Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 2

Capítulo 41: Provas e mais provas

3 de Março de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Biblioteca da Academia de Palas

 

Ichika não aguentava mais ficar calado por tanto tempo. Sentia-se sufocado pelo silêncio — um eufemismo para a completa falta de vozes no ambiente. E a pior parte era o fato de saber que todos ali conscientemente corroboravam para a situação se manter como estava. Era, em sua percepção, o único demasiado incomodado com a contínua falta de interação humana.

Em quase duas horas participando do grupo de estudos, ofertado em caráter emergencial pelas provas daquela semana, muitas das suas concepções iniciais sobre os amigos que fez caíram por terra. Em especial, aquelas acerca das capacidades cognitivas de alguns membros de seu círculo social.

A começar por Togami: surpreendente foi saber que o aluno de Yumeko e parceiro fixo de conversa de Reiko, duas pessoas de intelecto admirável, era tão ruim de estudar. Forçá-lo a sentar na cadeira e se concentrar por mais de 15 minutos estava sendo um esforço coletivo, bem como um desafio pessoal ao garoto. “Não quero ficar de fora do recrutamento!”, era o que repetia o tempo inteiro, mão à testa encharcada de suor frio.

Alguns, por outro lado, correspondiam até demais às suas expectativas. Caso de Heishi, Yoko e Hanako, cujas dificuldades pontuais eram rapidamente superadas ao levarem suas dúvidas à “professora Chiwa”. Podia ver a aura de Reiko tremer de felicidade cada vez que era solicitada em uma das mesas por eles ocupadas.

— Reizinha, me ajuda com essa dúvida? 

— De novo, Kai? É a quinta vez já! — riu a garota, partindo na direção dele. — Vamo lá, qual o problema?

Quando a ateniense puxou uma cadeira para sentar-se colada ao rapaz de cabelos negros, Ichika sentiu a aura de Togami vibrar intensamente. Em conjunto às sobrancelhas franzidas e lábios comprimidos, era inegável seu incômodo quanto à atenção dada por Reiko à Kai.

O nobre solano não compreendia muito bem o motivo de tanta raiva. Até onde interagiu com o outro menino, o Guardião de Hemera e Érebos não lhe pareceu má pessoa. Talvez um pouco perturbador ou objetivo demais, mas nada que fosse impossível de ignorar. 

Seja lá o que mordeu Togami, nem sua língua escapou da raiva.

— Ele só quer encher o saco.

— O que falou, nanico?

— Nada da tua conta, leite azedo.

Cada um dos garotos sentados recebeu um golpe de mão aberta de Reiko, que tirou gemidos de dor pela força aplicada. Nenhum deles ousou reclamar — poderia ser muito, muito pior se ela estivesse disposta a machucar de verdade, como bem sabiam, então se contentaram em voltar sua atenção aos livros. Satisfeita, a garota ateniense voltou a rondar o grupo, a percepção sobre ela oscilando entre um carrasco aos burros e um anjo aos inteligentes. Podia ver, em especial, nos olhos desesperados de Koyo e Tatsuyu como eles estavam ferrados para passarem naquelas disciplinas teóricas demais para a cabeça avoada deles.

Uma outra aproximação que chamou a atenção da princesa, uma vez que estava acontecendo bem debaixo do seu nariz.

— Ei, Mizuchiko. O que significa este provérbio de Genten? — Yoko, com a voz neutra, cutucou o colega para tirar uma dúvida. 

Shuyu não hesitou em aproximar a cabeça para perto dela. Apesar da total falta de reação visual por parte da princesa, Ichika, o outro observador, sentiu uma oscilação num canto especificamente relevante na aura dela. Só ele poderia perceber aquilo, deixando a situação bem mais divertida de acompanhar.

— Oh, este? — O dedo dele caminhou para perto do dela. — “Quando as pétalas pousarem no lago espelhado, o destino há de refletir se prossegue ou reverbera”, esse eu já estudei! Youzaki me mostrou uns bons anos atrás.

