Volume 1
Capítulo 4: 10 de Junho (Quarta)
Quando você pensa nos acontecimentos do dia, como quando vai escrever um diário, raramente você se lembra das cenas a caminho da escola pela manhã. Isso porque as memórias de atividades entediantes e rotineiras são automaticamente deletadas da sua mente.
Por outro lado, quando algo acontece que causa um impacto poderoso ou que vale a pena mencionar, você frequentemente começa sua descrição assim: Aconteceu no meu caminho para a escola…
Bom, hoje foi um desses dias.
Tem duas formas que eu uso para chegar ao Colégio Suisei. Ir a pé ou ir de bicicleta. Não era tão longe a ponto de tornar impossível ir a pé, mas ir de bicicleta era mais rápido e mais fácil.
Nem sempre era o caso, mas se o tempo estivesse ruim, eu ia a pé. Se tinha um tufão ou neve, eu era forçado a ir a pé. Mas eu também ia a pé quando chovia, ou mesmo se a previsão simplesmente indicasse chuva.
Uma vez ignorei a chuva, fui com minha bicicleta e peguei um baita resfriado. Eu nunca cometeria o mesmo erro novamente. Com essa determinação, eu andava para a escola sempre que parecia provável chover, guardando meu guarda-chuva na minha mochila.
Tinha 60% de chance de chuva naquela manhã, e o céu estava cheio de nuvens cinzentas. Eu estava caminhando rapidamente por um caminho que normalmente percorro de bicicleta quando algo chamou minha atenção.
Alguém com cabelo loiro brilhante estava em uma multidão esperando o sinal ficar verde.
Era Ayase. Agora eu conseguia reconhecê-la, mesmo de costas. Ela estava com fones de ouvido, os cabos saindo de dentro do uniforme escolar. Ela provavelmente estava ouvindo música no smartphone em seu bolso.
Ela fazia a mesma coisa nas aulas de Educação Física, e eu comecei a me perguntar se ela tinha um interesse especial nisso. O que pessoas como ela ouviam? Eu era de uma espécie completamente diferente de ser humano, então nem conseguia adivinhar. Não imaginava que teríamos gostos semelhantes, já que tudo o que eu ouvia eram músicas de anime e músicas ocidentais.
Considerei chamá-la por alguns instantes, mas rapidamente desisti. Nós nos demos ao trabalho de sair de casa em horários diferentes para esconder nossa relação de irmãos e manter nossas vidas como eram antes de nossos pais se casarem. Conversar a caminho da escola ou na volta, onde outros alunos podem nos ver, contrariaria essa decisão.
O sinal ficou verde. Ninguém se mexeu. Eu também não.
Ayase foi a única que avançou. Isso foi o que bastou.
“Ayase!”
“Quê?”
O som dos motores dos carros e das buzinas ficou mais alto e mais alto, como se estivesse subindo uma escala musical, destruindo qualquer força que eu tinha de agir como um estranho.
Não tinha tempo para perder. Eu não podia esperar um segundo. Mesmo esse pensamento ocorreu depois que eu já tinha me movido.
“…!”
Eu puxei o braço dela com toda minha força. Ela cambaleou para trás, incapaz de manter o equilíbrio. Com apenas força e coordenação medianas, eu nunca poderia sustentar seu peso em uma posição tão instável.
Ayase e eu caímos de bunda na estrada em frente à faixa de pedestres.
Um carro grande passou um sinal vermelho na nossa frente.
Ela quase morreu. Ela estava a segundos da morte, e isso não era exagero.
“……”
“……”
Nós nos encaramos sem dizer nenhuma palavra.
Conforme os momentos passavam, eu comecei a suar, e minha respiração ficou ofegante. As pessoas ao redor nos observavam com preocupação nos olhos enquanto eu me levantava, pegava a mão de Ayase e a puxava para cima.
“Aqui,” eu disse. “Venha comigo por um momento, Ok?” “Hã…? Ah… ok.”
Perambulando pela multidão e evitando o máximo possível a atenção, levei ela para um beco onde ninguém nos veria.
O que eu estava prestes a fazer iria envergonhar ela, e eu não achava que isso deveria ser feito em público. Verifiquei à esquerda e à direita para garantir que estávamos sozinhos, então me virei para encará-la de frente e falei.
“Você não pode fazer esse tipo de coisa,” eu disse de maneira firme e em voz baixa.
Eu não era seu irmão de sangue, e não estava em posição de dar sermões a ela. Por isso, eu não a advertiria mesmo que as pessoas pensassem que ela era uma delinquente ou espalhassem rumores sobre ela namorar por dinheiro.
Não importa o que eles digam—isso seria ir longe demais. Eu estaria me intrometendo em seus assuntos pessoais, e queria evitar isso a todo custo.
Além disso, duvido que Ayase quisesse que eu me envolvesse tanto na sua vida.
Mas isso era algo que eu não podia ignorar.
“Você poderia ter morrido,” eu disse. “Isso foi muito sério. Eu não posso deixar isso passar sem um aviso.” “…Desculpa.”
Sua voz estava preocupada e rouca enquanto eu a repreendia silenciosamente. Sua atitude retraída me surpreendeu.
“Oh, ah… desculpa,” eu disse. “Eu não quis ser chato. ” “N-não, foi minha culpa.”
“Por que você entrou na rua? Aquele carro era tão barulhento; todo mundo notou e ficou parado mesmo quando o sinal ficou verde.” “Desculpa, eu não estava prestando atenção… Eu estava muito focada no que estava ouvindo.” “Sua música? Você fazia isso nas aulas também. É legal curtir esse tipo de coisa, mas você deveria ser mais cuidadosa na rua.” Mesmo assim eu acabei dando um sermão. Bem, tanto faz. Eu imaginei que estava tudo bem, já que ela quase morreu.
“Ah, hum, não é música… Ah!”
Ayase levou a mão à orelha como se acabasse de perceber algo. Ela não encontrou o que procurava, e começou a olhar ao redor.
Eu também percebi.
Tinha um fone de ouvido em uma das orelhas dela, mas o outro tinha caído e estava pendurado pelo cabo.
Não era música o que eu ouvi do dispositivo no bolso dela. Em vez disso, era a voz calma de uma mulher dizendo algo em inglês.
“Você está estudando inglês?” perguntei.
