Grimório dos Contos Brasileira

Autor(a): Novel Brasil


Season 2

Segundo Conto: Enlaces entre Vida e Morte

Por: Lady Raquel


Nenhum lugar do mundo jamais esteve realmente só.

Enquanto a humanidade seguia seus rumos por entre criação e destruição, tudo que humanos tinham como ‘partido do imaginário’ seguia com sua existência.

Meu povo sempre soube do que se escondia atrás do véu.

Nossa vida em Burma sempre foi calma, ao menos para o povo. Enquanto eu tentava cuidar de cada um dos meus, como se fossem meus filhos, eu também pagava por sua paz.

Não fui a única a viver momentos de intensa lucidez que exigiam reparo do homem que assumiu o lugar de nosso grão-mestre e passou a nos governar com punho de ferro.

Ninguém percebeu quando nosso líder caiu, tampouco sua substituição, mas o afastamento dos Nats foi claro sinal da calamidade — que escapou de nossa percepção.

Foi tarde para o primeiro, dentre nós, desconfiar; bastou seu olhar desconfortável ao grão-mestre caído e ele iniciou seus ataques contra as mentes mais fortes.

Eu era bem jovem.

Tocada por Shwe Pyi Nann, senhora das nascentes e águas, sempre me senti destinada ao cuidado com os meus e, quando o grão-mestre iniciou seus ataques, eu estava me preparando.

Tão conservadores, até mesmo com os conhecimentos que usávamos, para ser a ‘curandeira’, eu estudei a nossa botânica por toda minha infância e adolescência.

Aakash, nosso lar, sempre foi abençoada. Os ancestrais lutaram para nos deixar uma Aakash segura e abundante.

Estávamos em paz há muitos anos… o último conflito registrado datava do tempo dos grandes terrores mongóis.

Uma suposta paz no território abaixou nossa guarda.

Eu jamais esperaria desenvolver uma força tão grande a ponto de me tornar uma ameaça ao grão-mestre — talvez tenha ocorrido por misericórdia da guardiã das nascentes.

Por outro lado, também entendo a inevitabilidade por trás de tal força. Comecei a combatê-lo usando da herança deixada por nossos ancestrais. Eu era apenas uma… fracassei, claro!

Meu dever com o povo iniciou e o grão-mestre aprendeu a ameaçá-los para lidar comigo. Acabei domesticada e violentamente calada por artifícios mentais.

Não foi um crescimento fácil, mas abracei meu povo. Cuidei com todo meu zelo, sacrificando meu próprio corpo para impedir quaisquer violências de tocá-los.

Jamais me arrependi!

Devagar, o conformismo me mostrou ser muito mais aceitável um mundo onde meu povo viveria ao custo de minha alma do que um mundo onde meu povo não estaria.

O artifício ancestral que manutenia os recursos e a paz de nossa vila reagia a cada novo evento violento, a independer do quão pequeno parecesse, extraindo nossos recursos.

Os tijolos vermelhos de nossas construções começaram a perder cor; o grande lago que tinha nossas plantações em sua superfície começou a secar; as árvores frutíferas começaram a nos ceder frutos ruins e, gradualmente, não tinham nem folhas.

O grão-mestre mobilizou todos para estudarmos uma forma de contornar aquela consequência, mas não era possível.

Assim o grão-mestre deu um passo atrás; o artifício nos retornou a prosperidade e instaurou um ar de normalidade.

Talvez o artifício ancestral tenha nos entregado o menino, dono de olhos púrpuros, os mais belos que já vi nascer. Filho de uma mulher que eu entendia ser como eu: infértil.

Guardada por Nga Tukkya, a grande serpente Nat, guardiã das substâncias venenosas, Mi Ranna — mãe do menino — era uma grande amiga com uma complexa relação com a vida.

Ranna herdou o conhecimento mitridático, adquirido em tempos de guerra. As práticas drenavam sua vida lentamente e ela cultuava, com seu corpo, Nga Tukkya.

Leal às nossas traições, sempre ajudei com sua qualidade de vida e me sentia realizada com isso, apesar de vê-la morrer devagar — e nada fazer para tentar mudar aquilo.

O menino foi uma enorme surpresa. Não somente por nascer de Mi Ranna, mas pela força contida naquele pequeno corpo, que se manifestou desde o primeiro dia de vida.

Houve um dia em que ele chorou quando sua mãe estava afastada do corpo — algo natural nos exercícios mitridáticos.

Uma segunda vez e ele conseguiu comover toda a vila ao crermos que sua casa fora invadida por um desconhecido adulto, mas era só uma criança que nem andavam, emanando tanta energia agressiva quanto jamais vimos.

O decorrer dos dias nos apresentou a um gênio.

Registros de uma história ocidental falavam de um jovem que teve força para empunhar uma espada divina e, contando a Mi Ranna, finalmente o menino recebeu nome: Sigmund.

Ele não precisou de nosso ensino básico por já saber. Conforme o corpo lhe permitia, ele apenas aplicava o conhecimento que já carregava consigo.

— Eu já sei. — Foi uma das frases que mais falou.

Não usou apenas o páli, idioma tradicional theravada, mas também o sânscrito, o prácrito, mágadi, tâmil, cingalês…

Obviamente, nosso líder ficou interessado, mas manteve a distância. Apesar de óbvia ameaça, nada ele fez com o menino.

Foi maravilhoso observar o crescimento de Sigmund.

Contudo, enfrentamos descrença quando nos deparamos com uma alma que parecia tão próxima de arahant. Mesmo com os registros de Sidarta a Maha, nos descuidamos e as reações iniciaram: da admiração extrema ao extremo temor.

Do pior erro que poderíamos cometer, a negligência para com o pequeno foi imperdoável, inaceitável e irreparável.

Não há estado absoluto que não exija contínua lapidação.

Sigmund era uma criança com capacidades que nos faziam sentir pequenos, sempre envolvido em debates filosóficos por sua natureza rebelde, mas ainda uma criança.

Quando Ranna retomou as atividades mitridáticas, que ele entendia como suicídio, sempre narrando sentir a alma de sua mãe se desprender, tudo desandou.