— Vejo que teve bons professores, mas reforçarei minha pergunta. Conseguirias me dizer a interpretação?

— Dizem as lendas antigas que foi uma pétala de cerejeira quem fez Izanagi ver o reflexo do cadáver de Izanami no Lago Espelhado do Submundo — respondeu o príncipe, entusiasmado. — Isso destruiu de vez o espírito de Izanami e a converteu em uma Maldição. Por isso, as flores de cerejeira são consideradas os símbolos de um futuro em mutação em Genten.

— Vosso conhecimento sempre está afiado como navalha, Alteza Mizuchiko. Agradeço sua ajuda.

— Disponha, Alteza Kan’uchi.

Hesitação pairou entre eles. As mãos estavam tão próximas, era só fingirem que foi sem querer e poderiam tocar-se discretamente… Isto é, se um vendaval — ou tsunami, para ser coerente — não tivesse aparecido logo atrás da princesa de cabelos de pôr-do-sol, envolvendo-a com seus braços.

O elemento do caos, tão conhecido de Yoko, utilizou suas íris safira para encarar, uma a uma, as expressões intrigadas dos colegas. O que uma desconhecida fazia abraçando a mais reclusa das herdeiras de maneira tão familiar? Os menos sabidos consideravam aquela atitude quase uma heresia à divindade encarnada na figura esguia da Kan’uchi, e a esperavam descarregar sua punição sobre a pecadora..

O que ocorreu, porém, foi um afastamento rápido e sutil de Shuyu e Yoko, bem como um suspiro cansado algo por parte desta. O aroma de xampu infantil de morango era característico demais para ser de outra pessoa naquela academia.

— Querida prima, o que fazes aqui, ignorando não só as normas de convívio social mas também a ética imposta sobre nossa casa?

— Baixa a bolinha, Yoyo! — retrucou a jovem de cabelos castanhos, abraçando-a com mais força. — Aqui, sou sua veterana. Não precisa fingir igual nas festas de família.

— Não finjo nada, Shino. Estou reforçando — pontuou a mais jovem — que não se deve agir com tamanha indecência em público. É um desrespeito ao clã Kan’uchi.

— Bem que disse que Sua Alteza era uma flor repleta de espinhos, não, Shino?

— O quê?

Os demais novatos temeram por suas vidas diante da liberação furiosa de mana vinda de Yoko. Ela estava pronta para explodir a qualquer instante. A figura enorme e parruda, responsável pelo comentário anterior, se pôs a rir escandalosamente pela expressão dela, entre o bom humor e o total descuido. 

— Não é a ofensa que Vossa Alteza acredita ser, Kan’uchi — desculpou-se antes de acenar aos demais com as mãos enormes. — Kousei Ketsukai, príncipe de Tellus e Quarta Cadeira de Palas, é um prazer!

Assim como a colega, o herdeiro tinha belos olhos azuis e cabelos castanhos, ainda que em tons mais foscos que o dela. Poderiam se passar por irmãos com enorme tranquilidade se tentassem de fato. Algo na aura deles criava esta sensação de conforto e gentileza.

Para a grande maioria, claro, pois Hanako só faltou sair correndo ao ver a figura do príncipe herdeiro do país vizinho à Harenaris. O rapaz não pareceu se ofender — assim que percebeu o receio da ruiva, pôs-se a acenar para ela simpaticamente, na esperança de acalmar a situação.

A faeri tentou não tremer ao retribuir, falhando com enorme elegância.

O porte grandioso de Kousei havia tampado outros dois membros de serem percebidos pelo grupo de estudos de Reiko. Foi Shuyu e sua percepção aguçada quem os sentiu primeiro, o que deve ter acendido um sinal de alerta na cabeça de Shino à “indecência social” mencionada por sua parente. A Guardiã de Susanoo limpou a garganta antes de seguir com a apresentação do pálido e do moreno escanteados da conversa.

