Grimório dos Contos Brasileira

Autor(a): Novel Brasil


Season 1

Segundo Conto: O Caminho

Por: Tomas Rohga


Ao Lado de uma Arma, o Caminho até a Montanha

 

Com um sorriso largo no rosto, Tartoleto, um duende louro e de roupas espalhafatosas, deixou a toca do chefe da aldeia.

— Qual é a dessa expressão idiota, Torto? — perguntou outro duende, ainda mais atarracado. Ele se escorava na grade que circundava a toca, fazendo companhia a um amigo feioso.

— O Velho Sábio tava na casa do chefe. Ele leu o meu futuro. — Tartoleto tentou se zangar com o escárnio, mas seus olhos redondos cintilavam muito acima da desfeita, perdidos pelo céu matutino. — Ele disse que eu encontrarei a coisa mais brilhante de todas, e assim vou mudar a história do mundo.

— Que história? Você só causa destruição — zombou o feioso, franzindo seu nariz de linguiça enrugada. — Aliás, o que pode ser mais brilhante que o sol? Vai trazer ele aqui pra gente?

Inconformado com o descrédito, Tartoleto apertou os punhos. Seus olhos faiscaram ao liberar uma corrente de eletricidade que rodopiou pelo pequeno corpo em forma de estática.

— Vocês vão ver, imbecis… Vocês e todo mundo da vila que ficam zombando de mim! Vou fazer todos engolirem as próprias palavras.

— É claro que vai, Torto-e-lento. Cuidado com essa estática toda aí… Vai explodir outro robô sementeiro.

— A-aquilo foi um acidente!

A dupla de duendes ao lado da cerca irrompeu a gargalhar. — É claro que foi.

A chacota se tornou insuportável para ele. Tartoleto fechou a cara e saiu dali pisando forte, desviando-se de uma dúzia de robôs irrigadores, que mantinham o ambiente da vila — um pequeno conjunto de casas construídas numa clareira de floresta — permanentemente florido.

Alguns minutos mais tarde, o duende encontrou o que procurava afinal: seu patinete voador era protegido por um pequeno androide faxineiro embaixo de um pinheiro grosso. Ele afastou o robô com um gesto de mão e deu partida no veículo, que se ergueu a alguns centímetros do chão, flutuando com um zumbido baixo.

Tartoleto acelerou duas vezes sem sair do lugar e, enfim, partiu da aldeia, sua mente focada em encontrar a coisa mais brilhante que existia; o que provaria, de uma vez por todas, que estavam errados sobre ele. Finalmente seria um duende respeitado por todos!

Perdido em pensamentos, ele flutuou em alta velocidade até penetrar numa trilha de pedrinhas, rodeado por uma densa floresta de carvalhos.

— Ouro brilhante… O duende vai caçar. Ao fim do arco-íris… O duende vai achar… — Ele girava os olhos de um lado a outro pelo caminho, cantarolando e batendo o pé sobre o apoio. — Ali!

Um ponto faiscante entrou em seu campo de visão. Tartoleto arremeteu com o guidão e voou depressa até o local, estacionando ao lado da cintilação. Ele pulou do patinete e, com seus bracinhos, começou a puxar o objeto.

— Vamos! Vamos!

Bip! Bzzzzzzt!

Uma vibração estranha repercutiu pelo solo, até o duende finalmente arrancar a coisa luminosa do chão, caindo de bunda no momento em que um androide caolho se materializou de dentro da terra, imediatamente mirando o rifle que segurava.

— Pela meia furada do leprechaun! — O duende protegeu o rosto. — Largue essa coisa!

O robô obedeceu à ordem sem pestanejar. A arma caiu com um baque seco no chão, disparando um tiro de luz que atingiu a árvore mais próxima.

— Aiaiai! — berrou Tartoleto, encolhendo-se ainda mais. — De que toca apareceu essa bucha?

O androide balbuciou numa voz metálica: — Avaria… bzzzzt… ocular.

O-ho! Você fala! — Num pulinho, a pequena criatura deu uma volta pelo robô, analisando-o de cima a baixo. Passou o indicador pelo metal oxidado da perna, arrancando uma boa camada de sujeira. — E deve ser da época que os homens andavam sobre a Terra. Uma velharia histórica!

— Estoico — repetiu o ciborgue caolho.

O duende ergueu uma sobrancelha, encarando da esfera brilhante em sua mão para a órbita faltante na face do robô. Sorriu com animação. — Vamos. Quero que me siga até a minha oficina. Posso consertar o seu olho.