“…! E daí se eu estou? Não é da sua conta.”
Ayase cobriu o bolso com a mão e me lançou um olhar zangado. Por alguma razão, ela estava corando.
“Eu não acredito... Você está envergonhada?”
“……”
Os ombros dela tremeram por um tempo; então ela voltou a ficar sem expressão.
Saímos do beco e voltamos pra faixa de pedestres. Desta vez, eu olhei cuidadosamente para os dois lados para garantir que não havia carros se aproximando, e então comecei a atravessar a rua. Apesar de Ayase parecer calma, suas orelhas ainda estavam vermelhas.
“Então você quer aprender inglês?” perguntei de novo.
“…Por que você está me seguindo?”
“Estamos indo na mesma direção.”
Era simplesmente inevitável que eu estivesse atrás dela; isso não significava que eu tinha algum motivo oculto.
Mas, na verdade, eu tinha um motivo para segui-la.
Talvez a batida no meu coração após aquela experiência de quase morte estivesse me deixando irracional. De qualquer forma, eu estava tendo dificuldade em conter minha curiosidade sobre ela.
Talvez isso fosse o que chamam de “efeito da ponte suspensa”, onde uma experiência assustadora amplifica a atração de alguém. Seja o que for, eu precisava fazer algo sobre esse sentimento borbulhando dentro do meu peito.
Ayase não parecia particularmente incomodada. Em vez disso, ela murmurou, “Bem, tanto faz. Tanto faz. ” Ela manteve seu ritmo constante e continuou andando.
“É só parte dos meus estudos,” disse ela. “
Hã? Do que você está falando?”
“Você foi quem perguntou sobre as aulas de inglês que eu estava ouvindo.” Ela me olhou com uma cara feia. Eu achei que ela tinha me ignorado antes, mas parecia que agora ela estava com vontade de conversar.
“Para os Vestibulares?” perguntei.
“Isso também. Mas estou pensando um pouco mais no futuro.” “Para o mercado de trabalho, então?”
“Estamos vivendo numa era global, não é mesmo?” Yomiuri teria zombado de mim sobre ser mundano ou algo assim se eu tivesse dito isso. Mas quando Ayase disse, soou perfeitamente natural.
“Nesse caso, não tem motivo para você ficar envergonhada,” eu disse.
“Claro que fiquei envergonhada. Foi como se você me visse, um pato, desesperadamente batendo meus pés debaixo d'água enquanto eu fingia ser um cisne.” “Oh… Você está falando de novo sobre sua defesa?” “Sim.”
Ela já havia dito antes que tingia o cabelo de loiro como uma garota safada para se tornar uma mulher poderosa e independente.
Ela provavelmente estava ouvindo as mesmas lições de áudio durante as aulas de Educação Física. Faltar às aulas não era nada impressionante, mas notas de Educação Física não ajudavam a entrar na faculdade, e os treinos para o Dia do Esporte só serviam para criar memórias agradáveis.
Se Ayase decidiu que tudo isso era uma perda de tempo e usava o período para estudar, isso parecia alinhado com seu desejo de se tornar uma mulher forte e perfeita.
Ayase era como um quebra-cabeça para mim, e quanto mais eu a conhecia, mais eu tinha a sensação de estar colocando todas as peças soltas nos seus devidos lugares.
Nós já havíamos deixado a rua principal, os aglomerados de prédios altos desapareciam ao fundo, e logo avistamos nosso colégio à distância.
As silhuetas dos pedestres antes eram variadas—homens e mulheres, jovens e velhos—mas agora era mais ou menos uniforme. Todos tinham aproximadamente a mesma idade e usavam os mesmos uniformes escolares. Era a hora do rush matinal, e todos nós estávamos indo para a aula.
Embora não tenhamos visto ninguém que conhecêssemos, a aparência de Ayase se destacava em uma escola de elite como a nossa, e as pessoas olhavam para ela.
“Não conte a ninguém, ok? ...Até mais.”
Com isso, Ayase acelerou o passo.
Talvez ela estivesse incomodada com os olhares curiosos de nossos colegas, ou talvez, se ela fosse tão gentil quanto eu queria acreditar, estivesse tentando garantir que não me causaria problemas.
De qualquer forma isso não importava. A partir daqui, agiríamos como prometido e fingiríamos ser estranhos.
“Ok. Entendi,” eu disse a ela enquanto ela virava as costas.
Eu não esperava uma resposta.
Mas isso não era uma coisa ruim.
Eu tive muita emoção nessa manhã, e estava tão cansado como se já fosse o fim do dia. Infelizmente, isso não era uma história; era a realidade. Eu não podia contar com algum autor para convenientemente decidir que já tinha feito o suficiente por enquanto, e pular para o próximo dia.
Meu dia agitado continuou sem uma pausa, e sem considerar nossas emoções, Ayase e eu fomos logo lançados à companhia um do outro novamente.
Isso aconteceu durante a aula de Educação Física.
Era a primeira aula, e estávamos praticando para o Dia do Esporte novamente, na mesma quadra de tênis de antes. Apenas uma coisa estava diferente.
“Toma essa!!”
O grito de Narasaka foi seguido por um comentário calmo do outro lado da quadra.
“Ei, Maaya, você está batendo a bola muito alto.” A pessoa que falou era uma estranha até pouco tempo atrás, mas agora eu a conhecia muito bem. Ela era minha meia-irmã.
Ayase, que estava encostada na cerca ouvindo música—ou melhor, lições de inglês, como descobri—agora estava envolvida em um partida com sua amiga.
Foi porque ela quase morreu naquela manhã? Eu não sabia o que havia causado sua mudança de atitude, mas ela estava correndo de um lado para o outro na quadra, estava jogando muito bem.
“…a…mura.”
Ela tinha prendido o cabelo para trás, que dançava lindamente no ar como a cauda de um cavalo puro-sangue. Seus braços estavam à mostra, assim como suas coxas. Todo o corpo dela estava firme e tonificado enquanto ela pulava pela quadra, balançando sua raquete com movimentos precisos e que cansavam pouco, ela guiava a bola exatamente para onde queria.
“…ei…ma cuid…mura.”
