Volume 1
Capítulo 7.1: A ética dos poderosos
2 de Novembro de 4817 - Continente de Origoras, Reino de Yggdrasil, Palácio de Dracone
Pela janela de batente prateado, a luz solar quente e confortável adentrava o quarto de hóspedes da família Chiwa, anunciando o alvorecer. Reiko estava deitada na cama mais próxima à abertura — remexeu-se em seus lençóis, na expectativa de proteger-se da luminosidade incômoda.
— Rei, mamãe disse que é hora de acordar!
O pequeno e animado ser que ela chamava de irmã arrancou sua proteção, expondo seu corpo coberto pelo pijama de seda azul-escuro. Furiosa e sonolenta, a primeira princesa perseguiu Tamashi pelo quarto, aos berros.
— Me devolve a coberta, Tama! — urrou a menina de cabelos castanhos, respondida por uma risada maldosa da criança.
A paciência de Reiko estava curtíssima pelo súbito despertar. Com um gesto da mão esquerda, criou uma barreira mágica invisível para os olhos desatentos de Tamashi. Estava satisfeita com a “vingança” e sua mãe, que havia acabado de sair do banho, sorriu para elas.
— Ora, querida, nós precisamos ir. São quase nove da manhã, e o Shihan nos pediu para estarmos no salão para o café o quanto antes — explicou a mulher para a filha mais velha. — Kou, já tá pronto? Temos que ir!
— Você sabe que arrumar meu cabelo demora um pouco, Yume. As meninas estão prontas?
A atual rainha, Yumeko Chiwa, tinha cabelos da mesma cor castanho-claro que sua filha, presos em um rabo de cavalo alto. Radiante e sempre muito simpática, ela e Reiko seriam quase cópias uma da outra se os cabelos da antiga Guardiã de Atena não fossem lisos.
Tamanha empolgação natural contrastava com a serenidade costumeira de Koushiro Chiwa, o rei de Sophis. Trajado em vestes púrpuras e com um anel de esmeralda brilhante em seu anelar esquerdo, a pele parda com olhos cinzentos o davam um ar de austeridade sem igual.
— Você é tão certinho com sua aparência que às vezes me esqueço do trabalho que deu para a corte aceitar o nosso casamento — riu a rainha, notando o cabelo piche bem dividido na lateral direita. — Rei acabou de acordar, querido, ela vai demorar um pouco mais.
— Ser bem arrumado foi o meu maior charme para você, Yume — insinuou Koushiro ao pegar na mão de sua mulher e rodopiá-la. — Se eu fosse da nobreza desde o nascimento, não teria demorado nem um dia.
— Não demorou nem um dia pra eu me apaixonar, bobinho. — Trocaram um selinho antes de Yumeko virar para as filhas. — Rei, vai se trocar. Tama, pare de bagunçar o quarto, os empregados trabalham muito para arrumar tudo!
— Ok, mãe! — acataram em uníssono a ordem da mãe.
Momentos depois que a primeira princesa entrou no banheiro para se preparar, três batidas foram ouvidas na madeira da porta. Yumeko abriu-a com rapidez, revelando os cabelos alaranjados por trás do barulho. A garota mexia nervosamente em seus cachos para espantar a ansiedade crescente dentro de si.
— Oh, Hana! Como você cresceu desde a última vez que nos falamos! — cumprimentou a rainha, sem qualquer formalidade no abraço apertado que deu em Hanako.
— B-Bom dia, vossa Majestade.
— Querida, me chame de Yume. Não precisa de tanto respeito — reiterou a matriarca dos Chiwa. — Veio ver a Rei, certo? Ela está tomando banho, pode esperar ela por aí e acompanhá-la. Nós já vamos.
— M-Mas…
— Nos vemos daqui a pouco!
Yumeko bagunçou os cabelos da ruiva antes de sair para os corredores, onde seu marido caminhava de mãos dadas com Tamashi. Desapareceram do campo de vista da princesa a passos rápidos e ecoantes no piso de mármore, deixando-a sozinha no corredor amplo.
Não seria de bom tom alguém vir bisbilhotar nos aposentos de uma família real. Sua amiga demoraria para lavar o volumoso cabelo, então deitou-se na cama sob a claridade diurna, observando as nuvens brancas caminharem pelo azul do céu.