— Óleo.

Tch! O Modulador Idiótico deve estar com avarias também. Humanos criavam péssimos moduladores, péssimos! — O ser diminuto suspirou endireitou seu patinete flutuante. — Quer saber? Vou te consertar por inteiro, depois passar uma camada nova de cromo nessa ferrugem. A sua descoberta vai me alçar à fama entre os duendes! Não existem mais androides da sua época em funcionamento.

Bzzzzt…

O duende colocou o patinete em movimento, acelerando aos poucos para se certificar de que o robô obedeceria à sua ordem de segui-lo. Quando o androide começou a andar, criando grandes pegadas pela trilha, o duende gritou contra o vento:

— Aliás, qual é seu nome de unidade? Eu me chamo Tartoleto.

Correndo, o robô apontou para o duende. — Tolete.

— Nada disso, sua bucha! Tô cansado desses apelidos idiotas. É Torto, é Tolete, é Lento! Do que mais falta me chamarem, hã?

Bzzzz… Leto.

O duende ergueu uma sobrancelha: — Um pouco forçado na intimidade, mas vou deixar essa passar. Até que Leto soa interessante… Agora, coloque esses circuitos pra funcionarrem e me diga o seu nome de unidade, entendeu?

— Unidade M-0. Bip. Série G-0.

— Certo. É mais fácil só te chamar de Mogo.

— Eu, Mogo.

— Sim — reforçou Tartoleto, sorrindo. — Você, Mogobobo.

— Tolete. — A máquina apontou para o duende.

— Olha que eu jogo teu olho fora, sua bucha velha!

Mogo e Tartoleto seguiram por um caminho esverdeado, deixando as árvores para trás ao surgirem num grande descampado repleto de flores, abelhas e pequenas rochas. O cheiro do aconchego se mesclava ao da umidade que vinha de um riacho próximo — uma plenitude natural.

O sol brilhava mornamente sobre a dupla inusitada, e os pássaros piavam alegres, observando máquina e entidade atravessarem a planície bucólica, um deles flutuando em silêncio; o outro, correndo cheio de ruídos, mas ambos como testemunhas do mesmo milagre.

Tartoleto fez uma curva, desviando-se do percurso de uma nave irrigadora controlada por um elfo que molhava uma plantação de cenouras, tornando visível a silhueta de uma montanha se elevar no horizonte.

— Montanha. — Mogo zumbiu de repente, apontando. — Humanos.

— Quê? — O duende arqueou uma sobrancelha, voltando-se para a máquina. — Não existem mais humanos, em lugar nenhum. Eles morreram nas Guerras.

— Lá. Bzzz. Montanha.

— Já disse que não. Humanos foram vítimas da própria burrice, é por isso que eles construíam máquinas de matar como você.

— Não morte — rebateu Mogo. — Também proteção.

— Que seja, mas você ainda é uma arma, um símbolo de um tempo em que a violência era a resposta pra tudo. Isso deixou de existir há três séculos.

— Três… sacolas?

Dessa vez, Tartoleto não conseguiu conter a curva de bom humor que lhe surgiu no rosto. Distinguiu a aldeia arborizada se avultar no horizonte, circundado por dúzias de naves cargueiras, considerando o caminho agradavelmente tranquilo apesar do robô ao seu lado. Tranquilo até demais…

— Que silêncio é esse? — questionou de repente, olhando para o lado.

Percebeu, então, que Mogo havia parado de segui-lo, freando o patinete tão bruscamente que quase caiu de cima dele. O duende procurou ao redor até distinguir um ponto à distância. O androide seguia no rumo contrário à cidade, correndo solitariamente na direção da montanha.

— Que buchinha teimosa — reclamou Tartoleto, retornando pelo caminho.

A criatura o alcançou em pouco tempo, emparelhando-se com a máquina. Por quase um minuto inteiro, permaneceu sem dizer nada, acompanhando aquele conjunto de engrenagens se mover numa persistência inspiradora.

Considerando curioso o fato de Mogo desobedecer à própria programação, o pequeno duende suspirou.

— Eu menti… — confessou, os olhos fixos no horizonte. — Na verdade, existe algo naquela montanha.

— Humanos. Bzzzt…

— Não! Já falei que eles não existem mais.

— Leto enganado.

