Guerreiro das Almas Brasileira

Autor(a): Lucas Henrique


Volume 1

Capítulo 20: O necromante é encontrado

Sentada na varanda de sua casa no meio da densa floresta, Marcelle encarava sua espada refletindo sobre a sensação que teve ao usá-la depois de tantos anos.

Selada novamente por Cédric, a Lâmina da Chama Perseguidora não poderia mais pulsar o desejo de combate e caos em sua portadora. Porém, a sensação já havia sido experimentada tantas vezes que não tinha como esquecer.

Por um momento, sua mente voltou à época da infância. Enquanto saía sozinha para explorar a mata de madrugada, Marcelle acabou encontrando fazendeiros tentando destruir a Floresta Frondosa provocando incêndios.

Sua tentativa de impedi-los foi inútil, mas a ira dela foi reconhecida por algo que compartilhava do mesmo sentimento.

A serpente de fogo.

Uma entidade protetora da floresta - que ninguém sabia se era verdadeira ou não - surgiu unicamente nessa fatídica noite e fez do ódio da pequena Marcelle a sua força. A serpente absorveu o fogo e devorou todos os criminosos.

Foi naquele dia em que ela, ainda muito jovem e inexperiente, tornou-se guerreira. Sem entender como virou portadora das habilidades da serpente, o que ela conseguiu compreender é que houve um reconhecimento de sua vontade para combater seus inimigos.

No entanto, a ira de seu animal familiar ocasionalmente causava ataques de raiva. Não demorou para que ela se tornasse a vilã e alguém fosse colocado para vigiá-la.

Cansada de lembrar do passado, resolveu ir caminhar pelos distritos do vilarejo. Sabendo que ninguém nunca pensaria em invadir o lar da Víbora de Fogo, sequer se importava de fechar a casa, só pegou suas duas espadas e saiu.

Apesar de poder andar pela mata fechada com facilidade, preferia chegar no vilarejo pela entrada da estrada principal. Era uma forma de não assustar ninguém com sua presença, pelo menos não mais do que já faria.

O grande arco de entrada da Floresta Frondosa era todo feito de madeira de carvalho que foi cuidadosamente ornada por marceneiros antigos do vilarejo. Vinhas e flores envolviam a placa que indicava as boas-vindas para os visitantes.

Com a nova estratégia de proteção do continente, não havia guerreiros na entrada. Todos estavam em Prospéria ou na muralha, no entanto, alguns civis se voluntariaram para ficar no local.

— Ei, os dois aí — gritou para os homens encostados na base do arco. — Não era para ter uma molecada por aqui ajudando vocês?

— Foram lá dentro fazer patrulha — respondeu um dos homens. O outro tremia de medo, segurando um forcado velho e enferrujado na direção de Marcelle. — Você devia fazer a sua parte e ficar em casa. Tem toque de recolher agora. Cadê seu vigia?

Tentando esconder a raiva pelo comentário do homem, Marcelle virou de lado e começou a observar a estrada que seguia para dentro do vilarejo.

Poucos metros à frente, ela deparou-se com rastros de sangue na beira da estrada. Não era muito, mas estava fresco e já vinha formando um rastro grande de gotas.

Estava respingando do alto das árvores. Quando ela olhou para cima, viu uma grande ave caindo enquanto lutava para manter-se no ar. Uma harpia cinzenta que já estava vermelha em uma das asas e na garras.

Marcelle conseguiu pegar a criatura antes que ela se chocasse com o chão e piorasse seus ferimentos. A ave soltava um grito agudo de desespero e dor, batendo uma das asas boas. Algumas penas de seu topete haviam sido arrancadas e ela tinha vários pequenos cortes no corpo.

— Onde esses garotos estão?! — Virou-se para os homens ainda segurando a ave nos braços.

— E-eles devem estar no final do vilarejo, na casa da família Itaki — respondeu o pequeno homem trêmulo. Ele nem conseguia mais segurar sua arma improvisada. — Não ouvimos nada aqui por perto. O filho mais novo do senhor Itaki estava liderando o grupo.

— Levem essa ave urgente para algum cuidador aqui da vila. — Marcelle deu um tapa no forcado e o fez segurar a harpia no colo. — Assegurem que ninguém vai sair de casa até segunda ordem e fiquem com suas famílias.

Depois de agachar-se, ela deu um pulo para o alto do arco de boas-vindas. De lá, começou a saltar entre os troncos das árvores em alta velocidade, pegando cada vez mais impulso.

