Pt. 2 – Arco 3
Capítulo 31: O Hippie Acordou
??? - 7:10 da noite, quinze de Julho.
O hippie acordou.
Estava mais ferido que nunca; pele escurecida pela fuligem, machucados cobertos por sangue seco. Isso tudo só não lhe trazia desespero porque, depois de todo esse tempo, finalmente havia retornado para o lugar onde viveu por tantos anos: um quarto branco, com apenas uma beliche, uma privada e uma torneira.
Odiava aquele ambiente, mas passou por tantas coisas nos últimos tempos que tal visão calma lhe trazia um pouco de paz.
— Área 40, né? Como você conseguiu abrir a passagem, Bomba Lógica? — gargalhou. — É inútil tentar se esconder, pois consigo escutar os batimentos do seu coração. É cômico que ainda tenha um, inclusive.
Uma voz arfou entristecidamente. Subitamente, saltou para dentro da cela uma garota baixinha vestida como uma funcionária de telemarketing, com um colete cinza e uma gravata desarrumada. As vestes, inclusive, pareciam sujas de sangue. Mesmo assim, o que mais se destacava entre tudo aquilo era o fato da garota ter um monitor quadrado de computador no lugar de uma cabeça humana.
— Não abrimos a passagem! — respondeu. — O Einstein e a Elin que abriram. Estavam acompanhados de um mendigo ou coisa do tipo.
— Quem é Elin? O líder só me falou do Einstein.
— Puts. Verdade. Você e o Hamlet ainda estão sem memórias, né?
— Chega a ser complicado. Me lembro de algumas coisas, o que é mais importante para mim, julgo eu. Todavia, são apenas sentimentos, informações e cenas vagas. Creio que foi o máximo que o líder fora capaz de fazer para mim, comigo fora de seu alcance.
— Imagino que o mesmo se aplique ao Hamlet. Falando nisso, quem foi que o deixou naquele estado?
— Acredito que foi o “mendigo” que está acompanhando Einstein. Ele também é um crypto e tem capacidades físicas sobre-humanas. E acho que vi essa Elin em um momento — suspirou. — O Hamlet melhorou?
— Negativo, porém, o Johnny está preparando duas cápsulas de regeneração para tratar vocês dois.
— Essas coisas ainda funcionam depois de todo esse tempo?
— Tinham quebrado, mas consegui consertar.
— Então por que deixou aquele cara para mexer nelas? Ele vai quebrá-las novamente! — levantou em um salto, correndo desajeitadamente para fora da cela.
— Calma aí, vai acabar torcendo o pé!
Passou por vários corredores. Bomba Lógica o seguiu, saltitando. Aproveitou o trajeto para atualizá-la, contando tudo o que aconteceu nos últimos dias. Em questão de minutos, os dois chegaram na enfermaria, onde encontraram o corpo congelado do Hamlet encostado sobre a parede.
Ao lado, um homem ranzinza usava um pé de cabra para espancar a cápsula de regeneração.
— Mas o quê?! — Desesperada, a ciborgue saiu correndo e o agarrou pelos braços, jogando ele para longe da máquina. — O que acha que está fazendo?!
— Ué. — Johnny se levantou. — Cê pediu para que eu ligasse esse troço. Tentei ligá-lo na base da porrada para que ele aprendesse a ser independente e começar a funcionar por conta própria. Ninguém merece ter que ficar mexendo em um bagulho complicado desses o tempo todo!
Johnny Gun carregava consigo uma voz forte e bêbada. Tinha um corpo miúdo, pele branca e ressecada, um traje militar antigo, um cabelo ralo (calvície em fase terminal), dentes podres e um olhar totalmente lunático.
— Não é assim que funciona, imbecil — resmungou, começando a mexer nos mecanismos por conta própria. — Nunca mais te peço ajuda.
— Poderia ter contado comigo — disse outro sujeito, de voz baixa, que acabara de adentrar o recinto. Pele de tom marrom-claro, um longo e desgrenhado cabelo branco, olhos cinzas, uma cicatriz profunda no canto da boca e uma roupa digna dos anos trinta; camisa de tricô, boina e binóculos.
— Olá, Christopher, há quanto tempo — falou Laertes, cumprimentando o colega.
— É bom revê-lo.
— Até pedi ajuda, mas você me ignorou — argumentou Bomba Lógica.
— Todas as forças que eu tinha para me comunicar com outras formas de vida acabaram de se esvair nessa breve interação social. Adeus.
De uma hora para outra, ele simplesmente começou a chorar de uma forma desconfortavelmente exagerada e saiu do cômodo.
— Esse cara é bizarro demais — resmungou Johnny.