Eu não era fã de tênis nem nada, mas podia dizer que os olhos de muitas pessoas estavam fixos na performance de alto nível da Ayase. Era difícil perceber a diferença entre ela e uma jogadora profissional. Eu também estava olhando, então não era o melhor para julgar. Mas eu achava que ficar observando uma garota no meio da aula em vez de me concentrar no meu próprio jogo era um bom motivo para refletir sobre mim mesmo. Dito isso, eu felizmente refletiria até o fim dos tempos se isso significasse que eu poderia continuar assistindo. Isso mostra o quão bem ela jogava...
“Ei, Asamura!”
“Hã? …Opa!”
Eu ouvi meu melhor amigo gritar comigo no momento em que uma sombra circular surgiu no meu campo de visão. Rapidamente puxei minha raquete ao lado do meu rosto, bem a tempo de uma bola bater levemente na minha testa.
Doeu.
“Preste atenção, pelo amor de Deus. Essa bola não é tão dura quanto uma de beisebol, mas é perigosa se atingir sua cabeça.” Maru veio correndo em minha direção e pegou a bola enquanto ela quicava no chão. Ele parecia irritado enquanto batia a raquete contra seu ombro robusto. O gesto parecia inexplicavelmente legal. Realmente me irritava como alguém atlético podia fazer movimentos simples parecerem tão bons.
Se você estava se perguntando o que Maru, que jogaria softball no Dia do Esporte, estava fazendo na quadra de tênis, era porquê estávamos nos revezando no uso da quadra de prática, e metade do tempo, cada grupo tinha que jogar o esporte do outro grupo.
Este era um problema que só os que precisam de quadras tinham, mas era precisamente por causa disso que caras como Maru, que jogavam no time da escola, podiam participar. Se não pudessem, perderiam os treinos enquanto outros estudantes ocupavam o espaço.
“Desculpe,” eu disse. “Eu estava só e você sabe.” “Você estava babando por uma garota, não estava?” “Alguém já te disse que você é muito perceptivo?” “Provavelmente. Mas é assim que eu sou é não dou a mínima para quem não aguenta.” Esse era nosso receptor do time. Ele sempre fala o que quer.
Ele lançou um olhar para as meninas, que batiam na bola alegremente.
“Você estava observando a Ayase? Eu achei que tinha te dito que ela não presta...” “Não, você entendeu errado.”
Ele estava certo de que eu estava observando a Ayase, mas não era como ele pensava. Podemos ser apenas meio-irmãos, mas ela ainda era minha irmã. Eu não tinha uma queda por ela nem nada. Mas Maru interpretou mal o que eu quis dizer.
“Então Maaya? Bem, ela é legal.”
“Estou tentando te dizer que não é isso.”
“Não se preocupe, meu amigo. Maaya é legal. Ela é um bom partido. Ela é brilhante, animada e se dá bem com todos. Tem boas notas e conseguiu uma classificação A no exame prático para a Universidade de Waseda. As pessoas falam coisas boas sobre ela.” “Você não sabe um pouco demais sobre ela?”
“Falam muito sobre ela. Ela se destaca, mas por motivos opostos aos da Ayase. A única desvantagem é que muitos caras estão atrás dela, e a competição é feroz.” Era só minha imaginação ou Maru parecia falar mais rápido quando falava sobre Narasaka? Olhando para os olhos serenos atrás de seus óculos, eu não conseguia dizer o que ele estava pensando. Eu me perguntei se ele tinha uma queda por ela, mas decidi deixar esse pensamento de lado. Eu não conseguia imaginar meu melhor amigo ficando apaixonado por uma garota.
“Eu não vejo Narasaka dessa forma,” eu disse. “Mas se visse, é duvidoso que eu pudesse vencer a concorrência.” “Ha-ha-ha. Acho que você tá certo.”
“Como meu amigo você deveria discordar.”
“Narasaka é do tipo carinhosa. Veja como ela fez uma excluída como Ayase jogar tênis com ela?” “Eu tenho a sensação de que ela gostaria de um cara consistente e sério.” “Na verdade é o contrário. Pessoas como ela tendem a ser atraídas por perdedores que precisam de ajuda.” “Então talvez eu tenha uma chance.”
“…Você está falando sério?”
Maru olhou para mim como se eu fosse louco. Eu só disse o que veio à mente, e não entendia por que ele estava fazendo aquela cara.
“Escute, Asamura. Você não é o perdedor que você acha que é.” “Está tentando dizer que sou ainda pior do que acho?” “Ow, diminua a negatividade, ok?”
Eu lhe dei um sorriso torto—eu só estava brincando. Ele suspirou profundamente e começou a me repreender como uma esposa repreendendo seu marido.
“Você é inteligente. Está no topo da nossa turma.” “Hum. É estranho quando você me elogia assim.”
“Calma. Agora, estou explicando porque Narasaka não gostaria de você, então está mais para um insulto.” “De qualquer forma, poderia ser um pouco menos direto?” Eu sabia que o jeito de Maru era ser franco, mas eu preferiria um pouco mais de discrição. Não que eu me importasse se tinha ou não uma chance de ser o namorado de Narasaka, é claro.
“…………………………………Hmm?” Enquanto continuávamos a cochichar lançavamos olhares para as meninas, percebi que Ayase se virou na nossa direção. Ela deve ter percebido que estávamos olhando pra ela. Nossos olhos se encontraram por um momento, e ela rapidamente desviou o olhar. Muito esperto. Os outros alunos poderiam ficar suspeitos se nos encarássemos por muito tempo. Ela fez a escolha certa.
Mesmo assim, até mesmo um instante foi suficiente para algumas pessoas perceberem.
Maaya Narasaka era uma dessas pessoas.
Eu podia entender o por quê as pessoas diziam que ela era carinhosa. Parte disso provavelmente vinha de sua percepção aguçada. Ayase e eu tínhamos trocado olhares por apenas uma fração de segundo, e ela deve ter visto isso apenas de relance, mas notou uma mudança em Ayase e me lançou um olhar interrogativo. Então, inclinou a cabeça ligeiramente. Ela parecia um esquilo ou um cão da pradaria*—era fofo. Eu entendi por que meus colegas gostavam dela.
*Cão de pradaria é um roedor que parece um esquilo.
Pensando bem, eu provavelmente deveria parar de olhar. Ayase havia se esforçado para que as pessoas não percebessem, e eu estava desperdiçando seu esforço.
Rapidamente me virei.
“Você não disse que não a via dessa forma?” Maru perguntou.
“Não vejo. Tô falando sério.”