Algo ligava mãe e filho e nós não conhecíamos. Esse elo inundava seu corpo infantil com uma dor agonizante durante os exercícios mitridáticos de sua mãe.

Aquela foi a primeira vez em que nada eu tinha para proteger uma criança do meu povo; foi a primeira vez que eu não podia usar de meu corpo ou alma para sofrer em seu lugar.

A perturbação imposta a Sigmund também atingia seu estado superior de consciência e presenciamos parte do que entendíamos como a outra face de arahant.

Era muito poder destrutivo fluindo de um pequeno corpo, tanto poder quanto não nos era possível lidar. Os ataques mentais do grão-mestre ao garoto foram ineficazes.

Um desesperado grito, que mais me pareceu um desabafo, foi emitido pelo dono do olhar púrpuro enquanto o tom carmesim manchava a bela cor dos olhos repletos de lágrimas.

Aquele grito foi o aviso que um banho de sangue chegava.

O lugar previamente calmo, rodeado por natureza, as plantações sobre o lago, a escadaria que levava ao monastério… tudo enrubesceu, como se o próprio céu chorasse sangue.

Bastava um toque de Sigmund e as pessoas ensandeciam.

Nossas estupas colaboravam preenchendo a vila com seu silêncio, mas ele foi perturbado pelos aterradores gritos de todos que, tocados por ele, foram tomados por violência.

Eu não estava pronta para ver meu povo trilhando o caminho da barbárie. Demorei para reagir ao meu pior pesadelo materializado… fora da esfera das possibilidades.

Jamais saberia dizer por quanto tempo fiquei parada, observando o chão ser tomado pela coloração dos tijolos de nossas casas, mas despertei em algum momento.

Um perfume doce passou e ele me retornou à consciência.

A alma tremulava em meu íntimo, mas eu precisava seguir. Alguns corpos ou o resto deles estavam espalhados.

Era noite e alguns gritos ainda ecoavam ao longe.

Fui na direção do que cri serem sobreviventes e descobri estarem tão irracionais que impossibilitavam a aproximação; caçavam por algo ativamente, mas eu não sabia o quê.

Minha natureza mártir me fez decidir por impedi-los de ir na direção das cidades, afinal, seria uma catástrofe se aquela perturbação se espalhasse por Burma.

Nunca fui a melhor nas aulas marciais, mas eu era saudável e isso colaboraria para eu ser a perfeita isca, mantendo-os sempre andando em círculos.

Foi nesse momento delicada, que fui resgatada por ele, homem de traços hindus, Ianos. Ele não me pareceu estar a serviço de quaisquer forças orientais que tive contato.

Dono de uma intensa palidez, tinha paz no semblante e mantinha os olhos fechados a todo momento enquanto o violino que carregava sempre parecia cantar.

Um ar gelado parecia acompanhá-lo, tive medo porque o frio na espinha se assemelhou a estar de frente para a morte. Ianos me ofereceu simpatia e se mostrou disposto a ajudar.

Servo da Boa Morte, era como se intitulava, sempre ostentando o iantra da morte num adorno de prata nos cabelos.

O mesmo perfume que me despertou naquela trágica noite parecia exalado por sua pele e me entregava uma incômoda paz  — talvez me fazendo sentir pronta para me despir da carne.

A vida de sacrifício por outros sempre me deu a certeza que eu jamais viveria em nome de minha própria felicidade… eu já tinha me contentado, mas os tempos mudaram.

Sigmund, outrora tomado por insanidade, foi entregue àquela que Ianos servia, dita Boa Morte. Ianos me prometeu ajudar meu povo, se eu aceitasse receber ajuda.

Aceitei bem rápido, sem nem pensar. Resgatamos os meus e fomos guiados a um templo no Nepal onde descobri que a Boa Morte tinha um nome: Macária, retratada no salão principal do templo com olhar melancólico tocando uma harpa.

Descobri que aquele povo, filhos de Macária, interviram na vila por Sigmund, destinado aos serviços da deidade ocidental.

Apesar de tudo, me foi um alívio saber que ele estava bem; que as tragicidades, vividas em Aakash, eram consequência de algo conhecido pelas crias de Macária e eles poderiam ajudar.

Vivenciar a queda de Aakash me mortificou, contudo, um povo meio-morto me reabilitou para a vida. A culpa quase me matou, mas Ianos abdicou de si pela minha recuperação.

Nunca esperei piedade, tampouco piedade da Morte, mas ela pediu que seu filho cuidasse de mim e ele me comoveu.

A aproximação num momento tão vulnerável estava fadada a despertar algo que ainda me era desconhecido: um amor, regado a eros, como esse mesmo povo me ensinou.

Por dias me indaguei se mortos amavam. Como uma adolescente, me acanhei sempre que cogitei indagá-lo sobre.

Epidotes Ianos se apresentou como oitavo general das Escadarias de Macária. Nos corredores do templo, descobri que Epidotes personificava a purificação, fora ferramenta de expurgo do deus supremo de seu panteão em tempos idos.

Saber de uma entidade tão pura habitando o íntimo de Ianos plantou a certeza que jamais nos aproximaríamos.

Essa insegurança aumentou quando ele cessou as visitas.

Nêmesis, oitavo general, foi como o rapaz, seu substituto, se apresentou. Já sabia que ele estava sob ordens de Ianos por velhas conversas e ele tinha natureza similar ao superior.

Claro, não precisei de semanas para sentir uma saudade avassaladora, mas a infantil timidez colaborou para me silenciar sempre que cogitei indagar ao rapaz sobre Epidotes.

Tardou para Ianos finalmente entrar em contato, por algumas notas de seu violino, falando em meu íntimo:

“Olá, Ava. Logo visitarei.”

Bastou ouvi-lo e a melancolia dissolveu, dando espaço a um sorriso; o corpo foi tomado por calor e o coração acelerou.

Foi com ansiedade que aguardei o dia de vê-lo.

No templo, pouco eu tinha ao meu dispôr para satisfazer o inevitável aumento de minha vaidade pela notícia.

