Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 7: A avaliação Pt.2

A luz do sol já estava sumindo quando Lucien acordou, horas depois. Ele levantou lentamente, forçando o corpo a sentar-se e ainda sentindo dor no estômago, mas só conseguiu apoiar-se sobre os cotovelos.

— Hora boa para acordar, garoto.

Ele viu Bernard se distraindo espalhando as brasas abaixo de uma chaleira suspensa que usava para fazer um café. Seus companheiros estavam sentados perto dele, cabisbaixos, sendo servidos por um homem de roupas e máscara preta. Oliver mal havia percebido que Lucien acordou.

Por um momento, o curandeiro tentou focar os olhos em Leanor, mas sua visão ainda estava meio turva. "Ela está sangrando muito", pensou.

— Leanor, tenho que estancar esse sangramento, rápido — disse enquanto lutava para se levantar, mas seu corpo ainda agia lentamente e estava fraco.

— Calma, Lucien. Nenhum dos dois se feriu gravemente — disse Bernard. — E não se esforce demais, eu acabei exagerando quando te deixei inconsciente.

Quando conseguiu firmar o corpo, Lucien ficou parado olhando para o chão por alguns segundos, ainda se recuperando da dor. Ao olhar para frente novamente, sua reação imediata seria um grito de horror, caso a dor no estômago não tivesse o impedido.

— S-seu cabelo... Você... — O espanto e a agonia o impediam de terminar a frase.

— Calma! Eu posso explicar — disse a garota enquanto tentava arrumar de volta a sua manta. — Esquecemos de contar para você sobre isso, mas o mestre Bernard sabia e eu só pedi autorização para tirar a manta um pouquinho por causa do calor.

— Que diferença isso faz? — interviu Oliver, levantando-se e jogando sua xícara vazia na grama — Nós falhamos, não se preocupe com esse detalhe. Quando seguirmos nosso caminho, não precisa chegar perto de nós.

— Não lembro de ter dito que vocês falharam — disse Bernard enquanto servia mais café para a garota vermelha. — E não jogue a xícara do Placide no chão, seja educado. Ele é cuidadoso com as coisas e trouxe almoço e café para nós.

O homem recolhia a xícara delicadamente do chão sem se manifestar, mas não parecia bravo com o garoto.

— Vocês não vão me aprovar por pena, Bernard!

— Só sossega aí e eu digo o que achei do nosso primeiro dia.

— Vocês não vão mesmo dizer nada sobre termos uma vermelha na equipe? Isso é um risco enorme para a Guarda.

Lucien falava o mais alto que podia sem que as dores o afligissem. A cada palavra, Leanor se recolhia, colocando a mão à frente do rosto.

— Se estivesse lá na cerimônia teria visto que eu sou imune à “maldição”.

— E daí? Eu não sou. Que tipo de procedimento o Conselho estabeleceu?

— Com certeza terão uma opinião sobre isso. Agora, foco na avaliação. — Bernard continuou. — De cara, já digo que é bom não ofenderem uns aos outros.

— Ora, imagina, mestre — disse Leanor, sem graça —, isso é compreensível. Ele não sabia.

— Se eu dei permissão, mocinha, ele deveria confiar em mim — disse olhando para Lucien com reprovação.

— Desculpe — respondeu arrependido ao ver a reação da garota. — Só estou tentando pensar com a cabeça de um curandeiro. As histórias que eu ouvi...

— Você não precisa contar. — Leanor o interrompeu. Seu olhar fixado no chão deixava claro o desconforto sobre o assunto.

— Certo...

Após terminar de ajudar Lucien a sentar-se ao lado dos outros dois aprendizes, Placide serviu uma xícara de café para o curandeiro e juntou-se à equipe para que Bernard seguisse com a explicação.

— Não há muito o que falar sobre o combate. Oliver, você claramente tem força, mas seu corpo não está acompanhando o nível de energia que você usa, precisaremos melhorar isso.

O garoto mago só assentiu respeitosamente com a cabeça.

— Me desculpem por ter sido inútil — sussurrou Leanor.

— Você não se aproximou até ver uma abertura. — O mestre continuou sua fala. — Foi esperta, mas faltou aumentar sua energia espiritual para dar um golpe forte como Oliver fez.

— C-claro, vamos trabalhar nisso.

— Eu sei que poderíamos ter criado uma boa estratégia para essa luta. — Lucien ainda lamentava o início precipitado do combate. — Também tenho que aumentar a velocidade e estabilidade das minhas curas sem prejudicar a qualidade delas.

— E que tal também não anunciar o que você vai fazer? — complementou Bernard. — Existem invasores que não conhecem nossas capacidades, então não entregue uma informação tão importante.

— Sim, senhor. — Assentiu, envergonhado.

Por um momento, o mestre lutador olhou para cada aprendiz, sem dizer uma palavra. Todos os três pareciam perdidos nos próprios pensamentos. Após acabar com seu passatempo de mexer com as brasas da lenha, suspirou e voltou a falar.