“Hmm. Acho que você é um cara mesmo.”
“Comentários assim são problemáticos e podem dar a ideia errada para os outros.” “Então é apenas safadeza de um garoto do ensino médio.” “Não tô gostando das palavras que você escolheu!” “Claro, eu não acho que você é o tipo de cara que agiria de forma descuidada com relação aos seus desejos sexuais. Mas não se preocupe—seu coração pertence só a você. Você é livre para pensar o que quiser.” Maru tinha que estar me provocando. Eu tinha certeza disso.
“Tá bom, tudo bem. Agradeço sua compreensão,” eu disse com um suspiro e um encolher de ombros.
As duas meninas, por sua vez, pareciam ter percebido que eu estava observando elas, e parecia tarde demais para tentar disfarçar.
“Acabou?” Maru perguntou.
“Oh, sim. Vamos praticar.”
Durante o resto do período, consegui recuperar meu foco e passei o tempo praticando com dedicação.
A aula das meninas terminou mais cedo, já que demoravam mais para se trocar, e quando olhei para a quadra de tênis ao lado, estava vazia, com apenas uma bola amarela no chão.
O sinal tocou quando gotas prateadas de chuva começaram a cair, o céu cinza não conseguiu segurar a tempestade por mais tempo. As gotas caídas criaram um padrão manchado na quadra.
“Eu não achava que ia chover,” Maru disse enquanto corria em minha direção. “Vamos, vamos voltar para dentro.” “Sério?” Eu disse. “A previsão do tempo disse que havia sessenta por cento de chance.” Eu também não queria me molhar, então corremos um do lado do outro de volta para o prédio da escola.
“Estou muito feliz em apostar nos quarenta por cento,” Maru disse. “Quantos jogadores de beisebol você acha que existem no mundo que rebatem quatrocentos?!” “Não acho que isso tenha algo a ver com o tempo.” Ele estava dizendo que quarenta por cento era bom o suficiente do ponto de vista de um jogador de beisebol? Talvez os mesmos números simplesmente tivessem valores diferentes para pessoas diferentes. Não, com certeza tem algo errado com a forma de pensar do Maru.
“Rápido, Asamura! A chuva está piorando!”
Corremos para dentro justo quando começou a chover forte. Maru se virou e olhou para o céu.
“Não vai parar. Acho que vamos ter que treinar com pesos aqui dentro hoje…” Ele inclinou seu enorme corpo para a frente e espirrou.
O pátio da escola já tinha se transformado em um marrom escuro. A chuva forte borrava a paisagem como neblina. O barulho das gotas parecia o único som no mundo.
“Já é junho,” comentei. “Estamos na época de chuvas.” “Ainda assim, rebater quatrocentas vezes é rebater quatrocentas vezes,” Maru retrucou. “Você espera apenas acertar uma vez. ” “Isso é ridículo.”
As nuvens acima eram de um cinza escuro, e assim como Maru disse, não parecia que iria parar tão cedo. Eu estava feliz por ter trazido meu guarda-chuva. Eu deveria conseguir chegar em casa sem me molhar.
...Ou foi isso que pensei.
A escola havia terminado, e claro, ainda estava chovendo.
Eu estava certo, não que estivesse feliz com isso. Previsões que você não quer que se realizem geralmente se realizam. A Lei de Murphy estava viva e continuava funcionando.
Felizmente, eu estava de folga naquele dia e não precisava ir até a Estação Shibuya. Achei que seria sensato ir direto para casa. Assim que estava me dirigindo para os armários de sapatos na entrada principal, avistei uma figura familiar.
Uma garota estava olhando para o céu chuvoso. Os fundos de nuvens cinzentas eram desinteressantes comparados à cor brilhante do cabelo dela.
Aquela é a Ayase... não é? Não me diga que ela esqueceu o guarda-chuva. A previsão havia dito que havia sessenta por cento de chance de chuva. Eu queria perguntar a ela se ela também era fã de beisebol que apreciava uma média de rebatidas de 0,400, mas então lembrei de uma coisa. Ela saiu de casa antes de mim. Ela já estava fora quando eu vi a previsão do tempo.
Observando ela de longe, me perguntei o que fazer.
Olhei para os lados. O caminho estava livre. Todos pareciam ter ido para casa cedo—uma boa escola.
Abri minha bolsa e tirei meu guarda-chuva do fundo. Um guarda-chuva dobrável cabe facilmente em uma bolsa escolar, então não é um incômodo carregá-lo. A única questão era se deveria trazê-lo. Quem foi que disse que a vida é uma série de escolhas?
Caminhei ruidosamente até Ayase para não assustá-la e parei a cerca de três passos de distância. Essa era a distância certa. Eu não tinha coragem de tocar no ombro dela por trás. Quer dizer, eu era um garoto, e não seria certo tocar no corpo de uma garota assim. Além disso, meus dias pacíficos na escola acabariam se ela gritasse.
Limpei a garganta antes de falar.
“Você quer dividir meu guarda-chuva?”
Os ombros dela tremeram, e ela se virou, fazendo seu cabelo dourado dançar. Ele refletia a fraca luz fluorescente do teto, e o brinco prateado em sua orelha brilhou.
Ela direcionou seu olhar vazio para mim, focando lentamente no meu rosto. Então, como um sistema de computador que havia reiniciado com segurança, a emoção voltou à sua expressão.
“Hã?”
Seus olhos se arregalaram de surpresa. Isso é tão chocante? Eu me perguntei.
“Você esqueceu quem eu sou?” perguntei.
“Do que você está falando, Asamura?”
“É isso que eu gostaria de perguntar a você.”
Eu estava ficando um pouco nervoso.
“O que você quer?” ela perguntou. “Ainda estamos na escola, e você está falando comigo.” “Ah, é que, bem.”
Ela não estava chateada. Eu entendi isso. Era mais como se ela estivesse desconfiada. Nos últimos dias, eu tinha aprendido um pouco sobre como ler suas expressões. Eu sabia que tínhamos decidido agir como estranhos na escola. Mas não fazia sentido me criticar por quebrar essa regra. Nós éramos realmente irmãos, então não tinha um motivo para me sentir culpado.
Ayase tinha a inteligência e a lógica para chegar a essa conclusão racional, e por isso ela me perguntou o que eu queria. Isso foi uma grande ajuda. Se ela soou um pouco seca, provavelmente foi devido ao constrangimento daquela manhã. Ou pelo menos era o que eu esperava.
