Volume 2
Capítulo 34.1: Segredos e verdades de uma tarde de domingo
7 de Fevereiro de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Plaza Oeste
Diferente dos primeiros dias na cidade, as ruas de Palas apinhavam-se de gente no primeiro final de semana após o fim do período de recesso. Grupos de adolescentes, casais e famílias espalhavam-se pelas muitas lojas da região, fosse por necessidade ou para comprarem futilidades para os próximos dias. Não muito diferente dos quatro garotos sentados em um banco de madeira, num canto menos movimentado da Plaza Oeste. Se não fossem suas auras destoantes do padrão, seriam confundidos com facilidade pelas roupas casuais e comportamento despojado.
Shuyu, com seu cabelo comumente bagunçado, admirava a diversidade dos produtos, distraído; Togami e Tatsuyu conversavam sobre a lista entregue por Yoko no dia anterior, entre críticas à falta de noção nas quantidades dos itens e elogios à letra agora impecável da princesa. Nenhum deles, contudo, dava a devida atenção ao bater repetitivo e às bufadas audíveis de um certo moreno de cara emburrada.
— Caralho, mas que demora é essa? — praguejou Heishi, com um grito que atraiu a atenção dos demais para si. — A gente chegou no horário e ainda fomos os primeiros!
— Bem, a Haru sempre demorou mais pra se arrumar, então eu não acho que seja exatamente surpresa. — O olhar fulminante passou a estar sobre Tatsuyu, que engoliu em seco. — Claro, elas ainda estão erradas, mas também podem ter se perdido.
— Não é você que gosta de olhar mulher bonita, Heishi? — provocou Shuyu — Então, pra elas estarem bonitas, não é só acordar e dar uma mexida no cabelo.
— Alteza, com o perdão da palavra… — “Lá vem”, pensaram os três outros. — mas o que você quer dizer?
— Quer dizer que o seu cabelo está sempre bagunçado para um cacete, animal.
O sibilar de serpentes, quase como uma risada, clarificou para o galã de gelo quem tinha a ousadia de ofendê-lo de maneira tão explícita. Ele, porém, apenas revirou os olhos, acostumado à agressão verbal rotineira de Haruhi, enquanto mexia em seu cabelo para “consertar alguma coisa”.
Atrás da Guardiã da Medusa, trajada em um conjunto de jeans e top azulado, o mesmo grupo de garotas da noite de sexta-feira estava tão bem vestido quanto ela. Saias, conjuntos mais casuais e até mesmo um vestido florido com chapéu de palha — cortesia da figura esbelta de Yoko Kan’uchi — presenteavam os pedestres com um verdadeiro desfile errante pela plaza, guiado por Reiko, Haruhi e Keiko à frente dele. Seria quase uma singular unidade de beleza estonteante, se não fosse um pequeno detalhe.
Uma oitava figura, coberta por uma capa escura com capuz, era arrastada por Akane, seu rosto oculto pela sombra do tecido. Pelo porte pequeno e a forma que se debatia sob o aperto firme da garota leonina, não podia ser mais clara sua identidade.
— Eh… Shikage? — Tatsuyu quem a chamou, confuso. — Por que está usando roupas tão pesadas em pleno verão?
Um sussurro partiu de dentro do abismo do capuz, onde deveria estar o rosto de Kyorai. Haruhi e suas serpentes, apesar da certa distância do ponto de origem, escutaram com perfeição as palavras dela, acenando positivamente a cada frase, como se as estivesse traduzindo dentro da cabeça.
— Ela diz que não gosta de chamar atenção, por isso colocou a capa e vai continuar com ela o caminho inteiro.
— Poxa, a Kyo é tão gata! Ver ela andar por aí num vestido seria uma visão espetacular…
O capuz falou mais alguma coisa, e a Guardiã da Medusa riu com seja lá o que escutou das sombras. Sua face ocultou-se sob a mana esverdeada, contorcendo-se para imitar o rosto sério de Kyorai — antes mesmo da transformação completa na aparência da harenariana, Togami e Shuyu estavam sem ar de tanto gargalhar com a ideia. O golpe derradeiro foi a imitação da voz fina logo em sequência.
