Season 2
Primeiro Conto: Alma Perdida
Por: Dobberman
Era uma noite fria e chuvosa que poderia ser em qualquer lugar do mundo, ali uma pessoa caía ao chão segurando firmemente um berloque, um pequeno objeto cintilante em formato de cruz, mas com uma lágrima no lugar da barra superior. Nele depositou sua última esperança. Seu corpo, já quase sem vida, dá um último suspiro antes de esvaziar seus pulmões pela última vez.
Aquele mundo, outrora colorido, tornou-se cinzento para aquela pobre alma e, com isso, despertou a atenção de um velho chacal que viajava próximo. Ele vinha sob um manto negro adornado com hieróglifos dourados e carregando um cajado de pastor feito inteiramente de ouro.
Aproximou do corpo e observou o berloque. Então decidiu guiar a alma, pura e imaculado, do corpo recém caído.
— Você está livre, minha criança. Está na hora de começar sua nova jornada. O que você tem a oferecer?
A alma recua e observa a criatura com receio.
— Não tema, criança — diz o chacal. — Deixe todas as preocupações com aquele corpo. A partir de agora você iniciará a verdadeira jornada e tudo que importa é...
— O seu coração — uma voz estridente, como um arranhar de lousa, interrompe a cena. O chão arde em chamas enquanto ele caminha, vestido com um sorriso confiante e um terno vermelho elegante. — Eu tomaria bastante cuidado em aceitar a proposta desse cão egípcio.
— Satã!? — disse rangendo os dentes.
— O próprio, em fel e escárnio.
— Desapareça! – falou de forma ameaçadora brandindo o seu cajado. – Essa alma está sob a minha proteção. Suas últimas súplicas foram na antiga fé egípcia e está longe do seu domínio.
— Não me leva a mal, Anúbis, mas irei discordar. Essa pequenina ai também foi batizada na fé cristã e você sabe que ninguém mais venera seus deuses pré-históricos.
O chacal rosnou e olhou com pena para a pobre alma que apenas observava, sem reação, sem ousar a mencionar sequer uma palavra. Ponderou por alguns segundos e quando se deu por si, o Diabo já estava próximo o suficiente da alma para lhe agarrar.
Houve um baque. O cajado foi balançado furiosamente e quase acertou o demônio, o qual desviou em um passo de dança debochada.
O cão disse: — Que tal um jogo? —
O sorriso convidativo do demônio mostrou um rio pelo qual o deus egípcio poderia navegar para resolver a disputa.
Então continuou: — Escolha qualquer coisa contra essa pena de avestruz. Caso o prato penda para o meu lado, você poderá levar essa alma, do contrário deverá desistir.
Satã ajeita a gravata, desvia o olhar e passa os dedos no cabelo, erguendo apenas uma das sobrancelhas enquanto diz: — Um jogo? Você tem certeza que quer apostar? Contra MIM?
O Pai da Mentira erguia seus lábios até o céu em um sorriso bobo, coçava seu pescoço e esfregava as mãos, lutando com todos os ardis para não transparecer sua empolgação.
Tudo em vão.
Aproximou da balança prateada e passou a analisar cuidadosamente. Virou e revirou o objeto buscando algum truque ou artimanha do deus egípcio, que apenas lhe observava inexpressivo. — Eu posso colocar qualquer coisa?
Anúbis acenou afirmativamente com a cabeça e, em resposta, Satanás prontamente respondeu: — Tudo bem então, se tudo que eu preciso escolher é algo mais leve que essa pena, eu escolho uma promessa — disse com um sorriso vitorioso.
Os olhos alaranjados do chacal fitavam os olhos negros do demônio, o qual já cantarolava baixinho uma canção de vitória.
— Muito bem jogado, você me surpreendeu. Imaginei que colocaria moedas, riquezas, algo insignificante ou algo de valor, porém jamais imaginaria que iria escolher algo imaterial como uma “promessa”, algo que sequer poderia ser pesado. Ocorre que a sua promessa é falsa, assim como tudo que sai da sua boca, enquanto a pena de Ma’at representa a justiça — disse depositando-a, confiante, no segundo prato.