Talvez não pudesse fazer muito contra o inimigo sem sua principal arma, mas tinha que tentar chegar a tempo de pelo menos salvar quem ainda estivesse vivo.

 

 

Nas proximidades do território da família Itaki, havia mais luz com a lua surgindo e uma fria corrente de ar vinda do mar, não muito longe dali.

Várias árvores estavam derrubadas para a nova colheita de matéria-prima que todo ano precisava ser feita para criação de novas casas, móveis e utensílios.

Marcelle usou sua habilidade animalista de serpente para manter-se presa em uma das grandes árvores apenas apoiando a palma da mão e os pés. Os residentes da área pareciam ter se escondido ou morrido pelas mãos de quem havia passado ali.

O trajeto de sangue estava maior, então a segunda opção parecia ser a mais plausível.

Sorrateiramente, Marcelle desceu pela árvore e seguiu a pé pelo caminho que levava até a casa dos famosos lenhadores.

Antes que pudesse chegar mais perto, foi pega por um som agudo estridente que parecia varrer o território e entrar em sua mente.

Era como uma sirene, pouco a pouco se transformando na voz de uma garota que pedia socorro. Parecia ser um dos aprendizes.

Voltou a correr e chegou apenas para se deparar com uma cena de massacre, mal podia ser dito que houve algum tipo de disputa equilibrada ali.

Lacrosse Itaki, líder da região, estava com a cabeça enfiada em uma estaca na entrada da casa.

Todo o resto da família também podia ser vista, mas suas partes estavam espalhadas pelo chão como se tivessem sido dilacerados por um animal.

No meio de toda aquela zona, o filho mais novo, Gabriel Itaki, encontrava-se de joelhos. Uma mulher o segurava pelos cabelos com uma mão e apertava seu queixo com a outra, olhando no fundo dos olhos dele. Ela tinha uma faca com uma lâmina negra por entre os dedos e, com a ponta dela, pintava o rosto do garoto com sangue.

Gabriel mantinha um olhar estático e inexpressivo para a mulher, que ria escandalosamente. Coberta de sangue, ela vez ou outra parava para lamber as gotas que escorriam pelo braço.

— Ora, vai, isso foi divertido. Até você tem que admitir. Não me force a abrir um sorriso nessa sua carinha pálida — disse enquanto passava as costas da faca no rosto dele.

Marcelle ativou seu olhar de serpente e buscou pelos demais aprendizes sem fazer movimentos bruscos. Ela viu uma garota espadachim de cabelos cor de brasas com o ombro empalado em uma árvore próxima e um jovem arqueiro de moicano caído no chão com algumas flechas fincadas nas costas, mas não tão profundas a ponto de serem ferimentos fatais.

Por último, uma jovem de cabelos loiros encaracolados estava caída perto da base de uma das árvores gigantes. Ela chorava baixinho e parecia ser a garota que havia tentado pedir ajuda.

Dentre os quatro, Marcelle escolheu ir primeiro na garota loira, já que ela parecia em melhor estado do que os outros e poderia buscar ajuda. Ao aproximar-se lentamente dela, quase foi atingida por um machado que cravou no tronco da árvore.

— Não é para brincar com o brinquedo dos outros sem permissão — disse a mulher com a faca. — Achei que vocês do Leste eram cheios de boas maneiras.

— Você não me conhece.

— É, mas já gostei de você. — O sorriso dela mostrava dentes manchados de sangue e vísceras. — Você é do tipo que já pensou em matar, não é igual essas criancinhas aqui. Por que não mostra um pouco da sua sede de sangue para mim, hein?

Marcelle sacou sua espada maior e a segurou na altura do quadril, apoiada nas palmas das mãos. Em seguida, abriu a boca exibindo seus caninos superiores, de onde um líquido esverdeado escorreu e gotejou em cima da lâmina, que o absorveu até tomar a sua cor por inteiro.

— Sorte a sua ter encontrado alguém como eu. — Apontou a espada para a mulher. — Serpentes quebram os ossos das presas até elas virarem pasta ou usam seu veneno para agonizá-las até a morte. É uma representação perfeita dos Torturadores. Só que dessa vez a presa é você.

 

 

Cruzando pelo deserto a passos largos, Oliver começava a sentir o peso das pernas tentando sair da areia para dar o próximo passo. Seu corpo começava a esfriar com a noite desértica a sua volta que parecia não ter fim.