As moças da Boa Morte não eram tão vaidosas quanto ao que vestiam ou como se embelezavam, dificultando para eu atender aos anseios da adolescência que não tive.

As conversas terapêuticas com Nêmesis já não me eram necessárias, logo, seria a primeira visita pessoal de Ianos — o que ajudou no exponencial aumento de meu nervosismo.

Era um dia de temperatura amena, muito habitual no outono daquele lugar tão remoto. Claro, a temperatura agradável não me impedia de ter as mãos suadas.

Permaneci em meu quarto, tentando me forçar a ficar sentada. Deixei a janela aberta para o frescor da tarde invadir o quarto, mas ainda era sufocante aguardá-lo.

Uma primeira batida na porta me enganou, era apenas uma das sacerdotisas carregando um caneco de vinho para me oferecer — aceitei meramente pelo nervosismo.

Na segunda vez, quando eu já estava certa que seria enganada, a batida foi sucedida pela baixa canção que eu já sabia partir de seu violino em dias intensos.

Eu o atendi com meu melhor sorriso.

Ele vestia seu quíton claro, tinha os cabelos presos pelo adorno com o iantra da morte. O violino permanecia branco, apesar de o dourado das cordas estar muito intenso.

Como sempre, Ianos mantinha os olhos fechados para omitir a força de sua alma daqueles que não tinham preparo para fitar — uma forma de cuidar dos sacerdotes jovens.

Seu sorriso foi belo ao me cumprimentar com meia flexão.

— P-pode… entrar. — Tentei não soar nervosa… em vão.

— Agradeço, Mi Ava. Como está? — Ele perguntou enquanto eu lhe dava espaço para passar. — Espero que bem!

— Bem. Segundo Nêmesis, recuperada! — comemorei, guiando-o à cama para lhe dar meu vinho. — Nêmesis já não me acompanha tanto, apesar de sempre visitar.

— É um ótimo filho. — Ianos sorriu, dando um gole no vinho. — Sempre me diz o quanto se preocupa, mas também fala do quanto está feliz por sua melhora.

— É realmente um rapaz doce — elogiei — e você, como está? Ficou. Distante. Aconteceu alguma coisa?

Era impossível disfarçar minha saudade — e isso só ficou realmente evidente para mim naquele momento.

— Estou satisfeito. Trabalhei muito nos últimos dias, cuidando, junto aos Nats em Popa, que teu antigo grão-mestre seria devidamente punido pelo ocorrido em Aakash.

— N-nossa! Teve problemas? — Preocupei-me, correndo o olhar por todo seu corpo em busca de ferimentos.

— Não tivemos problemas. Somos bem relacionados e recebemos ajuda para guiar o fugitivo em nosso território.

— Sinto um enorme alívio — suspirei.

— Todos sentimos! Sigmund foi à Popa, foi muito corajoso — elogiou. — Você ficará muito feliz ao ver o quanto cresceu.

De novo, o coração se agitou no peito e senti o saudoso sorriso surgir em meu rosto. A ansiedade para vê-lo levou inquietude aos meus pensamentos, porém foi breve.

— Em poucos dias, ele poderá vir. — Ianos lançou mais chamas à fogueira de minha ansiedade. — Antes disso, viverá um evento muito importante em sua meia-vida.

— E-eu… posso ajudar de alguma forma? — perguntei.

— Sejam Nats, deidades hindus, gregas ou qualquer outra, apenas eleve suas orações para ele ser bem-sucedido. É similar ao que ocorre entre os sucessores Nats… creio que sabe.

Para intervir na realidade, muitos seres aprenderam a dividir sua existência com uma alma forte e compatível.

Herdar a vontade de um Nat sempre se dava por um embate até a morte onde as capacidades dos desafiantes eram levadas ao limite para garantir sua sobrevivência ao amálgama.

Aquilo indicava que Sigmund, que não resistira aos estressantes eventos de Aakash, viveria uma situação muito similar ou pior — o coração ficou apertado com a ideia.

Se pudesse, o protegeria de toda e qualquer violência, mesmo a violência presente numa ave caçando um roedor.

— Não há necessidade de ficar melancólica. — Ianos me despertou de meus pensamentos. — Ele recebeu preparo por um de meus irmãos mais capacitados. Confie em sua força!

Mesmo sempre dotado de tanta calma, ele conseguia transmitir confiança. Apaziguou meu pessimismo, mas o nervosismo ainda persistiu — e creio que persistiria mesmo.

— Os cuidados primários já foram concluídos. Finalmente lidei com teu malfeitor. Agora, a pergunta é: o que fará, Mi Ava?

Observei todo o cômodo, respirando fundo, enquanto tentava pensar qual seria a resposta para aquela pergunta.

— Não… pensei sobre — ri.

— Surpreende que não o tenha feito. — Ele também sorriu. — Talvez esses muitos sentimentos dificultem?

Novamente, o palpitar do coração se repetiu.

— Não desejo ser invasivo, mas a vida transborda em teu corpo quando os sentimentos falam alto, como ocorre agora.

Estava olhando-o enquanto falava, mas ele virou o rosto em minha direção e a reação imediata foi fugir o olhar.

— E-eu… não sei… talvez.

— Pode voltar a Aakash — sugeriu.

— Falhei com Aakash — falei, bem decepcionada. — A vida naquelas montanhas não me seria suportável, Ianos Gyi. Não quero desperdiçar a vida que me retornou quando me salvou.

— Então não o faça. Gosto que seja honesta consigo.

Assenti com a cabeça e respirei fundo para me encorajar.

— Acredito que conhecê-lo e tê-lo nas minhas manhãs por tanto tempo acabou me… fazendo esquecer… como é… a vida sem você. — As maçãs do rosto queimaram, mas eu consegui!

— Vivo pela fé e pela responsabilidade com o ciclo de vida e morte, mas compartilho do sentimento — falou num tom solene. — Por isso vim. Após o fim de um capítulo de sua vida, quero entender o próximo e, claro, saber se posso estar nele, mesmo cumprimento com um papel pequeno…

Senti os olhos lacrimejarem — talvez o nervosismo ou forte impacto que a certeza da reciprocidade me causou.