A demora da Guardiã de Atena foi suficiente para o tédio tomar conta da jovem princesa, cuja única diversão era esquadrinhar o quarto com seus olhos. Um livro meio surrado sobre um móvel atraiu a curiosidade de Hanako, o que a guiou até o livro para analisar sua capa.
Uma arte dos 4 continentes e o título “Política e Governança: uma rememoração dos erros dos reinos de Ouras” a fez ter certeza de que se tratava de algo relacionado ao sonho de Reiko. Ao abrir cuidadosamente suas páginas, deparou-se com dezenas de marcadores com anotações, guiando seus olhos âmbar por entre os comentários sobre falhas, crises e crimes ocorridos e praticados pela realeza de todos os reinos.
Para Hanako, não parecia um livro historicamente embasado, tamanhos eram os abusos descritos nas folhas amareladas. Modelos monárquicos, as famílias reais e até mesmo a cultura de outras nações, porém, eram marteladas e criticadas em quase todos os cantos possíveis que fosse possível encaixar uma nota feita a mão da suposta dona do livro.
Comparada à última vez que ouviu Reiko falar de suas intenções revolucionárias, havia um radicalismo bem mais intenso em suas duras opiniões. As pupilas da ruiva dilataram-se a cada linha lida.
— Ela não é mais aquela menina ingênua e sonhadora. Ela está mesmo trabalhando nisso… — murmurou a nobre, centrada em sua leitura.
— Não sabia que tinha ficado ousada ao ponto de mexer nas coisas dos outros, sua faeri distraída!
Quando o livro foi tomado das mãos dela, Hanako pulou de susto. Envolta em uma toalha branca, sua amiga preencheu o cômodo com uma risada genuína. As bochechas da princesa faeri — isto é, de Alfheim — pegavam fogo pela vergonha de ter sido pega sendo enxerida e pela nudez parcial da princesa de Sophis.
— N-Não vai colocar uma roupa, Rei?
— Claro, claro, mas só depois de você me responder se sou mesmo uma má influência — provocou mais uma vez a garota. — Estou brincando, pega minhas roupas na mala, por favor? Vou secar o cabelo enquanto isso.
— Tá bem…
A ruiva vasculhou o armário particular de Reiko, empilhando ao seu lado as peças que sua amiga descreveu e um elástico de cabelo. Virou-se para se perceber que sua amiga havia deixado a toalha de lado e vestido a roupa de baixo — a vergonha ficou tão forte que jogou as roupas na Guardiã de Atena.
— Brigadinha, Hana! Já saímos, viu? — informou Reiko, trancando-se novamente no banheiro
Logo que a princesa girou a chave, Hanako se agachou para esconder o rosto entre as coxas. Fumaça poderia ser vista saindo do topo de sua cabeça.
— Que vergonha!
A conversa animada da dupla preenchia o caminho delas até o salão de banquete. As botas e peitoral metálicos de Hanako reluziam ao sol, encobrindo o vestido preto sem mangas — conjunto complementado pela capa branca de forro roxo e a tiara com o rubi em formato de rosa, símbolo da casa real Koufuku. Reiko, por outro lado, vestia um conjunto de camisa social branca com shorts e jaqueta de couro pretos, além de botas de combate prateadas. Armaduras pesadas não faziam seu estilo.
— Como é bom poder usar roupas de combate… Odeio usar aqueles vestidos frufrus — comentou a princesa ateniense entre os alongamentos que realizava — mas eles caem muito bem em você, Hana.
— Não sou tão bonita quanto você, Rei.
— Você que acha! Todos os garotos que vi andando pelo castelo ficam impressionados quando você passa!
— É só o meu cabelo ruivo que chama atenção. Nada demais — refutou Hanako.
— Se pretendem caminhar neste ritmo, saiam do caminho.
Uma terceira voz, juvenil e grossa, atraiu a atenção da dupla. Os olhos azul-céu do rapaz alto que se dirigia a elas, vindo de outro corredor, tinham um brilho perigoso — uma espécie de combinação entre a ira de um leão e a astúcia de um lobo.
De fato, Reiko lembrava-se de ter visto o rapaz na noite passada, ainda na mesa de jantar. Os cabelos amarelos como trigo, presos em um pequeno rabo de cavalo com uma mecha destacada cruzando o centro do rosto, estavam bem frescos em sua memória. A cicatriz bem clara na base do seu pescoço tornava muito mais fácil reconhecê-lo.
