Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 2

Capítulo 34.2: Segredos e verdades de uma tarde de domingo

“Calma, calma, calma, Hanako! Não surte, não surte de maneira alguma! Como eu te detesto, Rei, mas também obrigada!”

— Minha flor, você poderia controlar seu fluxo de pensamento? Está meio complicado apreciar meu chá.

— Não tenho como, Titania!

A mente de Hanako era um retrato de sua perturbação atual. Bem, “perturbada” talvez não fosse a palavra adequada para definir a garota com o rosto pintado de um tom pouco mais suave que a cor de seus cabelos ruivos. Seu olhar alternava entre suas sapatilhas azul-bebê e as costas largas do garoto de cabelos negros caminhando à sua frente. Diversas pessoas ao redor deles faziam comentários sobre a “bela dama” que acompanhava o “garoto com cara de morto”. 

Ou seja, eles.

Ela deveria ter suspeitado de algo quando Reiko se elegeu para montar as duplas, e agora estava naquela posição tímida e um tanto vergonhosa. Não que estivesse desajeitada — sua maquiagem era impecável, os cachos vermelhos estavam bem arrumados sob a tiara e, com a ajuda de Yoko no dia anterior, o vestido branco fazia jus à sua silhueta exuberante. O problema da garota era muito mais psicológico do que físico, envolvendo os sentimentos confusos em seu coração. 

A admiração por Tatsuyu era mesmo amor? Ou estaria Reiko errada sobre isso? A cada segundo na presença dele, esta emoção engarrafada a deixava mais e mais angustiada com a situação. Pelo visto, ele sentira sua hesitação.

— Hanako? Me escutou? 

— O-Oi! Perdão, me distrai com… ah, a lista — justificou-se, de volta ao plano material. — É um pouco vergonhoso admitir, mas não sei nem por onde começar a procurar esses produtos, muito menos como escolhê-los.

— Isso é normal — o rapaz a confortou. — Eu demorei uns bons anos com a Haru me ensinando até ser capaz de fazer compras sozinho.

— O senhor morou sozinho por muito tempo?

Mais uma vez, a pergunta dela saiu antes de conseguir controlar sua língua. Como poderia evitar de questionar, com  a curiosidade crescente se fixando em seu interior? Hanako não contou nem mesmo para Reiko o quanto pensou nele durante os três meses que se viram, embora muito pouco de fato soubesse sobre o passado de Fukushu. As cartas de Shuyu sobre o assunto limitaram-se a falar da relação entre os dois órfãos de Paxtoria e as descobertas sobre o autor de tal tragédia, então estava no escuro quanto ao garoto por si só.

Tatsuyu, que adequou o ritmo de caminhada ao dela, a encarou por alguns segundos após a pergunta. A expressão facial neutra a enervou, teria sido indelicada? Com os olhos rubi semicerrados daquela maneira, mil e uma possibilidades construíam-se no imaginário trágico da doce princesa. De repente, os músculos da face dele descongelaram, em um sorriso sem graça.

— Uns 4 anos, dos onze até agora. — A surpresa de Hanako frente ao fato foi bem clara. — M-Mas foi por opção! Os pais do Heishi e o tio Fuyu me ofereceram várias vezes pra morar com um deles, mas eu não me sentia bem em abusar da boa vontade deles, então eles dividiram o valor e me alugaram o apartamento que eu morava.

— Você era uma criança! Isto é inconcebível!

— Eu teimei bastante. E eles ajudavam com as contas e compras até os meus treze anos. Cozinhar eu aprendi ainda com a minha mãe — defendeu o menino. — Também foi o tio Fuyu que ajudou com o direito de herança do homem que me acolheu quando… uh, bem, eu perdi meus pais. Ainda tenho pesadelos com aquele dia.

Com suavidade, ele expôs o ombro direito para revelar a cicatriz circular oculta sob a camiseta preta e acariciou a região. Um ar de melancolia e saudade o envolveu, como se tivesse sido enviado a um momento distante no passado. Mesmo sem motivo aparente, Hanako cerrou os dentes com força.

— Eu não poderia ser mais grato a eles do que isso — continuou o rapaz — e por isso prometi dar meu melhor. É por eles também. 

Aquela conversa progrediu mais rápido que o esperado pela nobre, de um instante para outro sobrecarregada de informações novas para digerir. Não conseguia pensar numa resposta adequada ao exposto por ele. Era capaz apenas de apertar a barra do vestido branco e se sentir frustrada consigo mesma — suas bochechas logo estavam molhadas pelas lágrimas, para o desespero de sua dupla.

