Volume 1
Capítulo 18: Missão nas Terras Taciturnas
A tarde seguinte chegava com um gosto amargo misturado com insônia.
Oliver estava sem dormir desde que encontrou a tal pessoa misteriosa que estava observando-o nas últimas semanas. Mal conseguia se concentrar em outra coisa que não fosse as palavras de Bernard afirmando que o garoto era um alvo.
Nem a brisa levemente fria misturada ao som do córrego próximo a caverna e os cortes precisos de Albert nas frutas do almoço conseguiam deixar a mente do jovem mago mais relaxada.
— Dormiu mal? Quando acordei hoje cedo você já estava de pé. — O avô perguntou sem tirar os olhos da laranja que estava descascando.
— Não é nada, só fiquei ansioso para a missão de hoje.
Oliver tentou esboçar um pequeno sorriso em seu rosto cansado. Ele achava melhor deixar Albert fora de certos assuntos por segurança do avô ou mesmo para evitar alguns sermões que ele considerava desnecessários. Seria ainda mais preocupante se Albert soubesse da presença de um mago necromante.
— Por que te chamaram para uma missão se você foi expulso, Oliver?
— O Lucien vai precisar de acompanhamento em uma escolta que ele vai fazer porque ele não tem equipe e curandeiros não conseguem lutar, mas é tranquilo.
— Lutar contra quem? Isso é aqui no Leste?
A voz de preocupação começou a surgir e pesar nos ouvidos do garoto.
— Não, não, é luta contra animais peçonhentos, alguma coisa assim. A gente vai andar no deserto, então pode ter cobras, onças-pardas, escorpiões, essas coisas. Quer saber? Até um avestruz pode ser super perigoso. Nunca vi um, mas me disseram que um chute daquele bicho é mortal.
Albert levantou-se e, em seus passos lentos, chegou perto de Oliver, estendendo para o garoto a mão que segurava a fruta que ele estava praticamente lapidando com tanto cuidado.
— No dia em que você se der conta de que eu sou velho, mas não sou burro, vamos ter conversas melhores que essa.
— Vovô, eu tô ótimo. Foi só uma noite complicada de sono — respondeu, semicerrando os olhos seriamente enquanto pegava a fruta da mão do avô.
— É o que espero. — Albert acariciou a cabeça do neto e a aproximou de seu peito para dar um abraço. — O importante é que você tenha uma vida plena, porque quero te ver ficando tão velho quanto eu.
— V-valeu — respondeu timidamente.
Distraído pelo momento reconfortante com o avô, Oliver mal havia prestado atenção nos sons de alguém se aproximando pelo eixo do córrego. Rapidamente o garoto largou o abraço de Albert e, com uma velocidade impressionante, criou uma grande proteção com o círculo de magia na entrada da caverna.
Saindo daquela barreira, concentrou o máximo de energia espiritual no seu corpo até que ele estivesse quase brilhando como um farol e tomou uma postura de combate.
— Ei, ei, garoto, calma aí. — Bernard gesticulava com os braços para Oliver parar.
— Ah, Bernard, que droga! Isso é hora de querer assustar? Eu até esmaguei a laranja que estava na minha mão. — Quase em um estalar de dedos, a barreira e a concentração de energia se desfizeram.
— Você está fazendo o que eu pedi e mandou muito bem, pense por esse lado. Pronto para ir? Lucien e Leanor estão te esperando.
Passando pelo que parecia ser a centésima casa na árvore, Julie começava a se entediar com o verde exagerado do vilarejo da Floresta Frondosa. As passarelas suspensas feitas de cordas e pisos de madeira já estavam causando náuseas.
Construídas para travessia entre as grandes árvores de troncos marrom-avermelhados chamadas angelim-vermelho, eram tão altas que faziam a queda parecer um mergulho no precipício.
— A gente tem mesmo que continuar aqui em cima? Nem o tal invasor ia ser louco de subir aqui — disse enquanto parava para recuperar o fôlego e o equilíbrio.
— Nem está balançando tanto. A estrutura é bem feita, para de reclamar — gritou Gabriel, que estava alguns metros à frente do grupo, guiando-os pelo vilarejo.
— Cala essa boca! Você só fala isso porque é a sua família que fornece a madeira de construção desse lugar. Se não fosse isso, reclamava do mesmo jeito que você faz com todo o resto. — O olhar mortal de Julie já estava pairando sobre o espadachim novamente. — Aliás, não fica se achando não, tá? Você virou líder dessa missão porque é nativo dessa região, nós dois nem somos da mesma equipe.
