Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 21: Contagem de corpos

Dezenas de civis mortos.

Esse seria só o começo do plano. A pior etapa era a seguinte: Como levar tantos deles de volta para o Oeste sem que a Guarda pudesse atrapalhar?

Ter conseguido corromper alguns guerreiros para ajudar o Oeste não foi suficiente. A solução mais óbvia então seria fazer com que quem não fosse parte dos traidores fosse morto para entrar nessa conta. Resolver dois problemas com uma só solução.

Ainda assim, Bernard sabia que haveriam alguns entre eles que fosse capaz de sobreviver à invasão que aconteceria em breve. Como já tinha sido no passado.

"Tomara que o idiota do Marc tenha feito o que eu pedi. Depois de ter matado a Daiane, eu não posso me dar ao luxo de andar por aí para checar o andamento do plano", pensou enquanto tentava relaxar na poltrona e terminar de ler um de seus livros de história favoritos: Os seis Lordes de Prospéria.

Matar a garota não o abalava. Tinha sido apenas um desvio do plano original, do tipo que já acontecia há dezessete anos.

Desde a morte dos magos, algumas coisas acabavam saindo do controle, mas no final tudo dava certo.

Tinha que dar.

Prospéria não merecia a vida que tinha, por sua fragilidade, falsidade e crueldade. Bernard sabia disso desde pequeno.

Cansado de ficar sentado lendo - ou tentando ler - quis deitar um pouco. Não queria dormir e sequer trocou suas roupas, mas não havia mais o que fazer além de esperar.

No entanto, as batidas na aldrava de sua porta conseguiram tirar um pouco do tédio.

— Bernard!

A voz familiar era de Vivienne.

 

 

Chegando na porta, Bernard abriu a pequena viseira no alto. Seus olhos no meio da penumbra do interior da casa mal podiam ser vistos pela garota. 

— Tem que parar com essa mania estranha de ficar no escuro, Bernard.

— Já cheguei em um ponto que consigo enxergar bem sem a luz aqui dentro. Acho que virou hábito — respondeu rindo descontraidamente.

Após acender a vela de uma das lamparinas da sala, ele abriu a porta para Vivienne entrar.

Em um instante, ela já tinha deixado os escudos ao lado da entrada e estava em seu lugar de costume. Um sofá de canto onde ela, quando não era adulta, conseguia deitar tranquilamente. Ao lado, uma pequena mesa de cabeceira, sempre com algum livro que a garota pegava emprestado.

— Os elites não deviam estar vigiando a muralha hoje? — perguntou Bernard enquanto buscava na prateleira o último exemplar de um livro histórico para ela.

— Por que você ficou encobrindo as ações do Oliver por tanto tempo?

Observando-a de canto de olho, ele pôde ver Vivienne com os braços cruzados e pés apoiados no alto do sofá, como se fosse uma criança emburrada. Resolveu ignorá-la de início para conseguir encontrar o livro.

— Encobrir faz parecer que o garoto fez alguma coisa errada — respondeu dando um livro a ela.

— Ele é um civil que tentou entrar nos assuntos da Guarda para investigar a morte de um mestre. Além disso, interferiu na tentativa dos aprendizes de conter um possível criminoso dentro das nossas terras. Preciso prosseguir?

Bernard suspirou.

— Talvez eu tenha pensado positivo demais sobre vocês dois. — Recostou-se na porta.

— O que quer dizer?

— Eu vejo você e ele como uma espécie de... salvação um do outro.

A luz no ambiente acabou exibindo o rosto corado e indócil de Vivienne após o comentário, tirando um sorriso do mestre lutador.

— O garoto luta basicamente usando escudos de magia para proteção e revidando ataques. Não dá nem para disfarçar que é o seu estilo de combate que o inspirou.

— Ele me copia, e daí? Não é como se isso significasse alguma coisa. E eu não ganho nada com isso.

— Ainda existe uma chance.

Bernard resolveu deixar o sorriso de lado para receber a devida atenção da garota. Novamente, foi fazer um tour pela prateleira, mas somente alisando o dedo nas lombadas dos livros.

— Sua Natureza da sombra chegou de uma forma muito repentina e agressiva. Não preciso te dizer que qualquer guerreiro das sombras precisa usar o Demônio Interno que está crescendo dentro de si para ganhar mais força. Somos uma incógnita.

— Chega logo no seu argumento, Bernard.

— Demônios Internos nascem dos sentimentos ruins que estão dentro de nós. No seu caso, um sentimento de culpa. Tão grande que você perdeu sua Natureza do ar e foi pega pelas sombras. Pensei que não existe ninguém melhor do que aquele garoto para ter uma conversa sincera com você sobre isso.

— Um idiota inconsequente que prefere ter raiva de todo mundo pelo passado em vez de baixar a cabeça pela estupidez que a família fez? — Levantou-se, enfurecida. — Minha companheira de equipe morreu por minha causa e eu pago por isso até hoje. É assim que funciona, é o que deve ser feito.

— E quem determina isso? — Bernard falava devagar com uma voz carregada e mórbida.

— Não tem o que determinar, são fatos! Quando ainda éramos aprendizes sofremos um ataque que acabou na morte dela. Eu fiquei sem reação e não pude protegê-la. — Mesmo conseguindo segurar as lágrimas, a voz da garota falhava um pouco.

— É, e depois disso o resto do mundo seguiu com a vida enquanto você se martirizava sozinha.

Bernard aproximou-se de Vivienne, olhando-a nos olhos com uma feição de pena.