— I-isso é… — Não consegui terminar.

— Não se pressione, Mi Ava… Temos tempo… — Ele levantou deixar o quarto e retornou com vinho para nos servir.

Sentou ao meu lado e compartilhamos do vinho pela tarde. Pouco conversamos e isso manteve meus ânimos mais calmos, afinal, era confortável estar ao seu lado.

O nervosismo apenas se manifestaria se eu estivesse confrontando ou explorando os sentimentos que ele me despertava e pareceu proposital de Ianos não fazê-lo.

Aquele foi o primeiro de outros encontros que, devagar, começaram a ser mais preenchidos com conversas. Apesar de Ianos preferir não entrar em assuntos mais delicados.

Conversamos sobre muitas frivolidades e curiosidades que ele, em sua vida como guardião, aprendeu sobre todo o mundo.

Foram conversas fascinantes, momentos inesquecíveis…

Acabamos nos permitindo uma amizade. Isso me permitiu viver algumas experiências que tinham, sim, um tom inocente — da ida adolescência —, mas também apaixonado.

Tive tempo para pensar e entender o que ocorria comigo.

Foram alguns meses até ele me convidar para conhecer sua casa, dizendo ser um ótimo lugar e possível destino, caso eu decidisse me unir a ele algum dia.

De novo, eu experienciava ansiedade.

Tivemos uma longa semana de preparo para eu conseguir acompanhá-lo com maior segurança, segundo suas palavras.

No dia marcado, ele chegou cedo. Surpreendeu ao ir diretamente ao meu quarto — o que me deixou bem acanhada.

— Preparada? — Ele sorriu.

— S-sim — assenti com a cabeça.

A passos lentos, ele se aproximou para envolver minha cintura, pousou o queixo em meu ombro para falar:

— Sei não ser justo com você, mas precisa segurar em mim. Será desconfortável, como já sabe, mas você consegue.

O coração rapidamente disparou. O hálito quente fez um arrepio se estender por todo o corpo e acabei arfando.

Nem nos senti caminhando, mas senti o imediato frio.

Num primeiro momento, a sensação foi de ter o ar escapando rápido de meu corpo; como se minha vida estivesse fugindo enquanto algo estremecia em meu íntimo.

— Precisa buscar calma; apenas parece, mas nada lhe ocorre de grave. Isso é apenas seu corpo tentando se proteger, mas você está segura comigo… — Ianos falou bem devagar.

Eu teria assentido com a cabeça, mas não tenho certeza se consegui, dado o quanto era difícil sentir meu próprio corpo.

Não saberia dizer quanto tempo demorou.

Não havia uma medida de tempo óbvia naquele lugar, como ocorreria se chegássemos a um lugar iluminado pelo sol onde eu, inevitavelmente, saberia que está mais claro e quente.

Foi muito forte e pareceu que não passaria tão cedo, mas a sensação aquietou. Deixando apenas uma vertigem incômoda que esperei cessar enquanto nos braços de Ianos.

— Confesso que, quando atribuí Nêmesis à sua reabilitação, esperava propô-la uma desintoxicação… de mim. — Ele deu uma breve risada, entendendo quanto aquilo era bobo.

Quando a vertigem se foi, finalmente observei o lugar.

Era um grande salão de paredes tingidas com um cinza claro, manchado por um tom de verde, partido das chamas dos castiçais nas paredes — que tinham sutis fios azuis.

Definitivamente, meus sentidos não lidavam bem com aquele local. Quando voltei a sentir o corpo, uma forte sensação de estar em movimento me deixou tonta.

Distantes sons de pancadas ou grandes estruturas se chocando emitiam um ruído estridente, que causava um intenso tremor em todo meu corpo.

— D-desintoxicar? — perguntei, rindo da ideia absurda.

— Você estava num momento vulnerável. Podia facilmente confundir bem-querer, gratidão e amor. — Ele acariciou meus cabelos. — Você precisava daquela distância, Mi Ava.

— Senti saudade igualmente! — reclamei, quase fazendo pirraça —, mas agradeço sua preocupação — sorri-lhe.

— Jamais poderia me aproveitar, mas… confesso que seria difícil suportar não poder amá-la. — Finalmente exibindo seu âmbar olhar, ele me fitou com melancolia.

— Sendo tão relevante em sua sociedade, tão forte e jovem, não faz sentido eu tê-lo comovido dessa forma… Não tenho ideia do que é a ‘personificação da purificação’.

— A aparência jovem é apenas um traço dos degraus — riu. — Não necessariamente indica jovialidade como entende.

— Nunca perguntei sua idade. — Olhei-lhe com curiosidade, analisando seus traços em busca de respostas.

Sabia que ele era nativo da Índia, mas a palidez da pele, dita por ele ‘amarelo acastanhada’ há muitos, se repetia por todos os sacerdotes e não parecia haver um indicador de idade.

Seus longos fios um pouco crespos eram escuros.

— Se está buscando rugas, se frustrará! — riu. — Contando como o dito papa, devo ter cerca de vinte e nove anos… adicionando o tempo em que fui vivo: trinca e cinco.

— Não contam o tempo que vivem?

— Não é habitual. Os restos do ser humano que fomos ficam para trás para usufruímos de nossa morte — sorriu largo.

— Imagino que contem aqui de seu próprio jeito — presumi e ele assentiu. — Então, qual é sua idade aqui?

— Cinquenta e dois anos.

— Uau! — arregalei os olhos. — Tenho cinquenta anos, que exótico! Até me sinto acanhada pelas rugas. — Senti quando rubor começou a se espalhar em meu rosto.

Ianos riu, acariciando meu rosto.

— O tempo já não pode me tocar. Esse pode ser o motivo de eu não entender a timidez pelas rugas. É tão natural… e belo.

— Sou vaidosa! — Eu o repreendi.

— Ah! A boa filautia. Saiba que você só é essa bela canção devido às rugas por entre suas pautas. — Soou galanteador. — Não há nada mais belo que um ser vivo vivendo — sorriu.

De volta à adolescência, eu me acanhei — teria me escondido em seu peito, mas o corpo apenas desmanchou.