— Não me mate, por favor! — gritou Christopher, lá do corredor. A fala precedeu a chegada de outra pessoa.
Uma gigantesca montanha de músculos cinza adentrou o recinto. Vestia uma calça rasgada e uma sacola cobria boa parte de seu rosto, por mais que incapaz de esconder seu queixo quadrado e gigantesco.
— … — Um mero suspiro do ser instaurou um sentimento sombrio por toda a sala, e seus passos seguintes foram responsáveis por tremores poderosos.
Ele pegou um analgésico e foi embora, ignorando completamente todo mundo.
— Tchau, Dooman! Você é uma figura — comentou Bomba Lógica. — Prontinho.
Com o apertar de um botão, uma das cápsulas de metal abriu. Laertes, notavelmente desconfortável, cambaleou até a cápsula e se jogou para dentro dela.
— Feche.
— Nem precisa pedir — apertou o mesmo botão e a cápsula fechou. — Enfia o Hamlet na outra cápsula, Johnny.
— Ah, agora quer a minha ajuda?! — resmungou o soldado.
— Vai logo. E vê se faz certo.
Ele assentiu com a cabeça. Apertou o botão da outra cápsula, abrindo ela. Então, agarrou o homem congelado e o atirou violentamente para dentro da cápsula.
— Você poderia ter matado ele!
Dando de ombros, o soldado afundou as mãos nos bolsos e foi embora.
A ciborgue apertou outro botão. Como resposta, um gás começou a se espalhar por dentro de uma das cápsulas, até inundá-la. O mesmo ocorreu quando apertou o mesmo botão da outra cápsula.
Por fim, ela finalmente foi embora da enfermaria.
Começou a caminhar pelos corredores mal iluminados da sala subterrânea, imersa em seus próprios pensamentos. Isso até passar por um laboratório velho, onde encontrou Christopher, encostado na parede em posição fetal.
— Tudo bem?
— Ah! — gritou como uma gazela, se levantando imediatamente. — Estou. Estou sim! O que faz aqui?
— Apenas pensando.
— Ah. Legal. Se me dá licença…
— Aqueles três destrancaram os portões daqui quando decidiram invadir, então mais nada nos prende nesse local. Agora que estamos todos livres, por que ainda não foi embora?
— O quê? — Arregalou os olhos. — Se nenhum de vocês foi embora, por que acredita que eu iria?
— Sei lá. Pensei que estava aqui conosco apenas por falta de escolha.
— Oras, sempre fui um seguidor convicto das ideologias de Panthael. Não irei para lugar nenhum sem ele.
Um sorriso desenhou-se sobre o rosto-monitor de Bomba Lógica, que com sua voz robótica, exclamou:
— Bom saber!
Christopher suspirou, já se virando, pronto para seguir em frente.
— Se importa de me acompanhar até os aposentos do líder? — questionou Bomba Lógica.
— Claro…
Depois de ajudá-lo a se levantar, a ciborgue continuou a caminhada, agora sendo seguida por ele.
— O que você acredita que será nosso próximo passo? — indagou Bomba Lógica.
— Imagino que devemos encontrar aqueles que Laertes e Hamlet deviam ter trazido para cá.
— É provável. Só que isso será um desafio, agora que os homens de preto estão dominando Woodnation.
— …?
— É a cidade que fica acima da gente.
— Oh, sim.
Durante a conversa, chegaram em alguns minutos nas áreas mais estranhas da Área 40, onde os corredores eram cheios de plantas e esqueletos poderiam ser encontrados pelo chão.
— Aí, qual o peixe que caiu do 10º andar? — indagou Bomba Lógica, envolta do ambiente tenebroso.
— Não tenho a mínima ideia.
— O aaaaaaaaaaatum.
— …
— Entendeu? Atum.
— Foi uma ótima piada.
Os dois pararam na frente de uma fenda, de onde se originava o matagal. A ciborgue deu um tapinha no ombro de Christopher e adentrou o recinto sem ele, animada.
— Te espero aqui… — falou Christopher, enquanto ela se afastava.
Bomba Lógica sorriu ao vislumbrar o belo horizonte florestal, no meio de inúmeras árvores escarlates. O ar do local era bem melhor de respirar, mas isso ela não poderia saber. Devido às inúmeras modificações corporais que sofreu no decorrer da vida, já havia perdido a capacidade e necessidade de respirar.
Cruzou a longínqua floresta, até parar na frente da imensa árvore no centro de tudo. Era incapaz de olhar para ela e não sentir uma sensação estranha de impotência, o que aumentava quando abaixava o rosto e se deparava com aquele homem cravado sobre a madeira, como se fosse um só com a árvore.