— Que nojo, por favor nunca mais repita algo tão nojento ou vou vomitar, nojento, nojento. — Até o movimento das mãos era idêntico ao de Kyorai. O rosto de Haruhi rapidamente voltou ao normal. — Foi o que ela disse. Ah, e que ela não se arrepende de nenhuma palavra.
— Eu tenho certeza que você acrescentou umas cinco ofensas adicionais!
— Quem dera fosse. Eu escutei cada palavra dela — discordou Keiko, também segurando o riso — e só não imitaria melhor porque não consigo mudar de aparência.
— Oh, sua deidade também é de percepção, senhorita Shikiba?
A pergunta de Ayame fez a loira leonina engolir em seco. De novo, sua impulsividade a colocou num lugar complicado. Entre o silêncio cada vez mais suspeito e uma bola fora, preferiria arriscar a saída para manter a identidade distante do conhecimento deles. Quer dizer, longe de qualquer um deles, em especial Akane Yamazaki.
A mera menção à possível deidade de Shikiba fez a garota brilhar com a mesma cor de seus cabelos ruivos, os olhos castanho-escuros transbordando de ansiedade e empolgação. Tal qual uma criança aguardando seu doce favorito, tinha a mais absoluta certeza que a menina surtaria ao escutar a verdade, mesmo no meio de uma praça lotada de pessoas. A repreensão ao comportamento dela não seria capaz de desfazer o estrago que Akane causaria.
— L-Leão de Nemeia. — A aura da Yamazaki oscilou em resposta. — Ele é… bem, como posso dizer… bem sensível? Acho que está certo em falar assim…
— Bem, pra se igualar à capacidade auditiva da Haru… é uma deidade muito forte — comentou Tatsuyu, cruzando os braços.
“Você nem imagina o quanto”, respondeu Keiko dentro de sua cabeça. As palavras há muito ditas por seu pai repetiram-se em seu interior. Aquelas que um dia escutou, sem compreender de verdade seu significado.
“Não ceda ao Lobo. Não escute seu uivo. A arrogância, o ego e a mesquinharia não eram traços do Leão. Deveria portar-se sempre como o verdadeiro governante de Leoni: firme, justa e verdadeira, mas não orgulhosa. A injustiça só seria subjugada por aqueles capazes de cumprirem estes mandamentos.”
Todavia, todas aquelas orientações eram complicadas de serem seguidas quando sua aura oscilava tão fortemente enquanto acordada. Haruhi comentara ao longo dos últimos dias sobre o “estranho silêncio” da mana de Keiko durante o sono — era como o Leão deixasse de rugir para dormir junto de sua mestra, enfim parando a liberação constante de magia.
— Oh, não chegamos tão atrasados assim!
Em sincronia, todos do grande grupo tornaram seus olhares para a voz empolgada vinda do leste. Acenando para eles, o empolgado Ichika saltitava em sua direção, vestido com calças cargo negras e uma camiseta rosa sem estampa, acompanhado por outras três figuras altas. Assim como foi com Kyorai, o grupo estranhou as vestes curiosas daquele que era arrastado pelo pulso por Akashi.
O estalo de língua de Zuko pôde ser ouvido de longe, expressando todo seu descontentamento em pouquíssimos segundos. Shuyu notou a maneira que mexia repetidas vezes na gola da camisa social cinza de mangas compridas, como se tentasse ocultar algo na base de seu pescoço. Pela sua cara fechada e olhos cerrados, havia sido trazido à força até ali por seus colegas de quarto, algo bem incomum ao caráter isolacionista do príncipe bellano. “O senhor Kousho é bem peculiar… que capacidade persuasiva impressionante”, refletiu o herdeiro de Yggdrasil conforme os últimos quatro integrantes se juntavam ao grupo.
— Certo! Temos todo mundo aqui — De praxe, Reiko assumiu a liderança. — Já temos as duplas definidas e os itens que cada um deve procurar. Alguém tem alguma dúvida sobre o que vamos fazer?