— Eu não tô nada enganado — fungou o duende. — É a residência de um dragão manco. Bem… ele não é mais manco. Uns cem anos atrás, os anciões construíram uma prótese biônica para ele em troca de proteger a aldeia, então respeitamos sua privacidade.

— Privada.

— Que bom que entendeu — disse Tartoleto, desviando o patinete de uma rocha. — Não queremos virar churrasquinho de lagartixa.

Enquanto percorria a campina, a dupla apanhou um chuvisqueiro ao passar embaixo de um pássaro do trovão voando muito alto no céu; seu corpo se mesclando à névoa elétrica que o perseguia. Ele batia as asas colossais, vagaroso, piando um canto de melancolia.

— Brilhante… — sussurrou Tartoleto, contemplando a visão assombrosa, mas não tão brilhante quanto achava que fosse. O Velho Sábio devia ter visto outra coisa em seu futuro.

O sol retornou à sua luz aconchegante assim que o pássaro se afastou, mostrando que estavam cada vez mais próximos do sopé da montanha.

Quando a grama verde, enfim, se transformou em terreno pedregoso, o duende os conduziu por mais um quilômetro até uma entrada de caverna, advertindo em voz baixa:

— Mogo, vamos em silêncio daqui para frente. Se tivermos sorte, o bicho pode estar dormindo. Eles adoram dormir.

Tartoleto continuou liderando a fila, controlando o percurso com a mãozinha para cima na direção de Mogo, segurando uma possível corrida do robô.

Ainda assim, os passos do androide ecoavam pesados, repercutindo sob o espaço ermo e vazio. A dupla prosseguiu por mais cinco minutos até encontrarem o terror numa depressão da caverna.

Logo abaixo, cochilando ao redor de uma porção de velhas bugigangas como carros e motocicletas com rodas, móveis de cristais e estátuas de cobre recobertos de joias, encontrava-se um dragão de escamas escuras e asas enormes fechadas sobre as costas. Sua cabeça chanfrada se apoiava em cima dos braços; o esquerdo, uma peça mecânica com grossas fiações emborrachadas. O hálito de enxofre escapava pelas narinas da criatura.

— Quanto… brilho — soluçou Tartoleto, emocionado. Seus olhos se encheram de lágrimas diante da vista intimidante, mas maravilhosa.

— Lagarto na frente. — Apontou o robô. — Portal atrás.

O duende ergueu uma das sobrancelhas, demorando-se um pouco mais sobre os detalhes do perímetro. Foi quando avistou um vão fechado, semelhante a uma porta arredondada de caixa-forte, escondido próximo à cauda do dragão.

— Fascinante, Mogo… — Tartoleto estreitou as pálpebras. — Um olhar mais distraído jamais encontraria aquilo. A partir daqui, a gente precisa seguir bem mais cuidadoso, podemos tentar abri-la sem acordar a lagartixa.

Com a pequena criatura ainda liderando o caminho, eles se moveram em ponta de pé na direção do cofre. Contudo, numa pisada um pouco mais forte do robô, uma pedra solta rolou pelo solo, detendo-se somente ao encontrar uma das patas do monstro.

Os olhos amarelos do réptil se abriram de imediato, transformando o círculo escuro da íris numa fenda mortificante de raiva.

Rwooooooorrr!

O bramido ensurdecedor encheu a caverna, fazendo rolar mais dúzias de rochas soltas. O dragão rolou em torno de si mesmo, derrubando carros e motos enquanto caçava por aqueles que o haviam despertado.

Os olhos de fenda finalmente encontraram as figuras de Mogo e Tartoleto, que corriam na tentativa de voltarem à parte elevada da depressão.

Sem pestanejar, a criatura abriu a bocarra cheia de dentes e atirou a primeira bola de fogo contra os invasores. As chamas também brilhavam, mas não o bastante para o duende.

— Ativar… bzzzt… arma secundária. — Habilmente, o robô se desviou do ataque, pegando o duende pelo cangote e o atirando para a parte superior da caverna.

— Mogo! — gritou Tartoleto.

— Tolete seguro. — Uma lâmina de plasma brotou de seu braço direito.

— Droga! — O duende fez um gesto trêmulo com as mãos, invocando uma espécie de seta formada por pura eletricidade. — Você não vai lutar sozinho!

O feixe de energia cortou o ar em linha reta, maior que o corpo de seu invocador, atingindo em cheias nas escamas endurecidas do dragão para apenas se dissipar em traços inofensivos de estática.