— H-Hanako? Por que está chorando? — questionou Tatsuyu, se aproximando dela sem tocar. — Falei alguma co…

— É tão injusto! Você não merecia nada disso, Tatsu! 

A garota nem percebeu que usou o apelido dado por Haruhi ao invés do nome dele, tamanho era o desconforto em seu emocional. Como Reiko bem disse uma vez, Hanako tendia a ser empática até demais mesmo com pessoas desconhecidas. Não era a primeira vez dela chorando pelas dores de outrem.

Contudo, para Tatsuyu, ver alguém que não Heishi ou Haruhi debulhar-se em lágrimas por ele era uma experiência nunca antes presenciada. Sua condição particular não o permitiu ter muitas amizades significativas ao longo da vida, sendo poucas as vezes em que teve a oportunidade de dividir sua trágica história. E, em nenhuma delas, a reação havia sido tão espontânea quanto a da princesa das fadas.

Um sorriso sincero brotou nos lábios dele e, do bolso traseiro, ofertou um lenço vermelho à garota. O gesto cavalheiro a fez corar um pouco mais, se é que isto era possível. 

— Ninguém merece algo assim — concordou, observando-a limpar o rosto com o tecido. — Obrigado pelas palavras. E desculpa borrar sua maquiagem.

— E-E-Está borrada? — Um espelho de mão surgiu na palma desocupada de Hanako. — Estou horrível! Desculpe pela vergonha que devo estar te fazendo passar, Tatsuyu.

— Você sempre está linda, Hanako! — discordou com uma risada. — Deveria ter mais confiança. Todos vivem olhando para você, não importa o lugar que vamos.

— N-N-Não é b-bem assim! A R-Rei diz a mesma coisa! 

— Se até ela concorda, então acho que deveria escutá-la. Racionalidade é o forte dela, pelo que ouvi do Togami.

A aura alaranjada da nobre a encobriu por conta do sentimento ardente descontrolar seu fluxo de mana. Percebendo não ter saída fácil, optou por relembrar o motivo principal da saída deles naquele dia. Tinham de ser rápidos, a primeira semana do mês era sempre a mais usual para as mercadorias boas se esgotarem — ao menos, era o que escutou dos serviçais do Palácio de Forestrie a vida inteira. Seu colega notou a tentativa de desviar o foco do assunto.

— Ela é bem teimosa, hein? — comentou Hefesto, se manifestando no subconsciente do rapaz. — Belo achado, Tatsu.

— Qualquer dia desses, posso cozinhar para você? — A fala do deus da forja foi ignorada sem escrúpulos.

— P-Por quê?

— Assim como você discorda da sua beleza, eu discordo que minha comida seja tão boa quanto o Heishi ou a Haru falam. Quero provar que estão errados!

— Que linha c-curiosa de raciocínio a sua — brincou a princesa, bem mais à vontade com ele. —  Estou de acordo. Já tem em mente o que fará, para comprarmos os ingredientes? 

— Tenho sim. Vou aproveitar e te mostrar como escolho as verduras.

— Será uma honra lhe acompanhar.

Lado a lado, seguiram pelas ruas repletas de pessoas, alheias à doce amizade florescendo entre aqueles dois.

 

 

Mais um suspiro pesado escapuliu da boca de Reiko, que, a esse ponto, questionava-se o motivo de ter colocado a si mesma na situação atual. Deveria ter dado mais valor às palavras de Ayame, assim não teria feito a burrice de se eleger como dupla do garoto de cabelos negros e personalidade desagradável ao qual fazia companhia. 

Arrastada por ele, estavam “escondidos” atrás de uma das muitas barracas da região, acompanhando à distância cada movimento de uma garota de cabelos azul-gelo e outro de cabelos esverdeados. A julgar pelas partículas de cristal ao redor e pelo olhar faiscante no rosto de Heishi, intensificados toda vez que Ayame soltava uma gargalhada para Akashi, a herdeira de Sophis só tinha uma hipótese sobre o que estava acontecendo.

— Você é um stalker ridículo, Reiketsu.

— Quê?

— Eu gaguejei? Você é um obcecado patético — repetiu Chiwa, sem hesitar. — Fala sério, parece uma criança que gosta de outra tentando se aproximar. E de uma que não gosta nem do que você fala.

— E-Eu não gosto da Ayame! Só estou deixando eles irem na frente pra… ah… achar o caminho! Isso, achar o caminho pra loja de temperos. O nariz enorme dela é bem melhor que o meu.