— Aproveitando que o Kousei tem bem menos rigidez que minha priminha… prazer, Shino Einatsu! E esses dois são… — Os uniformes dos garotos foram puxados pelas golas. — Naochi, que vocês já devem conhecer, e o Shiki! Ele acabou de se eleger como Quinta Cadeira, então não tivemos tem…

— Não precisa comer minha apresentação, Shino.

— Força do hábito, foi mal, Shiki! É que você é tão antipático…

— Sadismo é bem diferente de antipatia!

— Os dois afastam as pessoas!

Ver alguém admitir um traço tido como maldoso ou pervertido em público trouxe uma interrogação a todos quanto ao tipo de pessoa que seria o tal Shiki. Reiko havia escutado nos últimos dias que a votação para uma nova Cadeira teria ocorrido às pressas, em função da renúncia súbita do Quinta Cadeira anterior e príncipe de Camelot, Taniko Kyotake. Os motivos eram desconhecidos para todos fora do Esquadrão das Montanhas, e nenhum dos colegas de equipe do monarca estava disposto a nomeá-los.

As consequências desta situação, por outro lado, foram amplamente percebidas — pela primeira vez em algum tempo, cada Esquadrão possui sua própria Cadeira, reacendendo a rivalidade  entre as facções dentro da Academia. Professores e veteranos buscavam os novos talentos e os avaliavam com rigor extensivo, quase como um teste prévio ao recrutamento que aconteceria em alguns meses.

Pelo visto, Shiki Taiyo, aquele jovem alto, de pele escura e sobrancelhas grossas, não estava interessado em nenhuma das implicações concedidas pelo posto de Quinta Cadeira, como podia ser percebido pela expressão de desconforto em ver Shino dizer as muitas coisas que ele deveria ou não fazer enquanto no cargo. Pela maneira que bagunçava os cabelos roxos desgrenhados em irritação, não se importava com a opinião de ninguém mesmo.

— Ô mulher chata.

— Você quer apanhar? — urrou Shino, katana em mãos.

— Quero só lutar com o teu namorado mesmo, por isso aceitei esse cargo. — Sem motivo aparente, as íris vermelho-geleia recaíram sobre Togami e Akane, que cochichavam entre si. — Ei, vocês dois. São Guardiões de quais deidades? Foi só olhar para vocês que senti uma vontade absurda de sair no soco, igualzinha quando falo com a General Midorima ou com o General Torajin.

— Shiki… francamente, como você é imaturo! — Em silêncio até então, Naochi intercedeu por eles. — Pergunte ao menos os nomes deles, por favor! Ah, e que surpresa é te ver por aqui, Alteza!

Zuko gemeu ao ser percebido pelo conterrâneo. Se havia algo que não estava com paciência naquele período conturbado e puxado de provas era dialogar com o aluno favorito de sua mãe. Estar em um ambiente e interagir com outras pessoas sem ser um campo de batalha era nauseante o suficiente por si só para sua baixa bateria social. “Que tal só cumprimentar e seguir a vida?”, escutou Diarmid recomendar dentro de sua cabeça.

— Não tenho nada a conversar, Shogi.

— Vejo que continua a mesma criança solitária de sempre… — provocou, risonho, o loiro ao observar Akashi e Keiko sentados ao seu lado. — Ou talvez nem tanto assim. Qual deles que te arrastou pra cá?

— Não enche.

— Vamos baixar os ânimos, queridos colegas! — sugeriu Kousei, com sua aura verde-lima irradiando pelo ambiente. — Peço desculpas pela nossa intromissão conturbada, mas apenas queremos nos juntar a vocês. Estive observando Vossa Alteza Chiwa há algum tempo.

— E-Eu?! — gaguejou Reiko.