“Você esqueceu seu guarda-chuva?” Perguntei, voltando ao assunto em questão.
“Ah... Sim, eu acho.”
“Rebatendo quatrocentas vezes, né?”
“O que isso quer dizer?”
Confusa, ela olhou para o guarda-chuva na minha mão.
“Estamos indo para o mesmo lugar,” eu disse, “então achei que poderíamos dividir.” Eu estava tentando dizer que não havia razão para ela continuar se isso significava se molhar. Minha mensagem deveria ter sido clara.
Ela parecia surpresa ou talvez preocupada.
“Ah... Não. Na verdade eu estou esperando uma amiga. Ela disse que precisava passar na sala do clube. Então, está tudo bem...” “Nesse caso...” Falei rapidamente e fui direto ao ponto. “Você pode usar isso. Eu não vou me molhar muito se correr para casa.” Antes que ela pudesse responder, empurrei o guarda-chuva na mão dela, calcei meus sapatos e corri para a chuva.
Agora eu fiz, pensei. Talvez eu estivesse me intrometendo na vida dela.
Ela disse que estava esperando uma amiga. Talvez ela planejasse compartilhar um guarda-chuva com ela. Mas será que conseguiriam se manter secas dividindo? Os guarda-chuvas das meninas tendem a ser pequenos.
Eu continuava lembrando do olhar vazio no rosto de Ayase quando a forcei a pegar meu guarda-chuva. Era como se ela nunca tivesse sonhado que eu faria algo assim. Só de ver a expressão no rosto dela já tinha valido a pena para mim.
Era mais uma expressão dela que eu não tinha visto antes.
Me perguntei se continuaríamos mudando nosso comportamento e fazendo concessões até nos tornarmos irmãos de verdade. Esse era o pensamento que ocupava minha mente enquanto corria para casa.
A chuva de junho encharcou meu uniforme escolar. Um líquido frio que eu sabia que não era suor escorria pelas minhas costas. A chuva se acumulou nos meus sapatos, causando uma sensação desconfortável a cada passo que eu dava.
Eu fiquei aliviado ao finalmente ver nosso prédio emergir por trás da cortina prateada da chuva.
Abri a porta com trava automática, passei pelo escritório do zelador e peguei o elevador até o terceiro andar. Um som molhado de splash-splash ecoava no corredor enquanto eu passava por várias portas e finalmente chegava em casa.
Destravei a porta, entrei e acendi a luz. Um brilho laranja encheu o lugar, e eu murmurei, “Cheguei...” Não tive resposta—apenas silêncio. Mas isso era o esperado, já que meu pai e Akiko ainda não estavam em casa. Eu já deveria ter me acostumado com isso há muito tempo.
Apesar disso, por algum motivo, eu comecei a me sentir um pouco solitário quando não recebia uma resposta.
Joguei minha mochila na mesa de jantar e fui direto para o banheiro.
Girando a torneira, comecei a encher a banheira. Deixei encher por cerca de quinze minutos.
Durante esse tempo, pendurei meu uniforme em um cabide e joguei minhas roupas molhadas na máquina de lavar. Medi o detergente e o amaciante necessários e liguei a máquina. A água derramou no tambor, e ela começou a girar fazendo barulho.
“Ops, quase esqueci.”
Eu precisava colocar uma cueca para fora. Caso contrário, eu estaria andando por aí com nada além de uma toalha depois de tomar banho. Isso não seria um problema antes, mas não mais.
Isso seria algo aceitável se você fosse irmão de sangue? Não. De jeito nenhum.
Não é?
Entrei na banheira quando estava pela metade, esperando sem pensar em nada, que a água quente subisse pela superfície da minha pele. Desliguei a torneira quando estava nos meus ombros.
A água quente ardia um pouco. A chuva de junho parecia ter esfriado meu corpo inteiro. Eu suspirei—eu estava exausto. O calor do banho deixou meus pensamentos nebulosos enquanto eu lembrava do que a Ayase me pediu.
Ela queria um trabalho de meio período que pagasse bem. Como ela concordou em cozinhar para mim, eu tinha que encontrar algo para manter minha parte do acordo.
Me lembrei de como ela disse que ela é muito comprometida quando se trata de uma troca. Agora que eu sabia disso, não podia deixar que ela me mimasse. Eu sentia o mesmo que ela. Então eu tinha que encontrar um trabalho para ela.
“Hmm...”
Enquanto pensava nisso, bati na superfície da água com a palma da mão sem nenhum motivo. No mundo de hoje, talvez fosse melhor começar um negócio do que ser um funcionário. Estava escrito na capa de um dos livros que eu escolhi que se ganhava mais dinheiro contratando do que sendo contratado.
Nesse caso, talvez se tornar um YouTuber ou entregar comida para o Uber...?... Não, não é isso. Eu preciso me acalmar e pensar.
Como estudante, eu não sabia nada sobre começar um negócio. Havia muito o que eu precisava aprender. Maru estava certo. Você tinha que entender os mecanismos da sociedade e como fazer negócios... e disso eu não sei nada. Encontrar um trabalho de meio período bem pago estava começando a parecer impossível.
Mas, nesse caso, eu não podia pedir a Ayase para continuar cozinhando minhas refeições. Não seria justo. Teríamos que começar a revezar.
Dito isso, eu não tinha as habilidades dela. Conjurei uma imagem vaga dela usando um avental sobre o uniforme escolar. Ela parecia fofa— Não, não fofa. Não me excitava; apenas... combinava com ela. Sim, era isso.
Ela puxava seu cabelo comprido e o amarrava na nuca, com um olhar fixo para frente. Então ela puxava uma vez a ponta solta do laço de cabelo que ficava no ombro. E antes que você percebesse, ela estava cortando na tábua de corte.
Seus movimentos praticados eram a prova de que isso era algo que ela tinha feito muitas vezes. Ela tinha que ter feito. Ela provavelmente estava cozinhando há anos, enquanto eu comprava refeições prontas em lojas de conveniência ou pedia delivery. E eu tinha certeza de que ela não fez isso para ela mesma.