— Fala e anda, Julie — disse Marlon, logo atrás dela.
Quase chegando no final, a garota foi puxada por sua companheira de equipe para a plataforma fixa que ficava presa no tronco da árvore.
— Valeu, Francine. — Abraçou a amiga, que reagiu comedidamente dando alguns tapinhas nas costas dela.
— Altura não é seu forte, né?
— Não é forte de ninguém aqui, nem do Marlon. Como que eles mandam a gente para um lugar completamente cercado de árvores, incluindo essas gigantescas aqui? A Polo não vai conseguir voar direito. E você é uma espadachim de fogo. É sério, só eu achei estranho isso?
— Não podemos ficar pedindo por território que dá vantagem, não funciona assim. — Marlon havia tomado a frente do grupo e descia a escadaria da plataforma sem esperar por seus companheiros. — David, Aika, Denis e aquela criança foram ficar na Baía de Cristais e nós viemos aqui. Aceitem e vamos continuar a patrulha.
O grupo passava por mais algumas residências, sempre com o mesmo procedimento orientado pelo Conselho: perguntarem aos moradores sobre atividades incomuns na região, pedir autorização para investigar a casa e pedir para que dessem notícias diretamente aos Conselheiros caso soubessem de alguma coisa.
A Floresta Frondosa, diferente do Vale do Céu, tinha uma proximidade maior entre moradores das áreas superior e inferior do vilarejo. Famílias que se ajudavam e trabalhavam juntas no desenvolvimento do local, permitindo criar oportunidades de trabalho e evitar que a maioria tivesse que se deslocar para outras regiões.
Isso facilitava o trabalho dos aprendizes no controle da população no local para poder identificar quem não fosse nativo da área.
— Agora só falta a parte baixa — exclamou Gabriel, espreguiçando-se. — Que alívio, quero ir logo para casa.
— Eu devia te arrastar até as Terras Taciturnas, preguiçoso — disse Julie. — Dá para cortar uma parte do deserto aqui por dentro, devíamos ir ajudar o Lucien. Acho que ele foi sozinho.
— Deixa ele se virar — respondeu Francine.
— Dá até para sentir o desgosto na sua fala. — A risadinha de Julie chegava a afinar sua voz.
— Eu poderia ser uma elite hoje se não fosse pelos erros dele. A gente até se dava bem juntos, mas eu nunca vou aceitar essa falha.
— Você tem meu apoio, Francine. — disse Gabriel, bocejando.
— Seu falso — resmungou Julie.
— Concentração. — A voz fúnebre de Marlon chamava a atenção dos companheiros. — Julie, consegue ver se todas as casas feitas no chão ficam neste distrito principal?
— Vou checar.
A jovem animalista respirou fundo e juntou as pontas dos dedos. Foi fácil manter a concentração e se conectar com Dione, sua baleia. Embora a gigante criatura estivesse distante, se aventurando pelo mar, ela conseguia sentir Julie e emprestar algumas habilidades para sua guerreira.
Em seguida, a jovem emitiu um singelo e gracioso canto baixinho, que parecia rondar todo o ambiente e poderia ser ouvido a grandes distâncias.
Na mente de Julie, era como se um mapa fosse desenhado em tempo real na sua cabeça. Sua visão corria por todos os locais em altíssima velocidade, percebendo cada ser vivo no caminho.
— Só tem uma delas que fica fora daqui, lá na mata fechada — disse voltando a abrir os olhos.
— Nós não vamos lá. — Gabriel coçava a cabeça e ajeitava seu longo casaco roxo aberto na frente. — É onde está a Marcelle Bastien. O Conselho mandou ficarmos longe. Vamos fazer assim: Começamos pela minha casa no final do distrito e vamos voltando até a saída para Prospéria.
— Para você tirar uma soneca enquanto andamos pela vizinhança? — perguntou Francine.
— Escuta aqui, nem adianta tentar, Gabriel. — Julie respondeu prontamente. — Não tem ninguém lá agora, sem desculpinhas.
— Como assim não tem ninguém? — O olhar do espadachim de pedra focou nela com um tom de seriedade que não era o de costume. — As árvores que derrubamos são próximas de casa, ninguém sai de lá durante o expediente.
A garota arregalou os olhos e ninguém no grupo precisou dizer uma palavra para que todos começassem a correr até o fim do distrito.