— Vossa Alteza Zuko Ryoujin — comentou Reiko, com uma reverência — é um prazer.
— Se me lembro bem, herdeiras da casa Koufuku e da casa Chiwa — respondeu o rapaz. — Chega desta conversa fútil, tenho pressa.
Em um gesto de desprezo, arrumou sua franja para manter o cabelo no lugar enquanto grunhiu pesadamente. Apesar do sorriso no rosto de Reiko, sua aura dourada indicou a ira formando-se em seu interior. Hanako conseguiu controlar a parceira, partindo juntas para seguir Zuko de certa distância.
O silêncio permitia que ouvissem a armadura negra tinindo a cada passo do menino, com a grande espada com punho de rubi em suas costas sendo visível aos olhos de qualquer um. O manto azul e o olhar rígido completavam a impressão esperada por Hanako — como sua mãe um dia lhe contou, os nobres de Bellato eram todos soldados de alta classe.
A frequência de assassinatos por rixas políticas no reino da guerra era altíssima, então talvez fosse justificável tal comportamento. Ainda assim, o príncipe de Bellato não parecia o mais simpático para uma aproximação amistosa.
Dois servos abriram as portas do salão uma vez que o trio alcançou sua entrada. Zuko foi primeiro, com sua pose de superioridade intacta e imponente mesmo cedo de manhã. Reiko, como uma boa rebelde, entrou sem ligar para os olhares repreensivos a ela direcionados, apenas corrigindo sua postura quando Hanako a cutucou de leve.
— Desculpa, desculpa, ainda estou com sono… — murmurou ela para a amiga.
Assim como nos corredores, imperava a ausência de som. Se não fossem pelas risadas alegres de Tamashi e Souteki Amenai, a princesa herdeira de Portus com cabelos crespos azul-bebê, a mesa de café da manhã estaria totalmente calada. Shihan, sentado em sua cadeira como na noite anterior, pigarreou para atrair a atenção de todos.
— Vejo que dormiram bem, senhoras e senhores! Espero que estejam preparados para o evento de hoje — partilhou com os demais, presunçosamente. — Teremos um grande público, e nossa nova geração deve mostrar que a Longinus segue firme e forte.
Não houve nenhuma comoção notável por parte dos demais presentes, alguns incomodados pelo entusiasmo prematuro do homem, outros ainda dormindo em pé. Contudo, a aura poderosa movimentando-se foi suficiente para limpar qualquer resquício de sono na sala, subitamente inundada por mana. Como um ímã, ninguém conseguia desviar o olhar da figura com um cigarro aceso na boca e cabelos dourados ondulados.
— Sabemos disso, Shihan. — A ausência de qualquer forma de tratamento fez Reiko tremer em sua cadeira, apesar da voz doce. — Tenho certeza que eles farão um grande espetáculo. Principalmente nosso querido Primeira Cadeira de Palas.
Taeka Haruki, a Líder Suprema da Longinus, enrolou uma de suas mechas na mão livre. Os olhos laranja encararam um a um os convidados do rei, terminando o movimento sobre um rapaz de pele escura sentado à mesa. Embora tivesse sido elogiado naquele exato instante pela mulhre mais endeusada do mundo, aidna tentou manter a humildade.
— Agradeço a confiança, mestra Haruki.
— Você faz por merecer, Koushi — respondeu a mulher com uma risada. — Peço apenas que mantenha Apófis sob controle. Não queremos que o público tema quem irá protegê-los.
— Como Amaldiçoado, sei bem dos riscos. Tomarei cuidado, com certeza.
— Perfeito! Bem, acredito que encerramos aqui essa conversa. Aguardo todos no estádio em breve, com sua licença.
Tanto Taeka quanto Koushi Fuyusen, seu aluno, retiraram-se pelas portas colossais do castelo sem mais delongas. Sem a aura sufocante dela ou da mulher que silenciosamente a acompanhou para fora do recinto, os convidados tomaram a liberdade de continuarem com sua refeição matinal.
— Ei, ei, Shu!
A intenção de Shuyu de apenas abocanhar sua torta de morango foi interrompida pela voz baixa de Reiko, que cutucava repetidamente o braço esquerdo do rapaz. Ele não havia percebido a presença dela ao seu lado antes, ainda extasiado pela dormência mental.
— Que foi?