— Sim, senhorita. Fiquei admirado com vosso conhecimento e sugeri que participássemos de sua sessão. — O príncipe curvou-se em uma mesura respeitosa, tirando uma rosa do bolso. — Isto, claro, se nos permitirem.

— Claro, claro, fiquem à vontade! Vocês têm os livros de vocês por aí pra eu dar uma lida?

— Com certeza, estamos prontos para o que for possível. Contamos com você.

Os veteranos acomodaram-se com cadeiras trazidas por eles àquele ponto da biblioteca, no aguardo das orientações e comentários de uma Reiko ocupada em escanear como uma genuína arquivista os materiais concedidos. Apesar do clima agradável e um tanto caótico na mesa, todos ali sentiam-se bem privilegiados em criar contato com uma casta tão superior como os Cadeiras.

Apenas um certo casal tinha uma opinião divergente — olharam-se no intuito de confirmarem que pensavam a mesma coisa, e não foram surpreendidos por de fato ter ocorrido. Shuyu teve de segurar a risada ao traduzir o pensamento refletido nas íris douradas de sua namorada.

“Como a Chiwa é fácil de enganar.”

 

 

7 de Março de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Parque Central da Plaza Leste

 

— Cara… como é bom poder descansar um pouco!

— É só a primeira semana de provas, Tatsu. Vão ter pelo menos mais 100 dessas.

— Você precisa mesmo dizer isso, Haru?

A risada da maior parte dos presentes, sentados sobre uma toalha de piquenique, soou pela ampla praça em uníssono, colocando até o próprio Fukushu em gargalhada. 

Dos quatro cantos da grande capital dos Guardiões, a Plaza Leste era a mais arborizada delas, com espaço mais que suficiente para dezenas de toalhas e mesas estarem montadas naquele início de tarde de domingo sem atrapalharem umas às outras. Sobre a larga área pertencente ao grupo de novatos, uma variedade impressionante de comidas e bebidas, algumas feitas por eles e outras compradas por Hanako e Yoko, os deliciava com uma merecida recompensa após o tamanho estresse dos últimos dias.

Sem um pingo de dúvida, o mais feliz dentre os dezesseis só poderia ser Tatsuyu, cujo sorriso de orelha a orelha era contagiante de uma maneira que tanto Haruhi quando Hanako não eram capazes de explicar. Ele comia e conversava com empolgação, dividido entre qual o próximo salgado caro trazido pelas princesas que iria comer, ao mesmo tempo que era repreendido por Heishi e Shuyu por parecer um “cão esfomeado”.

— Vai ficar só olhando até quando, loirinha? — sussurrou Togami, pouco depois de cutucar a lateral da Guardiã da Medusa. — Se secar ele por mais um minuto, eu vou lá contar seu segredo pra ele.

— Você n-não é doido — ameaçou ela, em mesmo volume. — N-Não sei o que falar!

— Haja naturalmente, caramba! Nem parece que tu conhece ele há meia década!

— Do que estão falando, meus lindos? 

Concentrados em não serem percebidos pelo objeto de conversa, não repararam na aproximação súbita de Ichika e seus atentos ouvidos de fofoqueiro. “Não dá pra fingir que ele não ouviu, merda”, deduziu o baixinho, um tanto frustrado por sua incompetência — buscou a orientação da “companheira de missão”, mas esta estava tão corada que parecia próxima da ebulição. Ele quem teria de assumir as rédeas e evitar uma catástrofe.

— E-Era sobre a questão que a p-professora Youju colocou sobre os Generais! — Felizmente, a memória de Togami achou uma saída. — Falei que a H-Haru poderia falar que conhece ele há meia década ou coisa assim…

— Mas eu nunca te contei que conheço o senhor Houseki há meia déc…

A encarada mortal de Togami a calou antes que pudesse complicar ainda mais a situação, engolindo em seco antes de acenar com a cabeça repetidas vezes. Uma mentira idiota e estúpida não seria engolida por alguém observador como o nobre intrometido, sabiam disto. Para a sorte deles, Ichika nada adicionou, suspirando um baixo “Ah, então era só isso” e partindo para provocar sua próxima vítima. 