"Por favor, que eu esteja errada, que eu esteja errada", pensava Julie enquanto via Gabriel tomar a frente da equipe a passos largos desesperados.
Em uma bifurcação na estrada Leste de Prospéria, havia uma simples sinalização com quadros de madeira. Ela indicava em suas pinturas a direção da Floresta Frondosa e das Terras Taciturnas. Logo embaixo, havia uma carroça com um grande compartimento de carga vazio que tomava boa parte do espaço marcado pelos blocos de pedra no chão.
Era possível observar o comerciante batendo o pé impacientemente e com raiva. Ele estava todo suado por conta do ar quente vindo do deserto que era visível ao longe.
— O cara vai estar de saco cheio, mas não liga não — disse Bernard cobrindo a boca com a mão para que só Oliver pudesse entender o que ele dizia.
Quando os dois se aproximaram, viram Lucien sentado no compartimento de carga e Leanor na frente da carroça observando os cavalos.
— Demoraram! — esbravejou o comerciante. Sua testa enrugada e marcada pelo sol brilhava com o calor, mas as roupas largas que o cobriam no resto do corpo já eram adequadas para o local onde iriam visitar.
— Senhor Bernard, uma dúvida. — Lucien não se atreveu a descer da carroça para não irritar mais o homem. — Ninguém no Conselho vai procurar pelos dois? Temos que tomar cuidado.
— Vocês ficarão mais seguros juntos e longe daqui até que eu consiga fazer o que é necessário — respondeu confiante. — Podem ir em paz.
— Aquela bizarrice vermelha e essa cria de assassinos não entram na minha carroça, eu me recuso.
— Escuta aqui, seu velho fud...
— Oliver, cabeça no lugar! — advertiu Bernard, segurando no ombro do jovem. — Eu acabei de dar o aviso para você, garoto. Não piore as coisas perdendo a cabeça com um civil, vocês trabalham para proteger eles.
— Você é muito relaxado. Não é você que está encarando a morte.
— Pode até ser, mas tudo depende de jeito, dá uma olhada. Meu senhor, pode prestar atenção?
O velho comerciante olhava com desprezo até para Bernard.
— Respeito sua escolha, então diga o que prefere: Garantir a sua travessia no deserto com eles junto ou arriscar sua vida só por um capricho?
O homem olhava para Bernard com uma vontade de responder a maior quantidade de palavrões possível. Ele desviou o rosto para observar o trio de aprendizes novamente, com destaque para Leanor e Oliver. O garoto mantinha o hábito de devolver a expressão de ameaça que recebia.
— Ele vai dentro da carga com o loirinho e ela fica sentada no degrau de apoio na traseira. Não vou dar carona de volta.
— O loirinho tem direito a pegar alguns suprimentos lá no vilarejo para eles voltarem. Negócio fechado — respondeu rindo para Lucien, que se incomodou com o apelido.
Antes do trio partir na missão de escolta, eles se reuniram com Bernard para um último aviso.
— Precisam que sigam isso à risca: Se acontecer alguma coisa aqui em Prospéria ou durante a viagem, venham o mais rápido possível falar comigo, sem parar para atender ninguém.
— Por que esse cuidado, senhor Bernard? — perguntou Leanor.
O mestre lutador olhou para Oliver, que acenou com a cabeça permitindo-o contar o que conversaram.
— Tem uma guerreira de olho no Oliver sem sabermos o motivo. Ele acha que já está sendo vigiado há um tempo. A essa altura, qualquer informação vinda de terceiros pode ser falsa e qualquer outro guerreiro pode ser inimigo. Vou proteger vocês, mas preciso que confiem somente em mim até resolvermos esse caso, ok?
Todos acenaram com a cabeça e Oliver sorriu, cumprimentando o mestre com um aperto de mão firme em agradecimento pelo apoio.
Voltando pela estrada até Prospéria, ele deu seu típico aceno de costas para os aprendizes.
A noite chegava devagar, com as sombras invadindo a casa pouco iluminada de Bernard.
No quarto, uma grande cama se destacava no ambiente, mas o mestre lutador preferiu se recostar em uma poltrona caprichadamente bem acolchoada e posicionada de costas para a janela. Depois, pegou um pequeno livro para ler com ajuda da luz da lua.
Poucos instantes depois, a presença de uma energia estranha podia ser sentida vindo do lado de fora daquela alta janela.
— Como estão sendo esses dezessete anos vivendo no conforto? — Uma voz mórbida o chamava. — Essa sua fissura por camas gigantes parece uma coisa que você tem desde criança.