— A mentira jamais será mais leve do que a justiça.
A balança pendeu para Satã, mas isso não retirou o seu sorriso, apenas reduziu. — Que droga, parece que eu realmente perdi essa. Fique com essa alma e a julgue da forma que melhor lhe convêm — disse e se jogou de costas no chão, afundando no solo como em água.
O deus egípcio não pode conter sua satisfação por ter vencido o pai da enganação e esboçou um sorriso. Observou a criatura e riu da facilidade de enganar o Mestre das Trapaças. Ele riu, gargalhou como há muito não fazia e então olhou para alma, recobrando o propósito, não estava ali para disputar com Satanás, mas sim para guiar os mortos.
— Não tema, criança, logo vai acabar. — Aproximou-se, Anúbis, sentou com um dos seus joelhos no chão e passou sua mão delicadamente na alma, acariciando-a. Ao retirar sua mão, trouxe um coração pequenino, frágil, fraco e esperançoso, completamente imaculado da corrupção como somente uma criança poderia ter, pôs sobre a balança contra a pena da Ma’at e, já sabendo da resposta, perguntou: — Esse coração é digno de Duat?
A voz de Satã repetindo a frase do cão em deboche denunciava que ainda não havia desistido daquela alma, contudo não restava mais nada que ele poderia fazer. A balança pendeu. Para surpresa do chacal, o coração daquela criança foi considerado indigno, deixando-o em choque.
Procurou a resposta daquele enigma em pensamentos. “Como poderia essa alma ser considerada indigna se o coração dela ainda é puro?”
A resposta não veio, mas um gigantesco crocodilo surgiu das sombras com sua bocarra aberta engolindo tudo a sua frente e correndo violentamente na direção da pobre alma.
Anúbis gritou: — Ammit, espere! Há algo de errado.
— Tenho fome, não como há séculos e você me pede para esperar? — disse sem diminuir a marcha, e com toda a velocidade avançou sobre o sentenciado, porém antes que fechasse sua mandíbula o chacal havia posto seu cajado de ouro atravessado no céu da boca.
O chacal agarrou a alma e pulou o mais distante possível da deusa faminta, e continuou se distanciando e esquivando das investidas dela: — Espere... Espere! Há algo de errado, não foi um julgamento justo. Acalme-se Ammit para que possamos conversar.
— Seu cachorro maldito, não interfira, cumpra o seu julgamento e entregue a alma a mim!
Sinalizando no ar com seus dedos o cão desenhou um grande hieróglifo, o que fez ceder o chão sob os pés da deusa, fazendo-a cair em uma profunda cratera aberta. Em seguida, se atirou contra o demônio, agarrou-o pelos ombros e lhe derrubou no chão, rosnando em seu rosto: — Que truque você usou, Satanás!
— Agora a culpa é minha? Você quem a julgou!
Um grande pedregulho é arremessado na direção do deus egípcio, desviando a sua atenção por uma fração de segundo, o suficiente para que Satã desaparecesse e surgisse ao lado de Ammit, já recobrada da magia do chacal.
— Você é um péssimo perdedor, cachorrinho — disse enquanto agarrava o cetro de ouro e retirava da boca da deusa faminta.
— Perdedor? Eu sabia, então você confessa que trapaceou!
— Você também trapaceou, seu canalha maldito — gritou, a crocodilo, batendo furiosamente com seus pés no chão. — Eu deveria devorar ela, mas você se recusa a aceitar o julgamento que você mesmo fez!
Anúbis rosnou, estava em minoria e sabia que não podia garantir a segurança da alma enquanto lutava contra os dois, mas também não podia desistir de um julgamento justo. Recusava-se a acreditar no resultado da balança e sabia que havia algum ardil por trás disso. — Demônio, você faz alguma ideia do que está fazendo? Qual é o propósito de todo esse teatro?