A Guardiã de Atena o olhou com descrença e sarcasmo. Havia mapeado o comportamento do rapaz ao longo desta primeira semana, em especial a diferença de tratamento de Ayame para os demais. O humor ácido, as falas desrespeitosas e arrogância sem fim pareciam se atenuar ao direcionar suas palavras para Tengoku, substituídas por uma vontade incessante de provocar uma briga por qualquer motivo que fosse. Um modo bem infantil de chamar atenção, se a ela questionassem.

A curiosidade natural da família Chiwa a fazia questionar o âmago de seu novo colega de classe e sua obsessão doentia com Ayame. Não demonstrava intenções malignas contra a Guardiã de Eolo — era uma espécie de admiração e desejo de ser notado, mas tinha dúvidas se poderia ser considerado paixão quando Heishi havia arranjado uma garota em menos de quatro dias do início do semestre. Ele era uma pessoa que não merecia um pingo sequer da presença agradável de Ayame.

No tempo seguindo a dupla, uma outra pessoa, trajada com um conjunto pesado demais para uma tarde de verão, fora percebida pelo olhar atento e memória perfeita de Reiko. Os cabelos castanhos apareciam na área descoberta e seus olhos, ainda que ocultos por óculos escuros, claramente estavam na direção de Ayame. A princesa alertou seu companheiro quanto ao homem suspeito com um cutucão de leve em sua lateral.

A magia de Heishi não tardou a disparar contra o desconhecido. O rosto dele permaneceu imóvel mesmo quando os espinhos de gelo estavam a poucos metros de atingi-lo, apenas para serem bloqueados por uma barreira d’água surgida do mais absoluta nada. Só então a presença de Heishi e Reiko foi reconhecida por ele.

— Eu lembro de você. — A voz de repente soou atrás deles, que se afastaram em um salto. Antes que pudessem gritar, ele colocou o indicador sobre a boca. — Xiu, sem escândalo! Se a Aya me ver aqui, ela vai ficar uns 2 meses sem falar comigo!

— Er… Senhor Houseki? 

— Professor Houseki?

Com ele mais perto, Reiko notou os olhos verde-floresta parcialmente expostos. A magia d’água, junto do apelido íntimo de Ayame, era também um forte indício da identidade do homem ser, de fato, Keishi Houseki, o pai adotivo de Ayame e General do Esquadrão das Montanhas. A questão principal, claro, não era só quem, mas o que fazia ali, imitando o comportamento esquisito de Heishi.

A Besta Blindada ligou os pontos com grande velocidade, sua expressão preocupada transformando-se em algo intimidador. E, para o azar de Heishi, o alvo era ele.

— Você por acaso tá secando a minha filha, Reiketsu? — A aura cor de jade dele preencheu o ar ao redor dele e do garoto. O punho bem fechado contrastava com o sorriso amarelo no rosto do homem. — Vou ser obrigado a acabar com a tua raça num duelo, não dá pra esperar até o recrutamento.

— R-Recrutamento? Ah, claro que não tava atrás da Tengoku, professor! A gente tá todo mundo junto! — Era uma meia-verdade. — Né, Reiko? 

— Sim, senhor. Acabamos ficando para trás porque parei para ver algumas frutas — concordou ela. Tudo para evitar uma visita não intencional à enfermaria. 

A suspeição de Keishi não diminuiu, apesar da explicação válida de Reiko. Qualquer outra pergunta do militar teria que ficar para depois, pois uma série de lâminas de vento cortaram o ar na direção dele — uma a uma, o escudo de bordas azuladas conjurado em suas mãos defletiu todos os ataques, os neutralizando por completo. As passadas rápidas fizeram o Guardião temer por sua vida.

— Keishi! — chamou uma Ayame furiosa. — Que porra tu tá fazendo aqui?

— Oi, querida! Eu estava só convidando seus cole…

— Não vem com essa mentirinha, não! — O corte foi seco. — Olha tuas roupas, tenho cara de tonta por acaso? 

Enquanto pai e filha tinham sua discussão à parte, Heishi esgueirou-se para fora do fogo cruzado entre eles, temendo por sua vida. Pelo canto do olho, percebeu Akashi o chamando com a mão, como se fosse lhe contar um segredo; curioso, acatou o pedido. 

— Eu já sabia que cê tava seguindo a gente.

— O quê?

— Desde o começo — reforçou Akashi — mas relaxa, não vou contar pra Ayame. Torça pra ela não ter notado.

Se arrependimento matasse, ele estaria se enterrando ali mesmo.

 

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