— É a recompensa de um trabalho bem feito — respondeu Bernard —, devia te servir de inspiração.
— O trabalho bem feito envolvia matar todos os magos, incluindo a criança.
— Ele está na minha mão. Vou conseguir fazer mais do que ela pretendia.
— Você está envolvendo seus interesses pessoais no trabalho da rainha.
O homem entrou pela janela.
Estava encapuzado com um grande sobretudo de um tecido fino, velho e bem sujo. Ao revelar a face, sua pele negra contrastava com a luz do luar.
— Diferente de você, eu estou fazendo minha parte. Qual é o próximo passo?
— Já matei alguns enquanto você perambulava por aí e usava a magia para trazer mais aliados. — respondeu sem olhar para o homem. — Os outros estão te obedecendo?
— Assassinando de forma limpa e sumindo com os corpos como planejado. Seus parceiros lá na muralha são bons em fazer vista grossa.
Bernard levantou-se para encarar o sujeito e continuar a conversa.
— Preciso que mate mais um. O garoto tem um avô, não vai te dar trabalho, eu só precisava me livrar da atenção do Oliver e mais algumas pessoas antes disso.
— Velhos decrépitos não são nossa prioridade.
O mestre lutador aproximou-se do homem que, diferente dele, era magro e com músculos bem frouxos. Ele apoiou a sua mão no velho casaco e deixou suas sombras disseminarem até que o ambiente ficasse quase engolido pelo breu.
— Marc, se quiser tentar ir para cima daquele garoto com a mesma idiotice que te fez usar um zumbi para atacar dois dos melhores guerreiros da Guarda, fique à vontade. Vou avisando que ele é meu aprendiz. Mas, se por um milagre, você vencer, pode até conseguir subir um degrau na escala dos cães imundos da Rainha.
A voz de Bernard mudava lentamente com cada palavra, como se um homem e uma medonha criatura falassem ao mesmo tempo.
— Ela pode até te recompensar com uns tapinhas na cabeça e um sorriso. Espero que se contente com isso. Porém, lembre-se de cumprir com seu propósito antes de sair por aí fazendo o que não foi pedido.
— Considere o velho morto! — Marc respondeu prontamente.
— Sem necromancia dessa vez — reforçou enquanto apertava levemente o ombro de Marc e o chacoalhava. — Está dispensado. Agora, vou falar com nossa visita indesejada.
Bernard saiu pela janela, observando as ruas vazias pelo medo da população de ficar do lado de fora após escurecer. Não muito longe dali, uma figura corria com um escudo em suas costas tentando despistá-lo através de diferentes caminhos.
Enquanto descia pelo telhado até o chão, o mestre lutador espalhou sua Natureza de sombra pelo corpo, quase apagando sua presença.
Assim que estava pronto, começou a saltar pelas casas em volta sem fazer um único som.
Quem estava fugindo dele sabia o que fazer para conseguir ganhar tempo, mas não tinha como acompanhar o ritmo e, eventualmente, foi confrontada.
— Uma pena te encontrar nessas condições, Daiane.
A garota tremia por inteiro. Tudo o que conseguiu fazer foi tirar o escudo das costas e posicioná-lo à sua frente para defender.
— Você é uma boa garota. — Continuou a conversa com sua típica descontração. — Inteligente, correta, respeitosa e dedicada. E, infelizmente, é por causa disso que não posso te deixar viva. Agora você sabe demais.
Bernard avançou para um ataque frontal de soco e Daiane começou a criar uma barreira de luz no centro de seu escudo.
A Natureza da jovem defensora tomou toda a extensão da rua. Mesmo apavorada ela ainda tinha grande poder.
O mestre lutador então desviou seu punho e socou o chão com força, mas o impacto não causou nada. Não houve nenhum trincado ou som de explosão pela força que ele parecia ter feito.
— Foi um prazer, garota.
Bernard havia passado sua sombra por baixo da barreira, preenchendo todo o espaço ao redor dos pés de Daiane. Antes que a jovem pudesse reagir, as sombras subiram e se solidificaram em formato de espinhos, perfurando todo o seu corpo, quebrando seu escudo e deixando-a suspensa no ar.
Enquanto o sangue escorria pelas perfurações até o chão, Marc chegava se esgueirando pelas paredes para garantir que não seria notado.
— Parabéns — disse Bernard, ainda olhando seriamente para a garota morta —, temos mais uma vítima na sua lista, invasor misterioso.
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