Devagar, o movimento do ambiente deixava de incomodar.

— Podemos seguir? — Ianos perguntou. — Assim nos aproveitando dos sinais de melhora em ti.

— Podemos.

— Seguimos devagar — instruiu. — Caminhar será uma tarefa complexa. Ocasionalmente, você voltará a sentir a dificuldade com os sentidos agitados… é um caos passageiro.

Nem percebi em que momento o violino deixou sua mão para estar sobre uma pequena mesa há alguns passos de nós.

O móvel contrastava com o ambiente, parecendo feito de uma madeira com tom preto bem fosco. Como não vi antes, o violino tinha seu corpo branco e as cordas estavam prateadas.

Seu elo com o instrumento foi evidenciado quando ele o olhou e o violino desapareceu devagar, surgindo na mão onde eu me lembrava de estar ao partirmos de meu quarto.

Com seu toque, o tom dourado começou a tingir as cordas numa velocidade lenta e com menor intensidade.

— Sente algo? — perguntei preocupada, olhando o violino.

— Não, despreocupe-se. — Ele deu uma risada. — Em casa, a escadaria pode lidar com quaisquer excessos, logo, pouco de minha sinfonia deságua nas cordas.

— Então, do contrário, você se sente bem.

— Sim, é agradável. Apesar de eu já estar muito acostumado com a canção tocada pelo vazamento, confesso.

Devagar, demos os nossos primeiros passos naquele lugar.

Eu me sentia uma criança aprendendo a andar. O lugar parecia não ter fim, o que me despertou muita curiosidade, mas o zelo por meu equilíbrio me fez optar pelo silêncio.

Quase concluí não haver passagens, mas ele parou a frente de uma parede e a passagem para um corredor surgiu.

Bastou fitá-lo para eu sentir uma forte tontura.

Busquei apoio em seu ombro rápido, mas ele também se apressou, impondo mais força no braço que me amparou.

O ambiente do corredor tinha inúmeras mandalas, tingidas por cores vívidas, nas paredes de ambos os lados.

Parando em sua entrada, olhei para cima e era muito escuro, impossibilitando saber quão acima estava o teto.

À nossa frente, o movimento daquele lugar ficava evidente, sendo possível ver curvas que ora existiam, ora inexistiam.

Seguimos lentamente; primeiro pela confusão de meus sentidos, depois pela minha precaução e inevitável apreciação da impressionante arte com as mandalas.

As primeiras portas para outros cômodos surgiram e elas também se moviam, abrindo e fechando sem nenhum padrão.

Num dos momentos onde o corredor estava alinhado, parei ao ter a exótica sensação dos pés deixando o chão.

— Acalme-se. — Ianos falou num tom baixo.

Observei meu corpo e eu me vi de pé, apesar dos sentidos me enganarem, fazendo-me sentir estar de ponta-cabeça.

Dessa vez, além de me amparar, Ianos acabou rindo e eu também. Isso ajudou a diluir meu nervosismo com a situação.

Demorei para perceber que o acinzentado chão tinha alguns riscos, formando padrões quadrados que não eram, necessariamente, divisões de porcelana.

Acabei percebendo que os padrões se repetiam no quíton de Ianos, mas nem o indaguei sobre. Num tom baixo e lento, a velha canção do violino começou a soar.

Preocupada, eu o olhei e observei o instrumento, notando que as cordas começavam a intensificar lentamente.

— P-problemas?

— O contato me agita.

Arfei, o rosto queimou e eu silenciei.

Observando o interior das portas, notei quartos, alguns ocidentais, outros orientais; em seus interiores, observei muitos jovens, tocando seus instrumentos, estudando ou dormindo.

A calma de Ianos enquanto seguíamos era desconcertante.

— C-como consegue? — Eu o perguntei, rindo de mim.

— Macária me moldou para andar em minha casa…

— Não é possível, Ianos Gyi! — brinquei.

— É muito possível — riu. — A escadaria é uma extensão da vontade de seu guardião. O início é difícil, principalmente para os vivos, mas até os vivos podem se adaptar.

— Maung Sigmund viveu todo esse caos!?

Não saberia dizer se eu estava mais preocupada ou curiosa.

— Não consigo identificar se o tom é retórico.

— Não é.

— Todo sacerdote nos degraus lidou com isso. Alguns tão intensamente quanto você, outros não. Depende do quanto se conhece; do tempo em que esteve exposta ao plano vivo; de como sua existência se comunicava com o plano vivo; e outros…

O corredor terminava com duas saídas, ambas com largos portais bem ornados no que parecia gesso de cor escura.

Tomamos a passagem que levava à óbvia cozinha.

Era um grande ambiente com uma larga mesa no centro, algumas bancadas, mas os fogareiros e o maravilhoso cheiro de algum chá sendo preparado evidenciou o que era.

Uma vívida jovem, de aparentes dezesseis anos, era quem cozinhava o chá. Ela vestia um sanghati branco, estava descalça e tinha os cabelos curtos escuros perfeitamente cortados.

Ela tinha um khin de bambu — flauta que há muitos eu não via — às suas costas, posicionado como alguns guerreiros orientais costumavam descansar suas lâminas curtas.

— Meu pai! — Sua voz melódica soou enquanto ela se virava para se prostrar a Ianos, mantendo a cabeça baixa.

— Olá, pequena! Mi Ava, essa é Teoria Aye.

— Uau! Essa é a lendária Ava! — A mocinha riu. O olhar de cor clara, como Ianos, me fitou com surpresa e admiração.

— Se está cozinhando lahpet, o cheiro está ótimo! — elogiei, olhando o fogareiro para disfarçar minha timidez.

— Temos alguns irmãos que também têm o lahpet como chá preferido, então costumo servi-los diariamente… aceita?

O cheiro era muito tentador, eu adoraria comer um chá, mas tive medo de aceitar dada a confusão que o corpo vivia.

— Não tenho certeza se devo.

— Por que não se senta e espera para decidir? — Ianos foi quem aconselhou, começando a me guiar à mesa.