— Fico feliz que tenha vindo — fraquejou Panthael, mas isso não significava que havia piorado. Ainda tinha aquela magreza assustadora e a palidez azul insuperável, mas se comparado com antes, era notável que seu corpo se fortaleceu e que sua pele adquiriu um azul mais vivo. O cabelo rosa também tornara-se mais grande e forte. Mesmo assim, o corpo doente continuava capaz de instigar repulsa na maioria das pessoas. Principalmente nos humanos comuns, que mal aguentavam lidar com as diferenças físicas de indivíduos da mesma espécie.
— Nada mais do que o esperado, senhor — ajoelhou-se. — Quando o seu chamado surge em minha mente, venho instantaneamente.
O corpo magro saltou para fora da árvore, que por alguns segundos lutou para não largá-lo.
Ela caiu para trás. Tomou um susto genuíno quando viu o homem de pé, em sua frente, com nenhuma parte de seu corpo coberto pela prisão de madeira.
— Foi pouco, mas consegui absorver um pouco dos nutrientes daqueles dois, assim como do homem que os acompanhava. — O olhar calmo de Panthael se desviou para sua própria mão. — É uma energia calorosa e cheia de poder. Ainda me encontro longe de um estado saudável, mas ficarei mais poderoso do que nunca se conseguir absorver toda a energia deles.
— Isso é ótimo… devemos ir atrás?
— Para isso, precisamos das habilidades do rato de Hamlet, certo? Porém, isso só ficará próximo de ser possível quando o seu dono estiver recuperado, mesmo que parcialmente.
— Concordo.
— Concorda?
Repentinamente, o homem sem olhos se abaixou. O par de buracos em seu rosto, que não transmitiam nada além de um vazio aterrorizador, a fitaram de uma forma estranhamente profunda.
— Por que não compartilha suas ideias comigo? Tenho certeza de que está pensando em algo.
— Não é nada demais.
O corpo esquelético se aproximou dela, em uma pose quase animalesca.
— Ouça-me, o que acha que é um homem, sem os seus sentidos?
— Como assim?
— Responda-me.
— Bem… de quase nada ele é capaz?
— De fato. Só que para governar, um homem não pode ser dotado apenas dos sentidos mundanos. Ele precisa ser capaz de compreender até aquilo que não se encontra ao seu alcance. Como ele fará isso?
— Desculpa, mas não sei a resposta.
— Ele precisará da ajuda daqueles que possuem os seus mesmos ideais. Ou ao menos, ideais próximos.
Ele se levantou e estendeu a mão para a ciborgue.
— Por isso, caso tenha alguma ideia, peço que a compartilhe comigo. Independentemente de qual seja, ou de acreditar que ela seja inútil. Talvez seja, mas não tem problema, pois só posso descobrir isso se escutá-la.
Ela se reergueu com ajuda dele. Então, disse:
— Como bem sabe, a Área 40 foi aberta. O campo de defesa se desfez e agora sou capaz de usar os meus poderes em total capacidade. Posso acessar tudo o que é virtual, e através disso, captar qualquer notícia relacionada a eles transmitidas pelas televisões. Vi agora a pouco que Einstein, Elin e o aliado deles, chamado Leonard Mystery, foram acusados de terrorismo e estão sendo procurados por todo o país. Caso algum deles vacilem, serei capaz de encontrá-los sem a necessidade do Hamlet.
O corpo de Panthael projetaram uma sombra sobre a ciborgue quando ele se virou. Pequenas raízes saíram da árvore e tentaram agarrá-lo, como se desejassem que a união fosse retomada. Ele voltou-se para sua seguidora, com uma expressão enigmática.
— Perfeito.
— Ótimo…!
— Fique atenta. E, aliás…
— Panthael! — Bomba Lógica gritou ao vê-lo usar suas unhas afiadas e sujas para rasgar o próprio pulso.
Ele pousou o pulso machucado acima das mãos da seguidora. O que saiu de dentro não era o esperado sangue vermelho, mas sim um líquido dourado que muito se assemelhava a uma gosma. Aquilo formou uma pequena poça sobre as mãos de Bomba Lógica.
— Entregue esse presente a Laertes e Hamlet. Isso pode acelerar o processo curativo dos dois.
Quando ela levou os olhos até suas próprias mãos, se assustou, pois todo o sangue havia sumido em um instante. No lugar, haviam surgido duas sementes, tão douradas e reluzentes quanto o líquido.
Panthael tocou na árvore, e então, começou a ser absorvido pela madeira. Enquanto Bomba Lógica ia embora, ele voltava a se assimilar com aquilo.