Akane notou, pelo canto do olho, a maneira que o pé de Togami acertou a canela exposta de Haru com força, bem como a boca dela abrir e fechar em uma expressão de dor silenciosa. Não seria ela quem iria se voluntariar e perguntar o que houve, então voltou seu foco para a ruiva ao seu lado, ocupada com devorar os doces e admirar um certo moreno de olhos vermelhos.

A força do magnetismo entre o rosto de Tatsuyu e as íris âmbar de Hanako era gigante. Por muitas vezes ao longo de fevereiro, percebeu o olhar da princesa das fadas desviar-se conforme os movimentos dele: não sabia como abordar o assunto. “É só pensar com naturalidade!” 

— Hana, você gosta do Fukushu, né? — De repente, a princesa das fadas começou a tossir e Yamazaki se arrependeu de sua pergunta. — Desculpa! Fui direta demais!

— T-Tudo… bem — acalmou-a Hanako, ainda sem ar. — É-É-É tão n-na cara assim?

A leonina acenou com a cabeça, para o desespero da faeri. Titania tinha razão: desde que admitiu seus sentimentos, conter a ânsia de demonstrar aquilo em seu peito transformou-se em uma verdadeira tortura. Analisar cada detalhe do rosto dele, pensar nele quando descansava ou sentir seu coração fisgar quando alguma outra garota se aproximava dele — situações que nunca havia passado antes, novas e intensas, e que eram parte da experiência romântica de Hanako.

Ciente do desconforto da colega e preocupada com isto se tornar um problema, Akane pensou rápido no que mais poderia dizer a ela. Poucos segundos foram precisos para isso, felizmente.

— M-Mudando de assunto! — gaguejou pelo nervosismo. — Sei que foi uma péssima hora pra começar, mas o que achou do seu primeiro treino com o professor Onishi? Ele parecia bem feliz em te ver por lá.

— Eu gostei. Bastante, para ser sincera. — Hanako deu mais um gole em seu copo de suco. — Agradeço por vocês terem me recebido tão bem. Estava receosa por ter sido convidada tardiamente ao grupo.

— O Togami é muito espontâneo, te garanto que talvez ele nem tenha percebido que te ajudou — riu Yamazaki, mão à boca para conter-se um pouco. — Ele é assim mesmo, mas que bom que ajudou!

— Vi que ele praticamente te elegeu como dupla fixa dele.

— Nossos poderes são muito similares e tem algo dentro da gente que faz a gente se conectar muito bem… Só não sei o que seria.

Akane ponderou mais um pouco em silêncio, observada com atenção pelos olhos de Koufuku. O garoto de cabelos em degradê não era a única pessoa com a qual passava por algo assim — Akashi e, mais recentemente, Shiki também despertavam sensações similares nela. Quando perguntada, durante um dos jantares no apartamento 522, Haruhi lhe disse passar algo idêntico com Reiko, e Medusa as interrompeu para constatar ser uma particularidade às deidades envolvidas. 

Embora tivessem lhe insistido para abrir mais detalhes, a górgona apenas desfez sua projeção e voltou à hibernação. Pelo visto, certos assuntos deveriam permanecer ocultos, ao menos por ora.

— Ainda temos muito a explorar de Palas! Já estamos há um mês aqui e sinto que não explorei nem dez por cento do que é possível! — Foi a vez de Keiko jogar o corpo contra a relva de fora da toalha. — Alguém vai precisar me fazer um roteiro de campo…

— Eu topo, Kei! — gracejou Akashi, radiante. — Só precisa me pagar um chocolate depois, pode ser?

— Pra ontem! Obrigado, Aka!