Meu pai não tinha ideia de como cozinhar, então ele não se importava que eu fosse igual. Mas Akiko não era assim. Era fácil ver pelo que ela cozinhou no nosso primeiro dia juntos que ela tentou alimentar sua filha com o máximo de refeições caseiras possível. Isso não quer dizer que um jeito era melhor que o outro; era apenas o tipo de pessoa que ela era. Eu não me importaria nem um pouco se Akiko não cozinhasse.
Mas, como resultado, se Ayase sempre encomendasse comida quando Akiko não estava em casa, presumo que sua mãe faria de tudo para cozinhar para ela. Para garantir que sua mãe ocupada não se sentisse forçada a fazer isso, Ayase precisava saber cozinhar quando ela não estivesse lá. Isso deve ter sido o motivo pelo qual ela aprendeu. Isso é o que eu pensei, de qualquer forma, e provavelmente estava certo. Era simplesmente uma questão de observação e reflexão. Se você continuasse fazendo isso, poderia descobrir muito sobre alguém. Mas, é claro, você precisava ter uma razão para pensar em tais coisas.
"Defesa... hein."
Ayase estava lutando enquanto eu estava fugindo.
"Eu realmente gostaria de encontrar esse trabalho bem remunerado para ela..."
Minha mente voltou ao assunto dos empregos, mas nenhuma ideia brilhante veio à mente. Eu estava pensando tanto que minha cabeça estava esquentando. Eu me senti tonto.
Saí da banheira, com shampoo tirei a sujeira da chuva do meu cabelo, lavei meu corpo e saí do banheiro. Verifiquei a máquina de lavar e vi que o ciclo de centrifugação havia terminado e agora estava no modo de secagem. Era um pouco barulhento, mas não tinha nada que eu pudesse fazer sobre isso. Além disso, não era tão tarde que eu precisava começar a me preocupar em incomodar os vizinhos.
Vesti algumas roupas leves de algodão para ficar em casa e decidi parar de me preocupar por enquanto. O ar fresco que entrava no corredor da sala de estar pelo ar-condicionado parecia bom na minha pele quente. Isso melhorou meu humor, e comecei a cantarolar enquanto me dirigia para lá. Foi então que eu percebi que não tinha ligado o ar-condicionado.
Duas garotas estavam na sala de estar e elas se viraram para me olhar. Era Ayase e... Narasaka?
Por que elas estavam aqui?
Minha mente ficou momentaneamente em branco; então percebi... Droga! Eu tinha esquecido que estava morando com uma meia-irmã e comecei a cantarolar para mim mesmo...!
O constrangimento me atingiu como um exército invasor, e eu não conseguia nem lutar. Meu rosto ficou quente. Eu podia dizer que estava corando de orelha a orelha.
Narasaka estava lá também—uma completa estranha. Ela definitivamente tinha visto—ou melhor, ouvido—eu cantarolar. Ai. Eu poderia morrer cem vezes só de constrangimento. O que que eu deveria fazer? Eu estava dormente até os dedos dos pés e não conseguia me mexer.
A boca de Narasaka estava aberta. Seus lábios estavam congelados em forma de "oh".
"Me desculpa," Ayase disse, aproximando-se de mim e sussurrando, "Maaya queria ver minha nova casa. Eu queria te avisar, mas não tenho seu contato."
Então ela não conseguiu me avisar.
Ela juntou as mãos em sinal de desculpas, o que não era normal. Talvez ela se sentisse mais relaxada com sua amiga por perto.
Depois de parecer surpresa por um momento, Narasaka voltou a sorrir como sempre.
"Uau!" ela exclamou. "Você deve ser o irmão mais velho do qual a Saki tem me contado! Então é você—Yuuta Asamura da sala do lado!"
Ela estava cheia de energia.
"Ei, você sabe quem eu sou?" ela continuou. "A Saki te contou sobre mim?"
"Ah... sim." O que eu deveria dizer? "Ela me disse que vocês duas eram amigas."
Achei que uma resposta neutra era uma aposta segura, embora eu ache que vi uma breve mudança nos olhos de Narasaka quando ela me ouviu.
"Ah, 'amigas,' É?" ela disse em uma voz quieta. Eu posso ter me enganado, já que estava apenas lendo seus lábios, mas seu rosto parecia quase sério... talvez um pouco preocupado. Ayase provavelmente não notou, já que ela tinha vindo até mim e estava de costas para Narasaka.
Mas a expressão nebulosa da outra garota desapareceu em um instante. Pode parecer estúpido dizer isso dessa forma, mas o rosto dela se iluminou como uma flor desabrochando.
"Sim! Nós somos boas amigas!" ela disse. "Então espero que possamos nos dar bem também, Asamura!"
"Ah... claro. Igualmente. Vocês duas estavam bem na chuva, por falar nisso?"
Ainda estava chovendo lá fora. Eu não chamaria de tempestade, mas o vento estava soprando e as gotas de chuva batiam na janela com inclinação.
"Estamos bem!" Narasaka disse. "Nós duas tínhamos guarda-chuvas!"
"Entendi."
"A Saki disse que tinha esquecido o dela, mas ela encontrou."
"Estava no fundo da minha bolsa," disse Ayase.
Então foi assim que ela explicou. Eu estava feliz que não era um guarda-chuva claramente masculino.
"Oh, sua desatenta!" Narasaka exclamou.
"Eu começo a sentir vertigem psicogênica quando você diz coisas assim," Ayase respondeu.
"Você está usando palavras difíceis de novo! Alguém ainda fala assim hoje em dia?"
"Hã? É estranho?"
"Sim! Mas está tudo bem." Narasaka pulou no sofá, fazendo sua saia esvoaçar. Ayase suspirou com seus maus modos.
"Maaya. Sua calcinha está aparecendo."
"Oh!"
Em pânico, Narasaka saltou e endireitou a saia, depois me olhou com desconfiança. Não, Narasaka, eu não vi nada. O ângulo não era bom.
"Saki, este lugar é perigoso," ela disse.
"Do que você está falando?" Ayase perguntou.
"Tem um garoto aqui!"
"Eu acho que o Asamura não se parece muito com uma garota."
"Ele é um garoto. Um homem!"
"E daí?"
"O que você vai fazer?! Você não pode andar por aí só de cueca depois de tomar banho!"
"Eu não ando por aí só de cueca. Você anda só de calcinha?" "Claro que não. Eu sou uma dama."
Por algum motivo, Narasaka parecia muito orgulhosa ao dizer isso.