— É preciso condenar o culpado para poder existir justiça — disse a garota, com a voz ainda falhando.

— Isso é só porque é mais fácil achar um culpado do que uma solução.

O mestre lutador abriu a porta e apagou a lamparina novamente, deixando somente a luz do lado de fora incidir sobre a sala. Em seguida, fez um gesto para Vivienne acompanhá-lo para a rua.

 

 

Andando pelas ruas de Prospéria, Bernard ficava constantemente olhando para o alto. Queria pensar em sua próxima frase enquanto dava um tempo para Vivienne refletir sobre o que ele tinha dito.

Virando na primeira esquina, o mestre lutador pegou uma tocha na parede. Todo lugar havia uma delas, deixada por um guerreiro de Natureza do fogo para auxiliar outros vigias. Vendo que Vivienne estava mais calma, ele voltou a conversar:

— O que dá para ver no Oliver, é que ele quer encontrar a raiz do problema. Acabar com o que está errado.

— Ele só quer vingança.

— Vai bem além disso — disse enquanto observava a chama da tocha tremular com o vento. — Ele viu que o Conselho não foi capaz de resolver e quer encontrar outra maneira de fazer isso.

— Você é do Conselho! Vai me dizer que é a favor de quem está contra a sua palavra?

— Eu penso nisso há muito tempo, garota.

Bernard parou novamente.

— Você vê conserto no que estamos fazendo? Responda com sinceridade.

— Conserto no quê?

— Tudo. — Deu de ombros. — Mortes que já aconteceram, punições para criminosos, perdão para os falsamente acusados, equilíbrio na qualidade de vida, respeito entre as pessoas... Nada disso parece certo.

— Existem funções e hierarquias, é como as coisas são.

— E essa é uma frase que eu usava direto contra você — riu. — Não teve uma vez que não te vi morrer de raiva por isso.

Bernard caminhou por alguns metros, depois parou quando percebeu que Vivienne não estava o acompanhando.

— Você está começando a me assustar.

Novamente, o mestre lutador deu uma leve risada. Ele encarava a tocha que iluminava de perto seu sorriso, até que a arremessou no toldo de uma das residências do distrito. Não demorou para o poderoso fogo consumir a lona e virar um ponto de luz chamativo no meio do silencioso vilarejo.

— Pense bem. — O sorriso tímido continuava em seu rosto. — Talvez você só esteja com medo da realidade.

Bernard conseguia ouvir os gritos de guerra vindo do alto da muralha atrás dele, de centenas de homens sedentos pelo combate. Os olhos trêmulos e arregalados de Vivienne também deixavam claro que havia começado.

A invasão de Prospéria estava em andamento.

— Nós deixamos as coisas chegarem em um nível tão… podre aqui nesse mundo que a única solução viável é o extermínio. — Bernard abriu os braços.

— V-você...

— Fiz o que era necessário e estava planejado há muito tempo. — Seu rosto voltou a ficar sério por um instante. — Oliver entenderá o que eu fiz assim como você está entendendo agora. Só resta que todos lutem pelas suas vidas até o fim. E, como eu já falei, vocês dois podem salvar um ao outro.

Vivienne sacou o escudo maior em suas costas e saltou na direção de Bernard na tentativa de decepá-lo com a borda de seu equipamento.

O mestre lutador desviou para trás saindo completamente ileso, mas foi surpreendido pela rachadura enorme que ficou aberta no chão com o impacto do golpe da defensora, que logo sacou a lâmina do seu escudo circular.

— EU NÃO VOU DEIXAR DE DEFENDER ESSE LUGAR! NEM CONTRA VOCÊ! — A garota berrava descontroladamente enquanto chorava de raiva.

— Eu entendo. — Bernard acenou com a cabeça. — Mas também espero que você saiba que eu não posso parar.

O mestre avançou agressivamente com repetidos golpes no grande escudo de Vivienne para tentar quebrar a principal defesa da jovem. Cada soco imbuído com a Natureza de sombras reverberava pelo distrito como se fossem explosões. Uma força tão poderosa que destruía os muros das casas em volta, deixando tudo em pedaços.

Vivienne não fazia nada além de se defender, mas Bernard também não conseguia fazer muito além de jogar a garota para trás com seus golpes.

— A defesa mais sólida do continente, não é um título à toa.

— Cala essa boca!

Ela tentava revidar, mas nunca em uma troca de golpes direta. Sempre buscava se esgueirar para um ataque finalizador com a lâmina escondida no escudo. Bernard desviava como se estivesse brincando com uma criança.

— Para que você leve isso a sério, uma última informação.

Ao deixar o braço inteiro tomado por sombra, quase sumindo de seu corpo, Bernard desferiu um soco na porta da casa que pegava fogo, fazendo-a voar pelos ares com o impacto.

Toda a família abrigada no local foi vista sendo arremessada para longe, com alguns dos membros já dilacerados em pleno ar pelo poder do mestre.

Um banho de sangue começou a surgir nas ruas.

— Meu Demônio Interno é alimentado pela raiva. Não só de Prospéria, porque ele seria fraco demais. Por tudo isso! Leste e Oeste.

Vivienne armava seu grande escudo outra vez enquanto Bernard caminhava pacientemente na direção dela.

— Então que nós finalmente possamos apelar para nossos instintos e lutar até o último segundo sem nenhuma amarra. Porque eu sei que a minha aprendiz consegue fazer melhor do que isso.

 

***

 

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