento uma coisa?

— Ah, não! Eu sei o que você pensou — disse Leanor com a voz trêmula. — Da última vez, você quase morreu. 

— Tem um plano melhor? Pode me chutar outra vez, se precisar.

Ainda relutante, o grupo aceitou que Oliver se concentrasse na busca por algum sinal naquela área.

Não demorou para que ele conseguisse entrar em um estado de concentração profunda. Sua alma observava um vazio sem fim, mas estava mais sensível à presença de energia espiritual.

Como ainda era inexperiente, sua percepção não mudava de maneira tão radical, ela apenas ia um pouco além do que o corpo físico era capaz. Pouco a pouco, o fluxo de energia espiritual em volta tornava-se nítido. Era como pequenos fachos de luz flutuando pela área.

— Não me parece ter nada diferente, que droga — reclamou enquanto ainda utilizava sua habilidade.

— Então deixa para lá, não vamos abusar disso aí — avisou Lucien.

— Só mais um pouco.

Concentrando um pouco mais de energia e buscando afrouxar levemente o laço com seu corpo físico, Oliver começou a identificar pulsos mais fortes de energia espiritual.

O necromante havia passado ali. Porém, outra força estava começando a surgir.

Estava próxima e parecia aumentar, como se alguém estivesse preparando um ataque.

— C...ui...dad. — Ele tinha se desligado tanto do corpo que não conseguiu avisar seus companheiros do perigo.

Oliver precisava identificar a origem rapidamente.

Mais energia.

Seu corpo ajoelhou, mas não cedeu. Uma pessoa estava a alguns metros do grupo e iria atacar por trás.

"Preciso voltar", pensou enquanto quase instantaneamente restabelecia a conexão entre corpo e alma.

Ainda tomado pelo fervor de os proteger, Oliver facilmente conseguiu criar um grande círculo de magia para servir como escudo para o grupo. No entanto, ao receber o impacto do golpe, viu que não iria aguentar muito.

— Para trás! — gritou.

Uma espécie de porrete de madeira havia sido lançado e a luz vibrante da pintura ao redor dele criava uma força ameaçadora. Seu brilho era mais intenso que o círculo de magia, mesmo em um objeto bem menor.

Não demorou para aquela arma quebrar a proteção criada pelo jovem mago.

O grupo foi arremessado para longe com a explosão. O golpe foi pior para Oliver, que estava na frente e acabou recebendo o impacto da arma diretamente no estômago.

Ainda caído e tentando recuperar o ar, ele viu um pequeno mico-leão-dourado vir atrás da arma e levá-la de volta correndo, arrastando-a no chão. O pequeno animal a entregou para um homem vestindo um hanfu com fios de ouro.

Oliver reconheceu ser o mesmo guerreiro que havia criticado Bernard na cerimônia de boas-vindas.

— Eu vou dar uma chance para os dois aí atrás se afastarem da nossa dupla de criminosos — disse apontando o porrete para Lucien e Melanie.

— Senhor Bertrand, por favor. — Enquanto levantava, Lucien esticava os braços a frente, pedindo calma.

— Bertrand? — Leanor olhava para o homem.

— Mas não da mesma laia do imbecil que te acolheu, vermelha.

Antes que ele pudesse dar um passo a frente para um novo golpe, o zunido de uma flecha sendo atirada foi ouvido por todos ali.

Ela foi avistada indo em direção ao céu. Subiu sem perder velocidade até que entrou no meio das nuvens e desapareceu. Em seguida, um estrondo enorme ressoou como um trovão.

Marcelle apareceu misteriosamente ao lado dos jovens ainda caídos.

— Vocês estão prestes a ver algo que eu não imaginei que voltaria a testemunhar — enquanto ajudava Melanie a se levantar.

A luz da lua aos poucos foi sumindo daquela área. Todos olhavam as nuvens se expandirem e uma escuridão começou a tomar conta.

— É, realmente não somos iguais, Lohan.

Cédric apareceu caminhando devagar, vindo pela saída Oeste. Ao chegar perto do grupo de Oliver, parou para sentar-se em uma pedra. Fez tudo com muita calma enquanto Lohan só o observava, com certo receio.

— Por favor, meu irmão, não dê nem mais um passo a frente, ou vou começar a atirar — disse enquanto apoiava seu velho arco no chão.

 

 

O olhar cansado e o velho arco do mestre de Leanor não pareciam ameaçadores. Para desespero de Oliver, dava para ver a corda se esfarelando e a madeira rachar até virar pequenas lascas caídas no chão.

— A partir de agora, você me deve um arco, garota — disse Cédric.

— Você é inacreditável! — gritou Lohan enquanto caminhava valentemente em direção ao irmão. — Vai mesmo defender...

Como se fosse um raio no meio de uma tempestade, uma flecha feita inteiramente de sombras caiu próxima dos pés do mestre animalista.