A mesa e cadeiras não eram altas ou baixas, parecendo mesclar as mobílias, tanto do oriente, quanto o ocidente.

— Teoria… — falei com curiosidade, olhando-o.

— Teoria personifica as festas, a alegria e a felicidade da lavoura. Muito associada aos simpósios… e também responsável por Aye ter um dos olhares mais belos da oitava escadaria.

— É bem vívido realmente — assenti com a cabeça.

A mocinha ficou bem acanhada e voltou a cozinhar.

— O que está achando do passeio em minha casa? — Ianos me perguntou, sentando ao meu lado com um belo sorriso.

— Difícil, Ianos Gyi, mas consigo lidar.

— Sei que consegue, mas você tem certeza do que quer?

— Nada me restou após Aakash — suspirei, abaixando a cabeça. — Sei que pode me ajudar a transitar ao plano vivo, se eu quiser ver alguns dos sobreviventes…

— Sempre poderei e, quando não puder pessoalmente, tenho uma horda para assumir essa tarefa. — Ele assentiu.

— Sendo sua… consort-

— Companheira? — Ele interrompeu para corrigir.

— Companheira. Terei algum dever ou responsabilidade?

— Meus deveres enquanto oitavo guardião são simples e me pertencem. Nada lhe será atribuído numa eventual união.

— Posso conhecer seus deveres? — Fui curiosa e acabei me acanhando ao entender o quão invasiva foi aquela pergunta.

— Sou um dos catorze guardiões. Minha escadaria guia finados sacrificados, seja por autossacrifício ou não.

— Exótico…

— Todo guardião deve cuidar dos degraus em caso de invasão. A oitava escadaria é minha responsabilidade e, claro, isso vem acompanhado da melhor responsabilidade: o cuidado com a oitava horda, meus filhos — sorriu largo.

— Qual papel é desempenhado por eles? — Franzi o cenho.

— Sinto os finados. O som do rompimento de seus fios vitais soa a todo momento e transmito esse som pela horda.

Confesso que imaginar aquilo foi impressionante.

— Transmito ao general, Nêmesis; que transmite aos tenentes-generais, Adicia e Afeleia; e eles seguem distribuindo pela horda. Apenas busco aqueles com poder para resistir.

— Deve ser complexo. — Fiquei imediatamente preocupada.

— Não tanto. Enquanto servos de Macária, lidamos com almas resilientes, que comumente rompem o elo com a vida de forma pacífica, logo há paz em seu desprender — explicou.

— Então, como tem algumas q-

Particularmente, não tive coragem de terminar a fala.

— Uma coisa por vez… — Ele suspirou. — Tenho como dever cuidar das relações diplomáticas com algumas cortes orientais, principalmente hindus dada a oitava ligação com eles.

— Por isso muito lidou conosco?

— Também — assentiu. — Respondendo sua pergunta: difere. Existe a vida vestindo carne; a vida se despindo e o existir da alma. São etapas de diferentes khandas, aplicando um termo theravada para seu melhor entendimento.

— A mudança pode ser tão grande para perturbar a paz que preenche o finado em seu fim!? — Fiquei impressionada.

— Em alguns casos, sim.

Ele não pareceu tão confortável com o assentimento.

— Lastimável! — lamentei, meneando a cabeça.

— As almas estão doentes; a vida está doente e essa doença impacta em tudo, até nas boas mortes… É trágico!

Um estridente barulho de choque de metais soou, próximo da mocinha, fazendo meu coração disparar no peito.

— Mudamos o assunto… — Ianos riu, olhando para Aye.

— D-desculpa, meu pai! — Ela se reparou, pegando a colher que derrubara para seguir à pia.

Ainda observei o chão, certa que ouvi barulho de metal.

— Maung Sigmund falou do sufocamento quando viu essas almas. — O corpo estremeceu. — É egoísta, mas temo. Sou viva…

— Foi exótico me descobrir apaixonado, Mi Ava. — Ele deu um tímido sorriso. — Antes mesmo de entender amá-la, eu já investia toda sabedoria de bodhi em seu bem-estar…

— Isso é romântico e preocupante — ri.

— Sei, mas não mudarei. Dediquei cada dia de minha existência enquanto Ianos ao meu dever como guardião.

— Esse empenho fica bem evidente, é muito centrado!

— Macária nos dá poder e capacidade para lidar com situações inimagináveis, bastando apenas ser Seu filho para eu poder incluí-la em minhas prioridades, Mi Ava.

Ele acariciou meu rosto com ternura.

— Felizmente, eu tenho mais que isso. Jamais precisarei temer ser insuficiente para sua proteção e cuidado. Nada mais me é necessário! Isso é arahant, sem dúvida alguma — riu.

Terminando de preparar o lahpet, Aye nos serviu, usando da louça tradicional de Burma. Era chá-preto; alho, gengibre e coco ralado frito eram os acompanhamentos.

Bastou colocar algumas das folhas com o alho na boca para eu sentir o forte sabor, sendo necessário mastigar porções ainda menores e com muito mais cautela.

O ambiente já tinha um calor anterior, ficou mais quente!

— Forte! — Acabei rindo.

— Num primeiro momento, nossa culinária lhe será muito intensa, mas o paladar se adaptará — explicou Ianos.

Uma sensação morna viajou meu corpo, espalhando arrepios por todo ele — e obviamente me deixando acanhada.

De repente, pareceu que o lugar não mais se movia só.

O relaxamento foi tão intenso que até bocejei de alívio.

— Tudo parou! — ri, surpresa.

— Não é bom que seu sistema digestivo trabalhe enquanto tudo se move. — Ianos falou com um sorriso. — Deixarei a horda pronta para o movimento mais brando da escadaria.

— V-você consegue!? — Franzi o cenho. — Claro, Ava! — suspirei, recordando suas palavras. — Por que deixa que o lugar se mova, se pode simplesmente comandá-lo? — Fiquei curiosa.

— Não controlamos os degraus lá fora e eles se movem. Cessar o movimento impossibilitaria nosso trânsito lá fora.

— Caótico! — ri, tentando imaginar como era.