Lucien e Leanor vinham logo atrás, também cansados e buscando manter o ritmo para chegar logo no grande vilarejo das Terras Taciturnas.

Quando o trio estava próximo, puderam ver um enorme cercado de pedras gigantes com um imponente portão de madeira no meio, que estava aberto, mas sem muito movimento nas proximidades.

A carroça do comerciante estava lá e os cavalos estavam presos no varão de amarração se alimentando no cocho junto de outros que também carregavam carroças.

Leanor se apressou para pegar seu arco e ficar pronta para o confronto. Lucien checava a bolsa de curas novamente enquanto passava o olho em um outro mapa que tinha trazido de casa. No meio de toda a preparação, Oliver aguardava pela chance de dar o primeiro ataque.

Atrás deles, trotes de cavalo foram ouvidos. Um homem sentado em um velho corcel passou correndo por eles e saltou para o meio da entrada enquanto o animal continuou correndo.

Em seguida, o homem calmamente pegou um banquinho de madeira que estava no lado direito do portão.

Ele observava as outras montarias que estavam presas e parecia não se importar com os três guerreiros afobados diante dele. Oliver não conseguia ver seu rosto, coberto por roupas pesadas e velhas.

— Senhor. — Lucien acenou para o homem. Leanor recuou enquanto mirava com seu arco. — Não precisamos envolver mais ninguém nessa briga. Deixe o vilarejo em paz e...

Oliver estendeu o braço, impedindo o curandeiro de chegar mais perto.

— Concordo — disse o homem. — Até porque já encontrei quem eu queria.

Ele tirou o capuz. Tinha um cabelo curto e espetado, de aparência tão suja quanto suas roupas. Ao levantar, apoiou-se em um tipo de bastão com um peculiar brilho na ponta, mas não parecia precisar de escora alguma para caminhar.

— Aquele que dizem que conhece a verdadeira magia — reclamou enquanto soltava e afugentava os animais —, mas que na verdade não passa de um idiota ultrapassado.

A luz na ponta do bastão aumentou e um círculo de magia parecido com o de Oliver barrou a entrada do vilarejo. Era uma luz em tons mais escuros e com uma vibração pesada, que parecia alterar até mesmo o ar do ambiente.

— Atrás de mim!

Oliver ajoelhou-se para concentrar sua energia espiritual nos braços e pernas enquanto seus companheiros posicionavam-se em sua retaguarda. Lucien ficava no meio, observando o inimigo, e Leanor por último, preparada para atirar.

— Precisamos ficar de olho caso mais mortos apareçam — disse a garota vermelha enquanto acompanhava o caminhar do homem com sua flecha apontada para ele.

— Meus zumbis? Rá! Como se eu fosse perder tempo esperando eles darem conta de vocês. Ainda mais com seu amiguinho de cabelos brancos aí sabendo como quebrar o selo. Por enquanto, prefiro resolver isso sozinho.

— Jamais um desgraçado feito você seria um Rivail. — Oliver encarava-o enfurecido. — Tá querendo o quê aqui?

— No Oeste não somos do tipo que ostenta nome de família. Luxo desnecessário, né? Só me chame de Marc. O que eu vim fazer é uma pequena coleta, e também corrigir um grande erro do passado, que foi manter você vivo.

— Como assim? O que você sabe da noite dos Demônios Internos?!

— Sei que foi um trabalho bem ruinzinho. Mas não importa, fique feliz que a sorte sorriu para você. Só é uma pena que o lutador que te salvou quando te ataquei foi derretido pelos próprios companheiros antes de você poder dar um fim menos doloroso para ele. Morrer duas vezes deve ser péssimo.

As palavras de Marc dilaceraram a mente de Oliver, tomado por uma fúria que fez sua energia espiritual fluir descontroladamente pelo corpo.

Sem poder se segurar, o garoto fechou o punho e o apontou na direção de Marc, criando um feixe vertical de luz que destruiu o círculo de magia do necromante e quase o partiu em dois, não fosse um rápido reflexo para desviar-se.

Aquele impacto praticamente explosivo das duas magias soou como uma avalanche estraçalhando uma parede de vidro em mil pedaços.

O braço de Oliver tremia por inteiro. O acúmulo de energia envolvia muita concentração e ainda era bastante punitivo para ele caso saísse do controle.

— Então esse é o poder natural de um mago? Sem depender de um cajado como o meu para usar sua Natureza. — Marc olhava para o trajeto destruído no chão por onde o poder de Oliver passou. — Será interessante ver até onde isso vai.

 

***

 

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