Em um piscar de olhos, Satanás foi consumido em chamas e se transformou em uma gigantesca cobra vermelha. Cobrindo as estradas, paredes, tetos e todo o ambiente ao redor, isolando cada vez mais Anúbis e a alma.
— Não há teatro algum. Você quem está indo contra suas regras.
A cobra dá um bote, o cão agarra a alma e pula, ganhando distância, contudo se adentrando no alcance da mandíbula da crocodilo, a qual pode desviar por pura sorte, mas ao se desviar, a serpente estava novamente ali, tentando abocanha-lo novamente.
Quando tudo parece perdido, um raio de luz intercede com uma voz vinda diretamente dos céus trazendo novamente as cores. Ao ver a luz, Satanás perde o sorriso, rapidamente se transforma em um morcego e voa a toda velocidade em busca de proteção atrás de um rochedo.
Vinhas se erguem do chão até os céus, abrindo as nuvens e fazendo surgir a imagem do deus dos mortos: Osíris. Que veio iluminado pela luz do próprio Rá: — Qual o problema, Satã, está com medo da luz?
O Diabo recobrou a compostura ao identificar a origem da luz. Assumiu novamente a sua forma de homem. Seu sorriso alastrou-se pelo seu rosto, seus chifres alongaram-se e o veneno voltou a pingar de sua língua: — Que conveniente, outro deus egípcio aparecendo para apoiar o cachorrinho.
— Osíris — grita Ammit — oh meu senhor, veja que Anúbis está descumprindo com sua ordem, ele se recusa e entregar a alma do pecador para mim! Por favor, deixe-me devorar ele também?
O deus egípcio caminhou em direção ao crocodilo e, sem medo, esticou sua mão esverdeada envolta em ataduras para acariciar a gigantesca mandíbula, acalmando-a.
— Ammit, aquele julgamento não foi justo, houve interferência.
— Não é justo... comigo. Tenho fome!
— Outra acusação? E com base em que vocês me acusam? Especulação e pré-julgamentos? Que tipo de justiça é essa? Se vocês tem tanta certeza assim que eu trapaceei, por que não a julgam novamente?
— Isso será feito — Osíris intercedeu — porém usaremos outra balança, uma jamais tocada pela sua língua afiada e dedos corruptos.
Dito isto, vinhas abriram caminho entre os céus e avançaram em direção ao infinito, ao retornaram trouxeram uma grandiosa libra dourada forjada na adoração de Rá e capaz de emanar luz própria. Nesse objeto é que Osíris decidiu julgar a alma daquela criança uma segunda vez.
O coração foi posto em disputa com a pena de Ma’at. O julgamento foi evocado e, como esperado, a alma foi considerada digna.
— Não é justo! — grita e se debate Ammit, chorando em desespero.
Anúbis abre um leve sorriso, um alívio após tanta agitação, faz um aceno de cabeça para Osíris, o qual lhe corresponde em gesto e, em seguida, questiona: — Satanás, a alma era digna e apesar de você interferir no julgamento, ela ainda seguirá para Duat, pois isso é a justiça que ela merece. Há algo que gostaria de dizer?
Apesar da provocação, permaneceu de costas sem esboçar qualquer reação.
— Vamos, não seja um mal perdedor — disse Anúbis.
— Perdedor? Eu? — debocha, gargalha e só então se vira com um enorme sorriso: — Será que só eu acho estranho que os dois julgamentos apresentaram resultados diferentes?
O veneno estava no ar e ninguém ousou a abrir a boca.
Houve o silêncio.
Nem mesmo Osíris encontrou um antídoto rápido para aquilo.
O demônio sorridente também ficou calado, não por medo, mas sim para poder saborear os deuses se retorcendo.
O chacal ficou com o grito entalado na garganta.
— Seu maldito — rosnou — você trapaceou ...