Ele deu uma sutil risada, mas voltamos ao nosso chá.

Ao fim, ele tomou minha mão para convidar:

— Vem… mostrarei o exterior de minha casa.

— Como é viver cercado por um céu!? — Eu ainda tentava imaginar. — Não há um chão, como temos aqui? — Tomei seu braço enquanto olhava para baixo.

Àquela altura, nem poderia saber se chamar ‘chão’ era realmente adequado — o prévio som de metal e a ideia de uma estrutura simplesmente voando me deixava bem confusa.

— Temos os degraus, são nosso chão lá fora.

— As pessoas não podem cair? — Fiquei preocupada.

— Por isso se exige cautela ao caminhar! — alertou.

Segurei mais forte em seu braço, silenciando.

Não precisamos andar muito para tomar a segunda saída do corredor que nos levou a um amplo salão, como o lugar onde chegamos, mas nesse os motivos hindus eram mais sutis.

Com traços tão finos desenhados nas paredes que olhos desatentos facilmente negligenciariam e perderiam sua beleza.

Olhando a óbvia entrada e saída, já era possível ver o céu estrelado, bem escuro, tinha muitas estrelas por todo ele.

Enquanto eu observava, Ianos tragou minha atenção ao envolver minha cintura. Uma gélida sensação viajou meu corpo e tudo ficou escuro por um instante que pareceu eterno.

O breu foi lentamente substituído pela paisagem a começar pelo céu, que mais parecia tangível, apesar de esticar os braços em sua direção não me permitir tocá-lo.

Agarrei-me a Ianos quando senti que cairia. Novamente, o equilíbrio estava afetado, mas tive coragem de olhar ao redor.

Estávamos num degrau de uma escadaria sem fim, pairando naquele céu. Foi vertiginoso tentar me orientar.

Olhando para o alto, haviam degraus ao longe — o que desorientou ainda mais e me fez simplesmente parar de olhar.

Não eram degraus ligados entre si, tinham cor escura e a ausência de algo preenchendo os vãos entre eles possibilitava enxergar o céu por aquele espaço vazio.

— Aqui, estamos bem acima dos degraus comumente usados por meus irmãos. — Ianos falou. — Essa é minha casa!

Tornei a olhar ao redor, considerando que o equilíbrio se afetaria, por si só, mesmo que eu não me movesse para nada.

Procurei por um astro ou satélite, mas haviam apenas inúmeras estrelas de diferentes cores, tamanhos e intensidades.

— Podemos nos sentar. É seguro! — Ele sugeriu.

Assenti e ele me ajudou a sentar, sentando ao meu lado em seguida. Deixou uma das mãos próximas, me permitindo segurá-la — o que colaborou com a sensação de segurança.

Eu não podia sentir o movimento dos degraus, mas notei que eles pareciam se mover numa lenta velocidade.

Ali, a temperatura era mais amena.

Haviam treze construções dispostas espiraladamente no horizonte e, em seu centro, princípio ou fim, estava uma plataforma com a décima quarta construção, ainda maior.

A iluminação era pouca, mas bastava fitar um lugar que eu podia enxergar com uma perfeição digna de uma época jovem.

Haviam sacerdotes caminhando e eu podia ver seus rostos, identifiquei seu trabalho com Macária pelas vestes e pelos motivos que já faziam inevitável parte de minha vida.

Observando-os, a mistura de culturas humanas ficou nítida. Diversas vestes, instrumentos musicais, acessórios e, até mesmo as cores, eram inegáveis traços dos vivos que foram.

Alguns moribundos caminhavam sozinhos, parecendo sem rumo. Tinham aparência um pouco translúcida; alguns pareciam saudáveis, outros já não pareciam tanto.

No templo, falavam de almas que acabavam presas à beira do Estige por diversos motivos: falta de moedas para o tal barqueiro, incompreensão ou, até mesmo, teimosia.

Ali, não parecia que seus motivos para permanecer naquele estado diferia para o que lhes restava fazer: lamentar.

— E-eu… nunca vi nada assim! — exclamei.

Por um instante, eu me senti sem ar, vítima de uma absurda sensação que bombardeava todo meu corpo, meus sentidos, estremecia o mais íntimo da minha alma.

— A minha casa é linda, eu sei! — Ianos sorriu largo.

— Isso é maravilhoso… e assustador!

Observando com cuidado, notei que as plataformas que formavam os degraus tinham medidas idênticas; não haviam paredes ou corrimões protegendo ninguém de uma queda.

A mera ideia me foi bem assustadora.

— Precisa respirar fundo — aconselhou Ianos. — O coração e os pulmões não devem se cansar tanto — riu.

Coloquei a mão no peito, tentando sinalizar ao coração para acalmar, mas ele foi malcriado. Olhei para Ianos, tentando fugir da vontade de continuar buscando respostas àquele lugar.

— Sem um astro, não deveria ser mais frio?

— Os degraus são, por si só, uma extensão de nosso astro-rei. Erguidos pela Mãe, estão ligados àquele que habita aquela construção — falou, apontando para a construção central.

— O que é aquele lugar?

— O Templo dos Mortos, lar da Guardiã das Leis, Nous.

— Não ouvi dessa… — Olhei-lhe com curiosidade.

— Nous personifica a razão, o pensamento e a inteligência. Foi filho de Nomos, a lei, e Eusebia, a piedade; sendo irmão de Diceosine, a justiça natural; Étos, a ética, e Sofia, a sabedoria.

— Havendo todo esse parentesco, os indivíduos naquele local acabam seguindo pelas mesmas veredas, se me faço clara?

— Sim, respeitamos a história dos habitantes de nosso céus. — Observou as estrelas. — Logo, é comum que crianças de Eusebia, Diceosine, Étos e Sofia estejam a serviço de Nous.

— Há algo como um sol lá? — Acabei rindo da pergunta.

— Sim. Ele ilumina, aquece e nutre, sendo orbitado pelas escadarias — deu de ombros. — Viveria aqui, Mia Ava? Ainda pode viver numa vila viva e não me incomodaria em visitá-la.

— Eu já não suporto ou desejo a vida — suspirei.