— Esse é meu segundo aviso.

"Como ele fez aquilo?", o jovem mago observava o atrito entre os mestres, deslumbrado.

— Escuta, eu não boto a mão no fogo pelo garoto, mas a vermelha não tem nada a ver com isso.

— Seu traíra — murmurou Oliver.

— Então me entrega ele logo e vamos resolver isso.

— Quem dera fosse simples. — A máscara não deixava claro, mas Cédric parecia sorrir. 

— Não me tira do sério. — Lohan voltava a usar sua Natureza de luz em sua arma. Seu mico-leão-dourado parecia estar tão enfurecido quanto ele. A criaturinha gritava e mostrava seus dentes.

— Olhe em volta. — Marcelle gritou para Cédric.

Aos poucos, mais guerreiros da Guarda foram aparecendo ao redor do grupo, incluindo os membros do Conselho.

— Melanie?! O que pensa que está fazendo? — Etienne tentou caminhar até a filha, mas também foi interrompido por uma flecha de sombra.

— Ninguém passa até conversarmos sobre isso direito, Etienne. Sinto muito.

— Aí, você acha mesmo que pode dar conta de todo mundo aqui? — Um jovem espadachim sacou sua lâmina e deu sinal para o avanço de um pequeno grupo de elites.

Um dos guerreiros era um arqueiro de Natureza da luz, que tentou atirar contra a nuvem enquanto o resto avançava na direção de Cédric. O mestre levantou-se e, imediatamente, milhares de flechas começaram a ser lançadas do céu direto para o grupo que o atacou.

As flechas destruíram facilmente a tentativa do arqueiro de luz que ainda atirava sem sucesso na nuvem. Era uma chuva enorme e mortal despencando sem parar. Algumas das flechas caíam ao redor da área para afastar qualquer outra abordagem.

— Recuar! Recuar!

O espadachim gritava desesperado enquanto corria das flechas que o perseguiam e pareciam nunca acabar. Quando Cédric havia afastado o pequeno grupo que tentou atacar, dirigiu seu olhar para Etienne e o resto do Conselho.

— Agora que esses idiotas de classe inferior saíram, os adultos podem conversar.

 

 

Cédric caminhou até o senhor Durant, que parecia observar a situação com calma. Ninguém parecia disposto a desafiar o mestre arqueiro.

Chegando lá, fez um sinal para que Melanie pudesse se aproximar e deixou a garota ir até o pai, que a abraçou forte.

— Adélard ficou sabendo de algumas coisas... suspeitas... envolvendo você e Marcelle — disse o velho Conselheiro.

— Ele ainda não superou o fato de que eu sou uma espadachim de fogo melhor que ele? — gritou Marcelle.

— A Lâmina da Chama Perseguidora foi usada sem autorização — disse Adélard. — Próxima da casa da garota vermelha.

Oliver olhou imediatamente para Lucien, que estava apavorado com a cara que Cédric estava fazendo para ele.

— Eu não queria contar, eu juro! Eu e o Oliver nem sabíamos em que lugar ela morava lá no Norte. Não imaginei que iam encontrar.

Ignorando o jovem curandeiro, Cédric virou-se para falar com o Conselheiro do fogo ainda com a raiva estampada em seu rosto.

— Algum de vocês teve o mínimo interesse em voltar ao túmulo do Placide depois de tudo o que aconteceu?

Após a pergunta, Cédric passou seu olhar em cada pessoa presente. No portal da saída Leste, vários civis se aglomeravam para ver a confusão. Alguns o criticavam e outros pareciam não se importar com a pergunta.

Ele apenas suspirou e continuou sua fala:

— Nós vimos ele onde você encontrou sinais da espada da Marcelle, Adélard. Estávamos lutando contra um cadáver e a única forma de vencer foi incinerando ele.

— Espera — disse Etienne —, isso é... 

— Necromancia — gritou Oliver, ainda se recuperando da pancada e com receio de se aproximar do Conselho. — É real, mas não tem a ver comigo ou a Leanor.

— Garoto, a gente precisa de mais do que um "não fui eu" para resolver isso — avisou Bernard.

— Estávamos buscando sinais de algum ataque que pudesse ter acontecido aqui. Alguma prova para relacionar a aparição do Placide com o sumiço de todo o resto das pessoas. Eu senti uma energia espiritual mais forte nessa área, de alguém quem sabe como manipular ela. O necromante pode estar escondido em Prospéria.

A última frase foi o suficiente para começar um estardalhaço no local. Os civis, que até então só assistiam a situação de longe, tiveram que ser contidos por alguns dos guerreiros quando ouviram Oliver falar.

Alguns pediam a cabeça do garoto. Outros propunham que ele fosse exilado, pois achavam que o tal sequestrador estivesse atrás dele.