Ayame cutucou Kyorai e Koyo, os dois mais próximos de si. Ambos ergueram o foco de seus pratos para ela, esperando o próximo comentário dela sem muito interesse em suas faces. “Eu sinto um climinha se formando”, era o que comunicava o traiçoeiro sorriso dela, ao qual os dois harenarianos não sabiam como reagir.

— O Akashi gosta da Keiko. Eu tenho certeza!

— Ele fica mesmo estranho quando eu comento sobre a Shikiba… — divagou o mais alto deles, atento aos movimentos e palavras do casal em questão. — Não sei do ponto de vista dela pra dizer algo.

— Sério? E tu, Kyo, viu algo? Diz que sim, eu quero muito saber!

— Ah… acho que não? — A cabeça dela se pendurou para o lado. — Ela fala com todo mundo. 

— Não tô falando de conversar com todo mundo, quero dizer se ela parece interessada nele! — reforçou Ayame. Ela colocou a mão sobre a boca, receosa de ter falado muito alto. — A Keiko sempre parece muito genuína, ela não escondeu nadinha dos problemas dela até agora.

Em sua análise pessoal e bem… desconexa da realidade, sendo honesta, Kyorai não fazia a menor ideia do que a colega de sala queria implicar. Romance há muito não lhe era um assunto cogitado — tinha complicações maiores para lidar em seu dia a dia ao invés de pensar em relações emocionais complexas. Somado ao seu gigantesco receio com homens, era eufemismo chamar sua situação amorosa de desinteressante.

Logo, quando era exposta ao enorme turbilhão de sentimentos naquele ambiente adolescente e cheio de hormônios, sentia-se deslocada. Ayame e Haruhi, as únicas que poderia chamar de fato de “amigas”, tinham suas próprias paixões, muito mais fortes e antigas do que a amizade entre elas três, e isto era algo contra a qual ela não poderia lutar. 

— Você deveria admitir que isto te incomoda, Kyo.

— Para afastar as duas? Não, Ártemis, obrigado — sibilou a menina, arisca como sempre. — Prefiro me manter em silêncio sobre minhas emoções. Elas não importam pro objetivo final.

— Queria que você deixasse de ser tão negligente com sua parte humana, minha pequena… — Pesar preencheu as palavras da deusa da caça. — Nada posso fazer se escolheu renegar a lua para abraçar a noite. Fique ciente, porém, que não foi para isso que lhe escolhi, e acredito fielmente que um dia enxer…

A voz melodiosa da deidade foi silenciada por vontade de seu receptáculo. A retaliação veio à galope — sentiu sua mana efervescer dentro de seu corpo, como se lutasse contra a parte teimosa de sua alma atormentada. Ártemis podia ser compassiva, mas não era tola ou leniente daquela forma. Disto, estava ciente até demais, depois de todos aqueles anos em que estavam juntas. 

O silêncio abrupto de Kyorai foi interpretado por Ayame como um pedido para mudarem o tópico. A julgar pelo olhar distante de Koyo, ele também estava bem fora de sua zona de conforto, então não havia motivos para continuarem. Restou para a Guardiã de Eolo suspirar de frustração antes de virar um copo inteiro de suco. Seus instintos diziam que alguém a estava observando.

Heishi foi mais rápido do que ela, no segundo seguinte fingindo estar entretido com alguma conversa aleatória com Shuyu. Desde os eventos com a garota de vento, as íris esmeraldinas do príncipe estavam mais perfurantes quando se direcionavam a ele, embora ainda buscasse entender o sentido por trás de tal comportamento. 

Nada estava errado. Ao menos, não com ele.

“Tenho que deixar o Shu tranquilo”, determinou ao abrir seu sorriso mais galante. Para o herdeiro, um sinal claro de mau agouro.

— Shu, eu já te disse uma vez que a Ayame é uma gata… 

“De novo essa porra?”

— Mas vou te falar que agora sim eu acho que tô no paraíso. Não tem uma feia nesse grupo!