"Mas ei, Saki?"
"O quê?"
"É bom te ouvir falar comigo de maneira tão casual."
"...!"
Ayase rapidamente se virou, mas já era tarde demais. Ela foi pega completamente de surpresa. Eu pude ver que ela estava corando.
"Uau, isso é tão doce da sua parte," disse Narasaka. "Seu pai está tão satisfeito."
"Maaya, você não é o meu pai!"
Parecia que Ayase normalmente usava uma linguagem mais formal com Maaya, mas ela tinha deixado escapar dessa vez.
"Demorou tanto para você me chamar pelo primeiro nome também."
"Sério?"
"Sério!"
"Já esqueci."
"Bem, eu me lembro!"
"Você pode apagar isso da sua memória."
"De jeito nenhum!"
Narasaka parecia satisfeita, mas não parecia ser porque Ayase estava sendo informal com ela. Parecia para mim que ela estava feliz que Ayase estava revelando seu verdadeiro eu.
Algumas pessoas gostavam de mostrar o quão próximas eram dos amigos sendo rudes com eles, levando a intimidade casual longe demais. Mas grosseria era grosseria, fosse você amigo ou não.
Ayase e eu concordamos em continuar nos chamando pelo sobrenome, como fazíamos na escola. Isso porque não tínhamos nenhum sentimento negativo em continuar nos tratando formalmente, apesar de termos concordado em dispensar a linguagem formal.
Narasaka parecia alguém que entenderia isso.
Não, talvez eu estivesse errado. Como eu poderia saber isso sobre ela? Esta era a primeira vez que falávamos um com o outro. Mas, ao mesmo tempo, se ela fosse do tipo que não entendesse nossa situação, eu não acho que Ayase teria feito amizade com ela ou a convidado para nossa casa. É assim que eu via, de qualquer maneira. Como eu disse antes, você pode entender muito através da observação e reflexão.
"De qualquer forma!" disse Narasaka. "Prazer em conhecê-lo, Irmãozão!"
"I-Irmãozão?"
Ela não tinha me chamado de Asamura um momento atrás? Sua atitude repentinamente amigável estava me fazendo reconsiderar o que eu acabara de pensar sobre ela.
"Não seja tímido, Irmãozinho!"
"Uh, eu não sou seu irmão..."
"Ah, vamos lá, somos praticamente uma família agora. Você pode me chamar de Maaya também."
"Não tenho certeza se estou pronto para isso. É família? Eu sou o meio-irmão da Ayase, não o seu."
"Não se preocupe com os detalhes, Irmãozão! É legal ser chamado assim, não é?"
"Nem tanto."
Algumas pessoas podem se sentir assim, mas não eu. Embora, ouvir "Irmãozão" repetido na voz doce de Narasaka era um pouco como ter um pequeno animal que gostava de mim.
De qualquer forma, Narasaka era mais ousada do que eu imaginava. Ela não parecia do tipo que começaria a importunar o irmão da amiga.
"...Pare com isso...", disse uma voz fraca. Ayase estava com a cabeça baixa como se estivesse sob ataque. "...É vergonhoso."
"Fale mais alto!" disse Narasaka. "Eu não consigo te ouvir!"
"Eu disse, pare com isso! É constrangedor! Eu fico com calafrios na espinha toda vez que você diz 'Irmãozão.' Por favor, pare de chamá-lo assim!"
"Uau, você aguentou menos que ele."
Ah, então era isso.
"Você estava apenas me provocando para irritar Ayase, não estava?" eu perguntei.
"Ah-ha-ha-ha-ha-ha! Bingo!" Narasaka respondeu.
"Não me dê um bingo," eu disse.
Eu gostaria que ela não apontasse para mim com aquele olhar sério no rosto. Ou melhor, ela não deveria apontar para as pessoas em primeiro lugar. Era rude.
"Ok, vou parar de te zoar por enquanto, Irmãozão."
"Pare para sempre. Por favor."
"Ah, isso não tem graça. Vamos, Saki, tente chamá-lo de Irmãozão. Na contagem de três—"
"Nunca!" ela gritou.
"Mas ter um meio-irmão é uma coisa tão divertida na vida. Você deve aproveitá-lo bem."
"Pare de fazer isso soar como se eu tivesse tirado uma carta do Jogo da Vida... Agora o que você está fazendo?"
Narasaka estava abrindo a bolsa de ginástica que tinha deslizado para debaixo da mesa e tirando algo de lá.
"Aqui está. Vamos jogar um jogo!"
"Você trouxe um console de videogame?" disse Ayase.
"Narasaka," eu a repreendi. "Você não deveria levar jogos para a escola..."
"Não é contra as regras levar," ela respondeu. "Nós só não podemos jogar."
Eu não via diferença entre levar jogos para a escola e jogá-los, mas de acordo com Narasaka, estava tudo bem desde que você não o tirasse durante a aula. Ela disse que até verificou com um professor, o que me impressionou. Parecia que a Suisei dava mais liberdade aos alunos do que eu imaginava.
O console que ela tirou era o modelo mais novo que todos estavam falando.
"Saki, você disse que não tinha este."
"Eu não tenho."
"É por isso que eu queria jogar com você," Narasaka disse, apontando para a tela LCD de cinquenta polegadas de frente para o sofá. "Posso colocar ele na sua TV?"
"...Não vejo porque não."
"Tem jogos que podemos jogar juntos. Ah, vocês têm Wi-Fi?"
Ayase olhou para mim. Ela estava perguntando se podia dar a senha para Narasaka.
Eu tinha dado para ela quando ela se mudou. Hoje em dia, isso era como um ritual que todos faziam quando entregavam a chave da casa para alguém. Eu assenti.
Ayase escreveu a senha e deu para Narasaka, que rapidamente configurou o sistema de jogo e voltou para o sofá.
"Você quer jogar com a gente?" ela perguntou, virando-se para mim.
Ela tirou mais objetos da bolsa. Havia dois—não, três controles. Um deles era para mim? Eu lembrei do que Maru disse sobre Narasaka ser atenciosa. Talvez ela tivesse planejado me incluir desde o início.
Fiz contato visual com Ayase novamente, perguntando o que fazer.
"Bem, ainda não parou de chover," ela disse, "então podemos muito bem. Fique à vontade para participar, Asamura."