— Por que você está no comando se você nunca fez compras?
— Não escutei nada, então vamos nessa! — anunciou Reiko, ignorando a provocação de Heishi mais uma vez.
Uma a uma, as duplas retiraram-se da área para se direcionarem às suas lojas de destino.
Espalhadas pela plaza oeste, os mercados e as barraquinhas de feira estendiam-se por todos os lados, abarrotados por todo tipo de compradores. Apesar da enorme multidão, a atenção de todos era guiada para uma dupla peculiar que, com passadas sincronizadas e postura impecável, gerava um burburinho contagiante entre vendedores e clientes igualmente.
— Cabelos roxos? Quem será esse garoto?
— E a modelo do lado dele, quem é? Será que são um casal de famosos?
— Nunca vi eles por aqui!
— Por que será que estas pessoas não ficam em absoluto silêncio?
A voz de Yoko soou aos ouvidos atentos de Shuyu, muito concentrados em absorver os comentários das pessoas ao seu redor para agir de acordo. Os olhos esmeraldinos transmitiram aos dourados da princesa a calmaria de seu coração, nem de longe incomodado como ela pelas palavras enxeridas do público — pelo contrário, parecerem um casal o deixou tão eufórico que conter o sorriso estava bem difícil.
Conhecer Kan’uchi tão intimamente o permitia detectar coisas invisíveis nas ações dela. Fosse na maneira que ela alisava os cabelos ruivos ou no suave repuxar de lábios toda vez que respondia uma das perguntas dele, Mizuchiko era privilegiado por ver cada um dos encantos femininos o hipnotizarem em paixão mais e mais. Não tiveram tempo de ficarem juntos sozinhos naquela semana, e a distância de suas palmas era demasiado tentadora para ignorar.
— Alteza Mizuchiko, sua aura está vazando. — Nas palavras, em contraste, a frieza era lei. — Peço a gentileza que se controle.
— Claro, Alteza Kan’uchi. Peço desculpas pela minha distração.
— Não é só você quem está se segurando…
Shuyu nunca sentiu um frio tão intenso em sua barriga como naquele momento. Assim como fizera antes, as íris coloridas dela explicaram a origem do “desconforto”, acompanhada por um sussurro velado que Yoko sabia apenas ser audível aos ouvidos sensíveis de Nidhogg. “Chiwa me provocou a manhã inteira”, era o que ela dizia nas palavras silenciosas.
De propósito ou não, ela estava com o coração dele na palma de sua mão. Ignorante do efeito contrário que causara no âmago do príncipe, a princesa do sol aproximou cautelosamente os lábios de seu rosto. O cheiro adocicado do perfume invadiu as narinas dele, e o toque da mão fina em seu ombro transmitiu outro choque.
— Não vá fazer o mesmo, querido.
O beijo na bochecha dele foi bem leve, e no segundo seguinte Yoko já estava na habitual “distância segura”, sua face oculta sob a aba do chapéu. Sabia que nem aquilo era suficiente para derrubar a máscara de boneca de Yoko — sua namorada era perfeita demais para isso.
Não que pudesse dizer o mesmo de si. A vontade de agarrá-la e encher aqueles lábios pintados de batom de beijos até ele estar borrado havia acabado de, no mínimo, triplicar. Estava tão vermelho que uma pimenta seria menos gritante.
— Cara, como eu amo essa mulher… — suspirou, apressando o passo para se colocar ao lado dela.
“Eu também te amo, Shu.”
— Colocar duas pessoas com menos de um e cinquenta no meio desse pessoal todo foi a decisão mais ridícula que já vi! — reclamou a voz masculina, impaciente. — Vou dar uma palavrinha com a Rei depois!
Era a quinta vez em que eram barrados por um grupo de pessoas maiores que eles, com desculpas de não terem sido vistos. Enquanto Akane apenas pedia licença, sua dupla de certo explodiria se fosse confundido com uma criança por algum “imbecil”. Togami, como descobrira desde o momento que se separaram dos demais, era muito, muito mais esquentado do que sua aparência e expressão transpareciam.