Antes que a confusão ficasse pior, Vivienne criou uma grande barreira cobrindo o portal do vilarejo para que o assunto pudesse ser discutido em paz.

Ambos se entreolharam rapidamente. Oliver não esperava que a garota fosse entender seu sutil gesto de agradecimento, mas fez mesmo assim.

— Precisamos ir atrás dessa pessoa, seja lá quem for — disse Cédric.

— Estou de acordo — afirmou Bernard. — Chega de esperar. Até tentei deixar isso para trás, mas está provado que minha falha naquela noite acarretou em um problema que, de alguma forma, ainda está por aí.

— Precisamos pensar nos civis e nessas crianças que acabaram de entrar. — Rose olhava preocupada para seu pai, que ainda não havia se manifestado. — É uma responsabilidade muito grande.

Durant parecia querer ouvir a opinião de todos antes de tomar uma decisão, e assim fez. Bruce, Adélard e Etienne apresentaram seus pontos de vista e, por fim, ele deu seu veredito:

— Os aprendizes vão patrulhar outras regiões, conforme já havia sido decidido por nós. Para os demais guerreiros, preparem-se. Os turnos serão ininterruptos em toda Prospéria e nos acampamentos perto da muralha. Avisem todos!

A barreira de Vivienne foi desfeita. Ela olhava para Oliver ainda de maneira séria, mas parecia carregar menos suspeita sobre ele.

— Cédric. — Durant direcionou sua atenção para o mestre arqueiro —, você e Marcelle precisam voltar ao que foi combinado. Não lutem até que seja realmente necessário.

— Sim, senhor — respondeu um tanto relutante.

Estando mais uma vez no centro de um problema, Oliver voltava a ter que encarar o julgamento estampado no rosto de todos. Porém, um em particular o incomodava muito, de uma forma diferente.

Era uma mulher muito alta e com corpo esguio. Estava toda vestida de preto e com uma maquiagem nos olhos que reforçava seu apreço pela escuridão, fazendo contraste com sua pele pálida.

Ela carregava uma espada tão grande quanto ela nas costas. Certamente era pesada demais para alguém como ela conseguir levantar. A lâmina preta parecia afiadíssima e poderosa, emanando sombras por toda sua extensão até o punho.

O coração do garoto começou a acelerar quando ele percebeu que a mulher o olhava fixamente, de uma maneira inexpressiva e bizarra. Junto disso, começou a voltar a mesma pressão que o fez sentir-se esmagado quando tentou se comunicar com os espíritos de sua família.

Antes que perdesse a calma diante do risco, ele sentiu a mão de Bernard segurar seu ombro. Aquilo o ajudou a voltar ao normal.

— Vamos conversar só nós dois — sussurrou o mestre.

 

 

Guiando Oliver para estrada afora, começaram a conversar.

— Senti você meio tenso ali.

— Tinha uma mulher lá entre vocês, ela era meio... estranha.

— Então minha intuição funcionou bem.

Bernard parou na frente do garoto. Olhou para os lados discretamente, sem mexer a cabeça. A nuvem de sombras de Cédric já havia cedido e a luz da lua tinha voltado a aparecer, então dava para ver a expressão séria no rosto do mestre lutador.

— A partir de agora, garoto, não confie em ninguém. Prepare-se para enfrentar qualquer um que aparecer.

— Espera, como assim?

— Eu conheço essa mulher que você comentou. Ninguém sabe o que se passa na cabeça dela porque ela é completamente sem emoções. Nunca demonstra raiva, tristeza, felicidade e uns falam que ela nem sente dor.

— E simplesmente deixaram ela ser mestra da Guarda?

— Quando sua força supera a de todo mundo aqui, é melhor ter você do nosso lado do que contra, concorda? Só lembre-se de que, mais do que nunca, você tem um alvo nas costas agora. Fique de olho. Farei o possível para manter eles longe de você.

O sorriso consolador do mestre fez com que o próprio garoto estampasse um pouco de felicidade, mesmo que por um momento.

— Obrigado, Bernard.

— E, olha, se eu fosse você, investiria mais nas conversas com a Vivienne.

— O quê? — Oliver ficou com o rosto vermelho.

— Ah, qual é, garoto? Eu vi ela olhando para você e aposto que isso te deixou mais calminho, não foi? — provocou. — Até pouco tempo, você queria sair esmurrando todo mundo e ela queria arrastar sua cara no chapisco. Agora, os dois estavam contidos. Suas chances estão boas.

— E-ela nem liga para mim. Inclusive, não tenho motivo para querer algo justamente com quem quase me matou no primeiro dia.

— Aham, sei — riu enquanto caminhava de volta para Prospéria.

Oliver continuava parado na estrada, paralisado de vergonha.

— Até amanhã, garoto. Vamos dar um jeito de te manter vivo enquanto essa confusão não acaba.

O mestre acenou, ainda de costas, despedindo-se do jovem mago.

 

***

 

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