Antes que pudesse concluir seu pensamento, Anúbis foi interrompido por Satã: — Muito cuidado com suas próximas palavras, ó grandioso deus egípcio que julga os mortos, pois as próximas podem revelar uma grande falha no seu sistema infalível de julgamento.
O cão morde os dentes, range firmemente e imagina mais de um milhão de formas diferentes de matar aquele ser avermelhando, cada uma mais violenta e criativa do que a outra.
Por outro lado, o Diabo caminhava tranquilamente fazendo graça e acariciando os ombros tensos do chacal, até ser surpreendido por um ataque, sem resultado, contra sua cabeça.
Osíris encara firmemente o Diabo enquanto busca palavras para eliminar o veneno. Sem conseguir, foi obrigado a continuar aturando aquela risada silenciosa.
— O demo tá certo! — Uma voz ecoava nas sombras com uma risada diabólica. Dela um homem alto de pele azulada, trajado em ouro e penas, com o crânio à mostra surge: — Micli, viu essa treta toda ai, e Micli decidiu que também é o dono dessa alma. Dê logo para o grande Mictlantecuhtli!
— O que um deus asteca faz aqui? — indagou Osíris.
— Vocês complicam de mais a morte. Se acham os grandões e tal, mas acabam amarrados na própria língua. A morte é a morte, simples assim. Passem já essa alma ai para Micli levar pro sossego.
— Eu convidei ele — respondeu o Príncipe do Inferno — sabe, vocês estão em três e eu sozinho, então eu decidi equilibrar esse debate com mais deuses.
— Deuses...?
Pouco a pouco os demais deuses da morte começaram a surgir naquele lugar, cercando-os e observando aquela cena. Curiosos com a situação.
— O que fazem tão longe de casa. — disse Osíris, pasmo.
A gargalhada histérica de Mictlantecuhtli ecoava como um deboche, agredindo os ouvidos e perturbando a frágil trégua entre os deuses. — Oh-ou! Parece que alguém não gosta de visitas.
— Não está claro? — deliberou Satã — vieram em busca de sabedoria e para conhecer um pouco da sua “justiça”.
— Não há necessidade desta interferência, já encerramos. A alma partirá para Duat, pois esse é o julgamento — disse o deus dos mortos egípcio, acenando com um sorriso para o chacal.
— A real é que o cachorrinho não manja dos paranauê. Ele julgou a pobrezinha como culpada e agora quer voltar no julgamento. Mictli, sabe que não é assim que as regras funciona.
Era claramente uma provocação, mas ele estava certo, pegando os deuses egípcios desprevenidos, até mesmo Satanás, que deixou escapar um grito sutil de satisfação.
— Julguem uma terceira vez, dessa vez com a primeira balança — a língua afiada do Diabo se pronunciou.
— Espera aí, Satã — intercedeu Mictlantecuhtli com um sorriso maléfico — já não houve dois julgamentos? Como saberemos que o cachorro não está biruta da cabeça e vai julgar errado de novo?
Mictlantecuhtli flutuava no ar despretensiosamente, hora deitado com suas mãos atrás da cabeça, hora cruzava as pernas e ficava de cabeça para baixo.
— Isso apenas nosso querido Anúbis poderá responder — respondeu com postura vencedora, quase como se tivesse ensaiado essa jogada com o deus asteca.
Com a fala de Satanás, todos olharam diretamente para o deus egípcio, que passou a esclarecer: — Não há nada de errado com nosso julgamento, o coração guarda todas as verdades, das ações e das intenções, ele é o maior testemunho de cada atitude e pensamento, é ele quem dirá se uma pessoa é digna de Duat ou merece ser eliminada.
— Pera ai que o velho Mictli não tá funcionando muito bem agora. Se o julgamento nunca erra, então por qual motivo a alma não virou purê pro crocodilo ainda?