Ele acariciou meu rosto com zelo.

— Reencontrei motivos para viver quando te conheci. Não gostaria de seguir uma vida longe de ti, Ianos Gyi.

Um arrepio alastrou pelo corpo e algo pareceu estremecer dentro de mim, me removendo o ar. Senti o toque de Ianos correr meu corpo enquanto notei o cabelo contorcer no ar.

— P-perdão! — Ele meneou a cabeça, fechando os olhos.

— Nunca me imaginei apaixonada…

— Nem eu! — riu. — Nunca nem tive interesses similares.

Pousei as mãos em seu rosto, descansando a testa na sua.

Nossas respirações se encontraram e se misturaram enquanto, em silêncio, nossos olhos conversaram. Eu era definitivamente grata por estar ali naquele momento.

Principalmente estando na companhia de quem nunca duvidou do meu poder de superar a forte tristeza presente em mim após os eventos que destruíram tudo que eu cria ter.

Mergulhei no olhar âmbar até estar de olhos fechados, vivendo o beijo dos meus sonhos ao som da provável instabilidade que fazia o violino intensificar sua canção.

Ianos envolveu minha cintura e foi ainda mais intenso.

Pude me sentir invadida por ele; tive a assustadora visão do princípio da morte e da vida; a assustadora visão da completa inexistência e a bela visão da existência na totalidade.

— E-eu… — Era impossível estar mais perdida.

— Eu a amo muito, Mi Ava.

— O que é isso!? — Coloquei a mão sobre meu estômago.

A sensação era ter pequenas criaturas se movendo em meu íntimo. Isso me deu muita estranheza, mas não era necessariamente ruim — talvez um pouco engraçado.

— O quê? — Ele me observou com apreensão.

Fitando seus olhos, eu me vi tragada ao seu lugar, observando meu próprio corpo e isso foi muito confuso.

— O que é… essa sensação… de não ser eu? — falei baixo.

— É contagiante. — Ianos soou tímido. — Perdão!

Ele se afastou, nitidamente buscando se acautelar.

Devagar, a exótica sensação diluiu e eu pude me sentir voltar a normalidade; como se me desligasse daquele estado.

— Maung falou que sua líder é rígida. Não lhe causarei nenhum problema? — Decidi trocar o assunto para facilitar.

— Abaixo de Macária, sou a maior autoridade em minha escadaria. Se Anaideia intervir, ainda lhe direi que você será mãe do próximo general da minha casa.

— C-como-

De novo, ele me removeu o ar com pouca coisa.

— Enquanto criatura, meu destino é tecido por Ela. Todo Epidotes está destinado a, se tiver um filho, gerir Nêmesis.

— N-não posso… Sou- — Os olhos encheram de lágrimas e os soluços acumularam numa velocidade impossível de conter.

— Não, você era… — Ianos me abraçou para me reconfortar. — Jamais permitiria que sequelas tão cruéis realmente perpetuassem no corpo da minha musa.

— V-você- — Não consegui perguntar.

Na verdade, eu temia ouvir a resposta.

— Sei o quanto sonhou com isso… Está certa do que quer?

Assenti com a cabeça, incapaz de falar.

— Chore suas lágrimas, regozije dessa felicidade e, dada sua certeza, vamos à Popa. Você é viva e esteve debaixo das asas dos Nats por muito tempo, logo levarei esse assunto a Mintara.

Tornei a assentir e ele me abraçou mais forte.

A razoabilidade me fugiu por aquele pequeno tempo em que, em seus braços, eu pude chorar a frustração e tristeza pela dita infertilidade pela qual senti por toda a minha vida.

Num primeiro momento, a sombra do líder disse que eu não podia conceber pelo dever com o povo; depois, ele impôs a incapacidade por um processo doloroso e muito estressante.

Aconchegada, o cansaço começou a se abater.

— Posso retorná-la? — Ianos me perguntou.

— S-sim, sinto… sono.

— Inicialmente, esse cansaço é inevitável e chorar também cansa — riu —, mas a adaptação virá. É uma mulher forte!

Ele me pegou em seu colo para caminhar pelos degraus.

Novamente, tudo escureceu e Ianos envolveu meu corpo. Não demoramos para chegar num ambiente mais iluminado.

De olhos fechados, eu me senti em meu quarto.

— Nada fale ainda. — Ianos instruiu. — Mantenha os olhos fechados e a respiração lenta. Devagar, o labirinto estabilizará.

Ele me sentou à cama e manteve carícias em meu rosto enquanto eu seguia suas instruções. As dificuldades de quando fomos se repetiram numa intensidade menor.

Senti o toque de Ianos em meus pés e ele removeu minhas sandálias, pousando meus pés diretamente no chão gelado, que parecia vibrar intensamente — apesar de não emitir ruído.

Ele ainda me envolvia e, devagar, a percepção sobre o quarto melhorou. Senti a brisa que entrava pela janela espalhando o perfume das frutas e flores do exterior.

— Pode abrir os olhos. Não realize movimentos bruscos.

— C-claro.

Ao abrir os olhos, tudo ainda parecia se mover.

Ianos estava ajoelhado a minha frente, novamente de olhos fechados. Precisei fechar os olhos rapidamente, voltando a me concentrar em minha própria respiração.

— Não recomendo ingerir nada pelos próximos trinta minutos. — Ianos aconselhou. — Descanse por essa noite e amanhã planejamos nossa viagem à Burma.

— Aguardarei. — Senti-me ansiosa pelo próximo dia.

— Recomendo um chá para se acalmar. — Ele soou preocupado. — Observarei  de casa, eu prometo! — riu.

Ele se levantou para me ajudar a deitar. Fitou meus olhos enquanto suspirava, mas apenas se aproximou para me beijar.

— Eu realmente a amo, Ava. Boa noite! — desejou.

Devagar, o vazamento que apenas tocava as cordas do violino parecia se estender, ficando evidente por pequenos feixes dourados que pareciam deixar seu corpo.

O óbvio sinal de instabilidade pareceu deixá-lo apressado e ele partiu, sem que eu pudesse lhe dar uma resposta.



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