— Temos só três meses e precisamos fazer valer a pena. Por isso, quero apresentar formalmente o Placide para vocês. Ele é meu assistente na Guarda e vai passar a nos ajudar, já podem considerá-lo um mentor de vocês.

O homem ouvia atentamente o discurso de Bernard, em seguida, levantou-se e fez uma reverência simples para a equipe.

Placide também apertou a mão de cada um e tentava mostrar um olhar bem amistoso, mesmo com a máscara cobrindo boa parte do seu rosto. Com Leanor, ele cumprimentou usando uma luva, mas mantinha o espírito acolhedor, o que ajudou a fazer com que toda a equipe simpatizasse com ele.

— Ele não consegue falar, mas escuta bem, então logo vão aprender a entender o jeito dele.

— Qual será o próximo passo agora? — perguntou Lucien, levantando o braço.

— Agora nós vamos voltar e ver o que decidiram. Espero que eu só tenha que deixar vocês nos dormitórios para descansar e esperar pelo treino de amanhã.

— Espera, nós podemos tentar outra vez, eu já estou melhor — disse Oliver enquanto levantava-se.

— Ninguém vai fazer nada agora. Vocês se recuperaram, mas Lucien acabou de acordar. Não adianta nada lutarem de novo sem pensar no que eu acabei de dizer.

— Nós ouvimos e pensamos, já está tudo certo.

— Ah, é? Então definiram uma estratégia ficando mudos um na frente do outro?

— É, ué. — Oliver olhava para o chão. — Acontece nas melhores equipes.

— As melhores equipes dedicam um tempo para entender onde falharam, não apresse as coisas. — O tom de Bernard havia mudado, ele estava mais sério, de uma forma que Lucien nunca havia visto. — Em vez disso, aproveite a chance que recebeu. Vamos voltar.

 

 

Quando a equipe retornou ao portão da Guarda, a sombra da muralha já dominava o local e a lua aos poucos ia iluminando o quartel. Luminárias de fogo eram acesas nas pequenas torres das extremidades do perímetro.

Lucien observava o olhar fixo de Oliver na colossal construção que já protegeu muitas gerações de guerreiros e civis.

— Não há muito o que ver por lá, ainda mais a essa hora — disse. — Toda a região até a montanha bifurcada é deserta e um tanto sem vida.

— Montanha bifurcada? — Leanor ficou curiosa.

— É onde o continente acaba no extremo Oeste — explicou. — Uma montanha gigantesca que está partida ao meio. Dizem que Darkron - o Lorde das Sombras - desferiu um golpe tão forte para abrir caminho até o mar que ela se partiu. É por isso que o lugar é tão escuro, são resquícios da sua força da Natureza.

— Como as pessoas do outro lado conseguem subir a muralha? — perguntou Oliver, que parecia não ter dado muita atenção à história de Lucien.

— Alguns montam ferramentas a partir do que encontram nas Terras Devastadas, outros chegam a usar as próprias mãos, cravando os dedos nas imperfeições e tomando impulso — respondeu Bernard.

— Isso exige uma habilidade tremenda, por isso treinamos para lutar contra eles.

— Não confunda habilidade com desespero, Lucien. — As palavras de Bernard espetavam o coração do curandeiro. Placide acenava a cabeça aprovando a resposta do mestre. — A maioria nem sequer sabe como consegue chegar aqui em cima, é puro instinto de sobrevivência.

— Parece desesperador mesmo — disse Leanor.

— Olha, a única dica que eu tenho é: quando estiverem lá em cima, façam o que quiser, mas não olhem para baixo — avisou lembrando-se de sua última passagem pela muralha durante os treinamentos anteriores, algo que sempre mexia com seu psicológico, deixando suas mãos frias e o estômago revirado.

Antes que pudessem entrar no quartel, os aprendizes foram surpreendidos por uma figura esbelta de olhos púrpura e cabelos dourados vindo de cima do portão para impedir sua passagem. Era o Conselheiro Etienne.

— Aqui será somente um local de treinamento para vocês — disse o Conselheiro —, não podem ficar nos dormitórios.

— Ora, Etienne, o que é isso? — protestou Bernard.

— Fique feliz que a decisão foi a favor de mantê-los como seus aprendizes, senhor Archambault, mas não é seguro deixar que fiquem aqui o tempo todo. A não ser que queira ser a babá deles e vigiá-los vinte e quatro horas por dia.

— Que tal ir lá em cima barrar os invasores em vez de se meter nas nossas vidas? — Oliver tentou avançar em direção ao portão, mas Placide e seus companheiros de equipe o impediram. Ninguém queria estender o conflito.

— Estou cuidando do bem-estar daqueles que vêm para cá descansar com segurança — respondeu. — Lucien, no mínimo você deveria entender isso. É um curandeiro, mesmo que não seja bom nisso.

O olhar de desprezo pairando sobre o garoto era particular, ele sabia disso.