O chacal ficou sem fala e foi auxiliado por Osíris: — Entendo a sua dúvida, mas eu confio plenamente no julgamento do coração e na decisão de Anúbis. Por milênios este método de julgamento se mostrou correto e foi capaz até mesmo de perceber a intromissão de Satã, lutando por um julgamento justo.
A plateia em volta não parecia muito satisfeita com a resposta dos deuses egípcios. Eles murmuravam, questionavam silenciosamente e analisavam cada detalhe daquele debate. Contudo, a dúvida continuava no ar e por isso Osíris e Anúbis foram novamente atormentados pelo silêncio. As palavras pareciam fugir dos deuses egípcios, que apenas puderam se entreolhar sem pronunciar qualquer uma.
Buscavam e buscavam entre as palavras aquelas capazes de conter a dúvida crescente dos demais deuses, porém não encontraram.
Foi o Diabo que decidiu afastar o silêncio: — Que tal deixarmos que um outro deus julgue essa alma?
A fala foi o estopim que faltava para os demais deuses se aproximarem e reivindicarem a alma por suas próprias razões, aproveitando-se da fragilidade do julgamento egípcio provocado pelo Pai da Mentira.
— Senhores, estamos perdendo o foco — intercedeu Osíris. — De nada adianta essa discussão quando o que está em jogo é muito mais valioso do que o nosso ego, essa alma merece um destino adequado e que apenas em Duat ela conseguirá isso.
— E quem é você para determinar isso? — manifestou o Diabo.
— Basta, Satã! Foi você é que nos trouxe a essa atual situação. Para de expor e causar ainda mais dor nessa pobre alma. Seu veneno é quem causou todos os desvio que presenciamos hoje!
— E quantas mais eu poderia ter influenciado? — destilou — Eu posso estar em qualquer lugar, que garantias você tem de que eu não atrapalhei qualquer outro dos seus julgamentos? Se todas as almas fossem julgadas novamente, quantas teriam um resultado diferente?
— Nenhuma — Anúbis interrompe — Nenhuma alma teria o seu julgamento alterado mesmo que fosse julgado uma segunda vez.
— Então eu mereço devorar ela, pois esse foi o SEU julgamento!
— Ammit, o primeiro julgamento foi influenciado, não podemos condenar uma alma pura por um capricho de Satanás!
— O crocodilo está certo!
— Basta, demônio! Afinal, o que você sabe de justiça?
— Diga-me você, Osíris, o que torna o seu sistema de julgamento mais justo do que dos demais deuses?
— Eu não disse isso — desarmou rapidamente. — Jamais saiu das minhas palavras que sou mais justo que os demais deuses.
Uma gargalhada repetida foi lançada no ar, Mictlantecuhtli rodopiava no ar em regozijo vendo o caos e decidiu apimentar: — Pode até não ter saído da tua boca, mas Mictli sabe que é tá nos teus miolos, já que tá deixando a crocodilo passar fome. Tadinha dela.
— De fato, não é justo que você decida o destino de uma alma sozinho, Anúbis — concordou o príncipe do inferno.
Quanto mais a discussão se alongava, mais os demais deuses tinham certeza de que deveriam intervir para acabar com aquela cena, tomando a alma para seus próprios propósitos. Eles resmungavam, sussurravam e vociferavam palavras de apoio ao Príncipe do Inferno.
O Demônio regozijava a cada dúvida, cada pergunta, cada suspiro.
Os deuses egípcios, por outro lado, entreolhavam-se buscando algo para apaziguar os ânimos dos demais deuses.
— Precisamos mudar as coisas e eu tenho algumas ideias sobre como podemos fazer isso — disse o Diabo, esfregando suas mãos enquanto exibia uma meia lua em seu sorriso.
Um grande baque, seguido de uma nuvem de fumaça interrompe a conversa, anunciando a chegada de um novo deus.
Pouco a pouco a poeira baixava, deixando longas penas negras flutuando. No centro do baque, um homem alto de cabelos prateados vestindo uma armadura negra.