— Muito me impressiona nenhuma delas, tirando a Haru, ainda não ter jogado sua cara contra uma parede.

— Ah, qual é, eu sou maravilhoso quando quero ser! — Um cristal de gelo formou-se sobre a palma do moreno. — Talvez até as princesas gatinhas me dariam uma chance com as palavras certas.

— Gosto de como você não perde a confiança nem depois do seu término — cutucou Shuyu, de propósito.

— “Término” não. Remanejo estratégico. — O garoto dragão tinha certeza de que seus olhos não voltariam para o lugar de tão forte que os revirou. — E já estou com outra pra jogar um ciuminho. Meu plano é muito mais ganancioso do que você imagina, meu mano.

— Me diz qual o seu objetivo final pra eu me preparar pra rir disso de u…

— A princesa Kan’uchi. — A expressão calma de Shuyu se fechou de súbito. — Pensa numa gostosa! Aqueles pernões, o cabelo bem cuidado, a pose de nobre perfeita… nossa, uma baita de uma mu…

O som nítido, alto e estrondoso da mão direita do príncipe dos dragões se conectando à lateral esquerda do rosto de Heishi assustou todos os colegas ao redor. Ninguém mais mastigava ou sequer se movia  — estavam total e completamente atordoados do porquê a aura arroxeada do herdeiro de Yggdrasil vazava com tanta ira contra seu companheiro de quarto e amigo.

Mais confuso do que todos os outros juntos era a vítima de seu golpe, que massageava com seus poderes o local para amenizar a dor. Algo assim, ainda mais depois de soltar tamanha atrocidade, seria “comum” vindo de Haruhi ou mesmo de Tatsuyu. 

De Shuyu, não.

— Mano… o que deu em você? — Togami foi o primeiro a quebrar o clima e se aproximar. — Nem eu daria uma dessa nele.

— Eu… sei lá.

Sua resposta foi vaga, incoerente com a personalidade decidida habitual. Mizuchiko, uma figura política tão centrada, perdendo o controle para uma provocação qualquer de Heishi? Perguntavam-se qual o assunto para trazer à tona as garras afiadas do dragão, ao ponto de desferir um soco de tamanha potência.

Uma parcela dos espectadores sabia a possível razão. As intenções femininas de Reiko e Ayame atraíram-nas uma para a outra, conversando telepaticamente sobre o dilema. Para esta, a irritação de Shuyu era um mau agouro, uma pequena demonstração do quanto Yoko representava para ele; para aquela, era motivo mais que suficiente para surtar de euforia com o casal ao vivo. 

Antes que a Guardiã de Atena pudesse dar com a língua entre os dentes, Hanako tapou sua boca por precaução. A garota de cabelos castanhos debatia-se com raiva, suas palavras ofensivas contra a melhor amiga sendo abafadas para só ela entender. O olhar de Hanako buscou Shuyu e, em sequência, Yoko, a causa de tudo aquilo.

“Segredo mantido”, tentava dizer a eles com sua piscadela nem um pouco natural. Yoko sentiu seu interior se aquecer pelo gesto de sua colega — tinha que agradecê-la mais tarde por impedir uma catástrofe política. O namorado pareceu entender também, acenando para a princesa das fadas e estendendo a mão a Heishi.

— Foi mal. Perdi a cabeça.

— Eu não faço a menor ideia do que pode ter te irritado tanto, mas relaxa, nem doeu — garantiu o moreno.

Uma mentira deslavada, dado que seu sorriso estava torto. Heishi compreendeu sim alguma coisa, embora não pudesse provar. “E tu não se sente nem um pouco culpado por isso, garoto?”, provocou a voz grossa de Nidhogg. Shuyu riu, tanto para o Dragão da Árvore dos Nove Mundos quanto para a tentativa chula de seu amigo de parecer descolado na frente das meninas.

— Claro que não.

— Tá falando com quem?

— Sozinho, fica tranquilo.

 

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