— Mogo também proteção! — Com a decisão faiscando em seu único circuito ocular, o robô avançou para cima do oponente.

Incapaz de permanecer alheio ao ato de bravura solitária, o duende resolveu ajudar outra vez, preparando mais uma seta de magia elétrica. Decidiu que, se não podia feri-lo, pelo menos causaria uma distração para que Mogo pudesse ter alguma chance.

A estratégia pareceu surtir efeito quando o robô, num golpe espantosamente ágil para um androide de trezentos anos, acertou um ataque preciso com a sua lâmina de plasma, cortando algumas escamas na exata seção em que o braço biônico se ligava ao corpo do réptil.

Irritado, o dragão enrolou a cauda em torno de um Santana velho e o atirou com força contra o robô, cuspindo uma coluna volumosa de chamas por cima.

— Mogo! — rugiu o duende.

O androide se chocou violentamente contra a parede da câmara, esmagado pelo carro e encoberto pelo fogo. Segundos inquietantes se passaram até que as labaredas parassem, fazendo Mogo rolar de modo débil pelo solo diante de si, todo queimado, faiscando e sem o braço da lâmina.

Esbugalhando os olhos, Tartoleto soube que não teria muito tempo para agir. Ele ergueu os bracinhos e começou a entoar palavras numa língua incompreensível. Subitamente, uma seta elétrica que iluminou toda a depressão surgiu pairando acima dele.

— Engula essa!

A seta colossal acelerou para frente, atirada pelo duende. Ela cortou o ar da caverna e, sem ter para onde escapar, atingiu em cheio no local em que o dragão havia sido ferido por Mogo.

Kazuuuum!

A explosão de estática encheu a caverna, obrigando Tartoleto a esconder as vistas até que fosse possível enxergar novamente. Quando encarou de volta, piscando várias vezes para se certificar de que era mesmo verdade, distinguiu a silhueta do monstro desmaiada no local; a cabeça tombada e a língua para fora.

Entrementes, o duende também encontrou a figura de Mogo. Com o coração batendo depressa, ele escorregou até embaixo e correu sem fazer curvas.

— Você tá bem?! — exasperou-se, tomando o robô pela cabeça.

O silêncio preencheu a caverna.

— Me diga que você tá bem — tornou ele.

Bzzzt… viu? — anunciou o androide, num fiapo metálico de voz. — Não só morte. Também proteção.

— É claro, sua bucha velha — riu ele, emocionado. — Você me protegeu, e eu te protegi de volta.

A energia que escapava dos fios danificados do androide ficava cada vez mais intensa.

— Humanos… bzzzt… também assim. Não morte, apenas. Também proteção. Bip-bop.

— Também proteção, entendi.

— Lá. — Mogo fez um esforço tremendo para indicar a porta com o único braço restante, a voz quase sumindo. — Senha: caminho.

— É claro… Agora só descanse, sim? Eu vou… vou te consertar na oficina.

— Leto… — proferindo aquela última palavra, a luz no único circuito da face de Mogo finalmente se apagou e o pequeno duende soube ali, na mesma hora, que jamais se acenderia outra vez.

Por vários minutos, Tartoleto permaneceu na mesma posição, entorpecido; sentindo uma estranha vontade de chorar enquanto encarava o rosto inexpressivo da unidade M-0, série G-0.

Ele enfim suspirou, bateu o pó o das roupas e se levantou do lugar, andando a passos lentos até o portal da caixa-forte. Ao alcançá-lo, estudou o símbolo que dividia as entradas pelo centro: uma hélice de DNA com o número 23 grafado acima e abaixo das extremidades. Tocou no sinal, que emanou uma cintilação e vários bipes, ligando alguns pontos de luzes pelo portal, seguido de uma voz feminina.

— A senha.

Leto trouxe o olho de Mogo para junto do peito. A escolha estava em suas mãos.

— Caminho…

— Senha correta.

Os portais fizeram um ruído de liberação, cuspindo uma nuvem grossa de vapor enquanto se separavam aos moldes de um abrir metálico de cortinas. O corpo de Tartoleto foi abraçado pelo brilho do outro lado, como se repentinamente iluminado por milhares de estrelas cadentes.

O que pode ser mais brilhante que o sol? Tartoleto se lembrou do descrédito do duende feioso de sua aldeia. Ele finalmente sorriu, respondendo para si mesmo num cochicho:

— É a vida…

Deu um passo para frente.



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