Imediatamente, todos os deuses recuaram e silenciaram, exceto Anúbis, que permaneceu ao lado da alma perdida.
— Por que há tanto alvoroço?
O terror estava implantado e todos permaneciam em silencio.
O silêncio agia como faca na garganta de todos os milhares de deuses, que sequer conseguiam engolir a própria saliva. Todos aguardavam o próximo passo e fugiam a todo custo da vista do intruso.
O cavaleiro esticava suas longas asas e olhava, com ar de superioridade, em volta, buscando alguém que pudesse explicar o ocorrido, mas não precisou, pois Anúbis se voluntariou: — Estamos decidindo o destino desta alma e como poderemos fazer justiça.
O cavaleiro riu sarcasticamente: — Decidindo? Destino? Justiça? Vocês acham que têm o poder de decidir algo? Vejo apenas servos, nada mais.
— Tolos, não há justiça, apenas a morte.
— Você está errado, Thanatos, cada alma deve ser julgada com base em suas ações e intenções, e somente aquelas má intencionados merecem o esquecimento — disse Osíris.
— Não é sobre merecimento, é sobre justiça — rosnou Anúbis — Cada alma deve ser julgada pelos seus atos, e não simplesmente engolido pela força do seu julgador.
Thanatos riu sarcasticamente: — Ingênuos. A morte chega a todos. De que adianta a sua “justiça” se o final é igual para todos. Assim como a vida, os seus ritos não passam de uma piada, uma doença temporária. É a minha força e vontade que determinam, no final, o destino.
Os deuses olhavam uns para os outros, incertos sobre até onde a paciência daquela entidade iria na conversa e cogitavam, silenciosamente, em abandona-la e retirar-se dali antes que fosse tarde.
— Mostre-nos — o grito de Satã surgiu na conversa — mostre-nos essa sua força. Por qual motivo você ainda está falando? Mate todos os deuses e prove que a força é realmente o que importa.
O anjo negro olhou com desdém para o anjo caído: — Eu não preciso matar outros deuses para provar meu ponto. Eu sou a morte, não um mero assassino.
— Palavras bonitas, mas se na prática a força é o que realmente importa, se Thanatos está certo, então por que não seguimos o caminho do mais forte? Matamos ele e superaremos a morte!
Houve silêncio.
Houve movimentação.
A fúria dos deuses era sentida como o som de um vespeiro, porém o cavaleiro achou graça. Ele sorriu e então movimentou seus lábios: — Vocês esquecem que estão longe de casa.
Aquelas palavras foram suficiente para apaziguar toda a fúria.
Antes que houvesse tempo de uma segunda palavra, antes mesmo de um piscar de olhos, um raio negro partiu da ponta dos dedos do cavaleiro e viajou atingindo diversos deuses que estavam observando ao longe, ferindo-os ao ponto de fugirem daquele lugar.
Os demais deuses também se entreolharam, cogitaram a ideia que parecia ser bastante tentadora, mas sabiam que confrontar a morte personificada seria uma batalha desesperada e provavelmente fracassada.
A personificação da morte olhou cada um dos deuses em seus olhos, fazendo com que todos desistissem da ideia proposta por Satã: — Ainda aqui? Desapareçam!
Com as palavras, uma nova leva de deuses deixou o lugar, deixando apenas Satã, Anúbis, Osíris, Ammit e Mictlantecuhtli.
— Não podemos responder a violência com violência — manifestou-se Anúbis, atraindo o espanto de todos os deuses ali presentes, inclusive Thanatos.
— O que nos aproxima dos humanos não é a adoração, mas sim a morte. Até mesmo nós, deuses, iremos um dia morrer... gostaria de acreditar que cumpri com o meu propósito e fiz o melhor que pude guiando os mortos para o seu destino final. O simples fato de saber que guiei cada alma para o seu propósito já me faz sentir um pouco mais... humano?
Os deuses ficaram silencio.
A morte era uma verdade, até mesmo para eles, e o responsável estava bem diante deles discutindo sobre o destino final.