Ayase deslizou para o fim do sofá e abriu espaço para mim.
"Oh-ho. Então Saki quer sentar ao lado do seu irmãozinho, pelo que vejo."
"Deixe para lá," disse Ayase, voltando para onde estava sentada antes. "De espaço para ele do seu lado, pode ser?"
"Ele pode sentar entre nós," disse Narasaka. "Que tal, Asamura? Você terá uma beleza em cada braço!"
"Eu prefiro sentar na ponta..."
"Uh-uh," disse Narasaka. "Isso não é negociável."
"Parece um pouco estranho você estar usando nosso sofá como se fosse seu," Ayase murmurou, olhando exasperada para sua amiga, que estava agarrando o outro braço do sofá com toda a força.
"Ok, ok. Eu vou sentar onde você quiser que eu sente," eu disse.
Sem muita escolha, eu me sentei no meio.
Não era um sofá grande. Três pessoas mal conseguiam se apertar. Não precisávamos de nada maior, já que sempre tinha sido apenas meu pai e eu.
De qualquer forma, você não podia esperar que eu ficasse calmo, sentado entre duas garotas que eram o assunto dos fofocas na escola. Eu poderia fazer o meu melhor para manter uma expressão neutra, mas havia um limite para a minha resistência.
"Mm, Asamura, você cheira muito bem saído do banho," comentou Narasaka. "Acho que é seu xampu. Saki deve usar o mesmo tipo."
"Claro que não," disse Ayase. "Tenha bom senso."
Eu não sabia que era bom senso usar um xampu diferente do seu irmão. Pensando bem, nunca usei um xampu ou sabonete diferente do meu pai. Eu teria que ser mais cuidadoso quando fosse fazer compras. Ayase parecia ter lido minha mente, porém.
"Eu posso comprar minhas próprias coisas. Eu não sou uma criança."
A maneira como ela prestava atenção e era rápida em me tranquilizar realmente tornava minha vida mais fácil.
"Ok, vamos lá!"
Narasaka começou a manobrar seu controle.
Ouvi uma música animada começar e foquei minha atenção na tela.
Eu já tinha sentado nesse sofá inúmeras vezes antes, então por que parecia que eu era o que mais estava desconfortável agora? Me lembrei do que Ayase tinha dito mais cedo – ela se referiu a ele como nosso sofá. Provavelmente ela não quis dizer nada com isso, mas suas palavras me fizeram feliz.
Nós lançamos o jogo. Levou um segundo para procurar as atualizações mais recentes online, mas logo começou sem precisar de atualizações.
"Ei, este é... um jogo de terror, por acaso?"
A voz de Ayase assumiu um tom de tensão.
"Não é assustador," disse Narasaka. "É um jogo fofo, como um quebra-cabeça! Você controla esse personagem fofinho, faz com que ele segure as mãos de outros personagens e visa a linha de chegada aqui." Ela apontou para um personagem em forma de humano que estava cambaleando como se não tivesse nenhum osso no corpo.
Com um movimento de seu controle, Narasaka fez seu personagem voar pelo ar, girar e cair em um arbusto de espinhos. Sangue espirrou por toda parte, e o personagem gritou e caiu fora do mapa.
"Viu? Seu personagem morre quando algo assim acontece."
"É um jogo de terror!" exclamou Ayase.
"Não é! Você pode chegar à linha de chegada se fizer tudo certo. Só é assustador se você cometer um erro. Aqui, Asamura, use este," Narasaka disse, me entregando um controle. "Escutem todos: o importante é que fiquemos sincronizados. Será como cortar o bolo juntos em um casamento!"
"Isso não é algo que os noivos fazem?" Ayase disse sarcasticamente.
"Ah, pare de reclamar! Aqui vamos nós!"
Muitos personagens morreram.
Isso era de se esperar; era minha primeira vez, então eu não seria bom nisso. Mas toda vez que eu perdia um personagem, Narasaka ficava animada e dizia: "Ei, você quase conseguiu! Vamos, não entre em pânico. Continue! Ah, droga!" E todas as vezes, ela batia seu ombro contra o meu.
Estávamos muito próximos um do outro. Ela agia muito mais como minha irmãzinha do que a Ayase.
"Ufa! Bom jogo!" disse Narasaka quando acabou.
Tinha parado de chover quando terminamos de jogar. Nossa convidada foi para casa parecendo completamente satisfeita.
"Desculpe por minha amiga ser tão irritante," Ayase disse uma vez que viu Narasaka sair pela porta.
"Ah, não se preocupe."
"Ei..."
Ayase parecia ter dificuldade em dizer o que queria, então perguntei o que estava em sua mente.
"Podemos trocar nossos números de telefone?" ela disse finalmente. "Assim, podemos evitar qualquer problema no futuro, sabe?"
"Ah, claro. Ok."
Eu não tinha nada contra a ideia. Era necessário para evitar situações infelizes no futuro. Além disso, éramos família. Trocar informações de contato não era anormal.
Eu abri meu celular e vi o ícone de Ayase na minha lista de contatos.
Ela estava usando uma foto de uma xícara de chá chique. Era apenas um ícone, mas era a cara dela escolher algo que não revelasse seu gênero.
"Eu me pergunto se isso também é um tipo de defesa..."
"Você disse alguma coisa?" Ayase disse se virando para mim da cozinha.
Ela tinha ido direto para lá depois de trocarmos informações. Ouvi a faca dela parar na tábua de cortar por um segundo quando ela falou.
"Ah, nada."
"O jantar já vai estar pronto," ela disse.
"Ok."
Ayase voltou a cortar, e o aroma da sopa de miso fez cócegas nas minhas narinas.
Pensei no dia agitado que tive. Foi uma coisa atrás da outra, começando no caminho para a escola quando descobri o que Ayase estava ouvindo nos fones de ouvido.
Mais tarde, vi Ayase tendo uma partida amigável de tênis com Narasaka. Depois, fiquei encharcado apesar de ter levado meu guarda-chuva para a escola. Cometi o maior erro da minha vida ao cantarolar depois do banho na frente de uma estranha, e depois não consegui me destacar jogando com Narasaka e Ayase.
E mesmo assim, sinto que foi um bom dia e que ganhei muito.
Com esse pensamento, desliguei a tela do meu celular.
Tradução: Thomás Masg
Revisão: Luuh
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