Há algum tempo, a filha do nobre Conselheiro da Luz insistia para que Lucien ajudasse ela a tornar-se uma guerreira, mas o pai mal permitia que ela saísse de casa. A reputação do homem mais belo e abastado de Prospéria não podia sair um centímetro fora do plano que ele traçava.

Apesar de tudo, o curandeiro de fogo era fiel à sua classe e até mesmo ele já havia pensado nas mesmas circunstâncias mais cedo naquele dia, então não poderia simplesmente discordar, não queria mentir. Leanor e Oliver realmente eram potenciais ameaças até que se provasse o contrário.

— Eu reconheço essa decisão, mas também acredito que ela não será para sempre — respondeu respeitosamente. Suas palavras causaram uma leve reação de surpresa em todos ali.

— Essa sua moleza só faz a sua imagem piorar — resmungou Etienne.

— Ninguém que é "mole" daria uma resposta dessas a um Conselheiro na frente de outras pessoas — respondeu Bernard enquanto seu assistente fazia uma leve cara de deboche.

— Só que eu não discordei, de forma alguma! — Lucien se apressou em justificar a resposta. — Eu só estou tentando ser positivo sobre tudo isso, mas não cabe a mim decidir nada.

— Eu estava quase acreditando que você era legal. — Lamentou Oliver.

— Malgrado o que acabei de ouvir, não há nada que possam fazer para reverter isso — continuou Etienne. — Os magos deverão ficar em outro lugar e todos os treinos devem ser realizados aqui dentro para termos controle do que está acontecendo.

— Mas eu moro no vilarejo inferior do Vale do Céu, lá no Norte — explicou Leanor. — Vou demorar horas para chegar aqui.

— É a condição para ficarem, pode desistir se quiser. — Não havia o mínimo de simpatia em seu rosto ou em sua voz. — Comerciantes andam pelo continente todo e nunca vi nenhum reclamar.

— Comerciantes têm carroças — respondeu falando baixinho.

— Não há margem para negociação. — O Conselheiro apoiou-se no portão e bateu no chão o escudo banhado a ouro que carregava. — Quanto à você, Bernard, lembre-se que é sua noite de comando na muralha.

O mestre lutador olhou para os aprendizes. Não foi necessário dizer nada para mostrar que até mesmo ele esperava uma decisão mais compreensiva, mas ainda havia esperança.

— Não posso demorar demais para começarmos o treinamento, mocinha. Estejam na porta do refeitório duas horas após o nascer do sol. Encontrarei vocês lá.

Antes que pudessem se despedir, o grupo viu uma sombra enorme se formando no eixo central da muralha. Os trabalhadores das plataformas de elevação começaram a correr para suas casas que ficavam próximas da base, fechando portas e janelas, após verem um sinal de fumaça saindo de um dos pontos de abastecimento.

— Invasão — disse Bernard, virando-se para Etienne. — Mande mais guerreiros para Prospéria e mande algum curandeiro lá para cima. Placide, vamos!

— Está bem — respondeu Etienne acenando com a cabeça. — Vocês três, fiquem dentro do quartel até assegurarmos o eixo central.

— Ficou maluco? Eu quero lutar — respondeu Oliver.

— A muralha não é brincadeira, Oliver. Nós mal demos conta do senhor Bernard em cinco minutos de luta e eu nem me recuperei do golpe dele.

— Então só eu vou. Leve a Leanor para dentro e se protejam. Eu preciso fazer isso.

Etienne correu para segurar o braço do garoto e impedi-lo.

— Eu sabia! Vocês não tem respeito pelas regras, acham que podem fazer o que querem.

— Me solta — vociferou. — Não vou ficar parado enquanto lutam por mim lá em cima, eu sei que posso ajudar de alguma forma.

Placide esticou o punho para frente, fazendo uma pequena esfera sombria do tamanho de sua mão sair em direção ao Conselheiro da Luz, que rapidamente sacou o escudo e se protegeu. Um golpe fraco que mal fez impacto na grande peça dourada, mas serviu para Oliver se soltar.

O assistente de Bernard apoiou seu braço esquerdo no ombro de Oliver e colocou a mão direita sobre o próprio peito com a palma esticada.

— Pelo jeito a decisão não foi do garoto — exclamou Bernard. — Placide ficará responsável. Eu confio nele para dar as orientações necessárias, mas não se desgrudem. Ainda precisamos avisar os guerreiros para se prepararem, então conto com sua ajuda, Etienne.

Os dois lutadores saíram correndo com Oliver os acompanhando. Enquanto isso, Leanor e Lucien foram colocados para dentro do quartel e correram para o pátio para tentar observar a luta de lá, mas não conseguiam ver nada por conta da sombra que crescia cada vez mais.

— Aquilo é o escudo da Vivienne, ótimo! Isso é um bom sinal — disse Lucien.

— Olha, é e não é, na verdade. — A garota vermelha parecia tensa.

— Como assim?

— Essa tal de Vivienne meio que... tentou matar o Oliver hoje cedo durante a cerimônia.

Lucien levou as mãos à cabeça.

— Ah, fala sério, qual é o problema dele?

 

***

 

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