— Eu prefiro ser julgada por Anúbis! — disse uma voz suave. Era a alma que estava sendo disputada.
Thanatos rosnou de raiva: — Tolo, você não entende? Nem Duat, nem qualquer outro paraíso ou deuses poderão lhe prometer a eternidade. Não importa o julgamento que façam, no fim serei eu quem aparecerei. O resultado será sempre o mesmo, a desintegração e o esquecimento.
A alma, pasma e trêmula, gaguejava e tremia diante do olhar infinito do anjo da morte.
— O que eu lhe ofereço é a verdade, não uma ilusão. Deixarás toda a dor e sofrimento de lado e jamais terás que se preocupar com qualquer outra coisa. Sua consciência irá desaparecer em um estalar de dedos, desintegrando em poeira espacial na velocidade de milhares de anos em segundos. Não haverá dor, angústia ou sentimentos, e tudo que faz de você, você, desaparecerá imediatamente, nem mesmo as memórias sobre você existiram.
O anjo abriu suas longas asas sobre a criança. A sombra da morte crescia e envolvia a alma em uma escuridão tão intensa que engolia o ar, a voz e as cores em volta.
Entre a morte e a alma somente Anúbis teve coragem de se colocar. Empunhando o seu cajado e preparado para aceitar a própria morte.
— Pense, criança, o que lhe ofereço é o inevitável.
As sombras se misturavam com as penas negras e absorviam toda a luz envolta, criando um eclipse no mundo dos mortos que engolia qualquer feixe iluminado. Em meio a escuridão, o vazio. A total inexistência. Um lugar em que nem mesmo as palavras da alma podiam se propagar.
Sem poder falar, a alma não poderia desafiar a morte.
Porém em meio ao vazio completo, um pequeno brilho reluzente desafiou o silêncio. Os hieróglifos da capa do chacal emitiram luz, bastante enfraquecida, mas o suficiente para renovar a coragem da alma que, trêmula, repetiu: — Quero que Anúbis me julgue!
O vazio trincou, rachou e se estilhaçou, desfazendo-se em penas negras que rodopiavam e se desintegravam no ar, encerrando o eclipse e devolvendo a luz para o ambiente.
A voz da morte sussurrou: — que assim seja.
A insistência da criança teve efeito até mesmo em Thanatos.
Anúbis olhou para Thanatos por segundos, o qual mantinha sua expressão calma e inerte e disse: — um ano; um milênio; uma eternidade... não faz diferença, aproveite a sua ilusão, em breve nos reencontraremos.
Um aceno do anjo negro autorizou o chacal a continuar com o ritual, o qual estende a mão envolta do coração da criança, sentindo todo o medo, felicidade, sonhos e ansiedade daquela vida. Ele revê a vida inteira daquela alma em uma fração de segundos e, por fim, dá início ao julgamento: — Esse coração é digno de Duat?
A tensão no ambiente fez com que os segundos que levaram para a balança reagir tornassem horas, e veio a resposta, a balança manteve-se equilibrada e houve o reconhecimento da dignidade da alma, permitindo a sua entrada em Duat.
Ammit gritou em protesto, mas foi acalmada por Osíris, que partiu satisfeito daquele julgamento.
Mictlantecuhtli riu e gargalhou, flutuando e rodopiando, desintegrando-se nas sombras que veio até sumir por completo.
Anúbis, satisfeito com o resultado, voltou a peregrinar em meio ao deserto dos mortos aguardando a próxima alma perdida.
O anjo da morte e o anjo caído se entreolharam, mas nenhuma palavra foi proferida, não precisavam. Então o morte partiu.
Com isso, o Diabo caminhou até a berloque deixado pela alma e retirou seu encantando, tornando-a novamente em um simples boneco de pano. Por fim, sorriu contente por ter descaminhado outra alma, enviando-a para um deus pagão, e partiu em busca de uma nova vítima.