Invejava a confiança com a qual ele abordava vendedores em busca dos itens encarregados a eles, bem como sua movimentação ágil para se esgueirar pelos espaços estreitos entre as pessoas — ele parecia conhecer a plaza oeste como a palma da própria mão, tamanha era a precisão dos caminhos. Para alguém como ela, criada numa fazenda isolada em outro continente, sentia-se muito inferior ao colega.
Não poderia desistir. Foi ela quem renunciou a calmaria do campo para encarar o exame de Palas, deixando para trás seus pais em busca dos melhores médicos e tratamentos. Apenas a Longinus teria a capacidade de treiná-la para usar os poderes de Barachiel, o Sétimo, para dar àquele casal idoso o conforto merecido depois de décadas de trabalho duro. Um suspiro escapou de seus lábios, frustrada com sua ansiedade constante.
— Mas isso é tão difícil!
— Quer sentar um pouco, Yamazaki?
Pelo visto, pensou alto demais, uma vez que estava sob o olhar cauteloso dos olhos heterocromáticos. Se estava acanhada antes por estar num local tão lotado, uma pitada de vergonha foi adicionada à mistura de sentimentos desconfortáveis da menina. Suas bochechas estavam tão vermelhas que Togami não conseguiu distinguir onde terminava o cabelo de onde começava o rosto.
— N-Não! Estou bem, só pensei alto. — Optou pela rota da sinceridade, na esperança de ser menos embaraçoso. — Só… não estou acostumada com ter t-tanta gente ao meu redor.
— Achei que era o caso pelo seu sotaque.
— Eu não tenho sota…
— Também vim do interior, mas passei um tempo lá em Sophis. Lá é trinta vezes pior, parece um formigueiro! — cortou o rapaz, divagando. — Tem barulho o tempo todo, fumaça de monte e nenhuma graminha pra deitar fora da área da Academia! Era um saco não conseguir ver o céu.
A revelação de Shinwa a atingiu com força. Mais pessoas ali eram como ela também? Esteve tão imersa em seu medo por ter uma idade destoante da média — em alguns casos, como de Ayame, quase três anos mais velha — que nem parou para imaginar a enorme diversidade dentre os novatos. “Akane, você é meio estúpida, né? Claro que vai ter gente de todo canto e de todas as idades, como você é dramática!”, amaldiçoou-se ela, repentinamente motivada a se abrir.
— E-Eu também não gostei da cidade! — A voz dela saiu bem alta, mas ela não ligou. — Aqui é empoeirado, e as pessoas são muito frias e barulhentas!
“Você está sendo exatamente essa pessoa barulhenta”, comentou o rapaz em sua consciência. Não iria ser o estraga-prazeres, então apenas concordou com a cabeça e deu espaço para ela continuar seu desabafo.
— Não tem um gramado bonitinho, uma área verde pra ver animais, e eu li nos jornais que as mortes de recrutas cresceram muito na última década! Eu tenho medo!
O ânimo dela, tão rápido quanto antes, voltou ao ponto baixo mais uma vez, e ela se calou. Algo incendiou-se dentro das íris dela, cuja vivacidade era transmitida a ele com o mesmo fervor de antes.
— Mas eu quero… Não, eu preciso ficar — afirmou, com voz firme. — Eu quero conseguir me encaixar pra me tornar uma Guardiã e ajudar meus pais. Minha mãe confiou em mim.
Era a vez de Togami se sentir representado nas palavras dela. Havia uma pessoa que esperava pela volta dele àquela casa, se é que ainda a poderia chamar assim — foi por ela, pela ideia de um dia poder retornar de cabeça erguida, que persistiu tanto até ali. Yona não merecia perder outro irmão, nem sua mãe perder o segundo filho.
Yamazaki deveria ser um caso semelhante a ele. Uma convicção oscilante, pensando sempre nas pessoas que deixou para trás e medindo cada passo dado.
— Ei, Akane… — Ela ficou surpresa por ser chamada pelo primeiro nome. — quer começar a treinar de noite?
— Hein?
— Se você quer ser forte, precisa começar de algum lugar.
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