— Por que será que a Líder Suprema e o Primeira Cadeira saíram tão cedo? Me pergunto se é pra treinarem ou pra bater papo.
— Reiko, você é realmente intrometida — bufou ele, voltando sua atenção para a comida.
— Seu mau humor de manhã é ruim, hein? Puta merda. — O olhar afiado de Shuyu fez ela colocar as mãos sobre a boca. — Tá, desculpa, desculpa. Escapou.
Ao meio-dia em ponto, todos os governantes e suas famílias ocupavam os assentos de luxo do Coliseu do Dragão. A entrada da população geral, aberta há pouco mais de meia hora, começava a lotar os espaços das amplas arquibancadas com gritos animados. Shihan não conseguia parar de sorrir ao imaginar a receita gerada pela venda dos ingressos.
Com o público posicionado e pronto, o rei local levantou de seu assento, usando sua aura para chamar a atenção dos presentes.
— Cidadãos de Yggdrasil — clamou, levando o povo à loucura — é uma honra iniciar agora nossa sessão de duelos! Em nossa primeira luta, deem boas vindas à melhor aluna de nossa nação, Ayame Tengoku!
Os brados enlouquecidos da multidão fizeram Ayame apertar o cabo de sua espada. Dentro da área de preparação e longe dos olhos de todos, observou-se no reflexo de um espelho próximo — o uniforme da Longinus, emprestado à ela especificamente para aquela luta, lhe caía bem.
Por não ser pertencente a ela, não havia quaisquer detalhes no tecido negro. Lembrou-se de Keishi, em suas memórias, explicando sobre as diferenças de cores entre os membros da organização militar.
Keishi Houseki abriu a porta de sua casa — mansão, para ser mais preciso. Havia sido um longo dia de trabalho treinando alguns alunos da Academia de Dracone e, por não estar acostumado, ainda era extremamente cansativo controlar aquelas pestinhas.
— Kei, bem-vindo!
“Tenho também a minha pestinha”, pensou ao recepcioná-la em seus braços. Ela o envolveu em um aperto forte, em absoluta euforia — os olhos castanhos de Ayame faziam um belíssimo contrataste com o cabelo tão único de sua garota querida.
— Oi, Aya — cumprimentou com o máximo de energia que tinha disponível — sentiu minha falta?
— Claro que senti, bobão!
A menina de 12 anos se esfregou carinhosamente um pouco mais nele antes do homem se dar conta que ela vestia o uniforme da Longinus dele, bem folgado por sinal. Levantou de leve uma sobrancelha, o que fez Ayame perceber o questionamento.
— Eu quis ver como o uniforme ficaria em mim, mas ele perdeu a cor! Por que, Kei? — A carinha de choro dela era adorável.
Keishi não mais era tão mais alto que ela, então pôde continuar de pé para explicar.
— Porque ele não é seu, querida. Ele só assume a cor da aura do seu verdadeiro dono — explicou o homem, tentando ser o mais didático possível. — Ele é mágico, então sabe quem é quem.
— Quer dizer que se eu colocar ele vai ficar azul, mas só se for meu!
— Isso mesmo, Aya!
Tocou na sua imagem refletida, sorrindo em seguida. Tantos anos tinham se passado e ainda era uma memória que a guardava com tanto afinco.
— Eu vou passar no exame prático só pra usar essa roupa — atestou para si mesma.
— Será que é o suficiente, garotinha?
A voz baixa de sua divindade, Eolo, foi ouvida como um sussurro ao vento, uma dúvida carregada pela sua alma e espalhada ao mundo nas palavras dele. Agora, o Senhor dos Ventos estava logo atrás de si, escondendo um sorriso maléfico.
De pele pálida e longos cachos brancos ondulados, Eolo tinha certa beleza em sua forma esguia e pouco musculosa. Os olhos não podiam ser vistos por debaixo da longa franja que os cobria, mas Ayame sabia que ele a encarava com suas íris vazias.
— Quem decide se será o suficiente sou eu, Eolo — retorquiu a garota. — Eu não sou mais a garotinha fraca que pediu aos céus por ajuda.
— Enfrente seus medos, menininha, ou talvez você se perca em seu próprio destino.
A Guardiã de Eolo caminhou pelo corredor que a levaria até a arena. A luz do sol atingiu seus olhos, bem como os assobios de admiração do povo de Yggdrasil. Sua breve conversa com Eolo a fez se distrair do anúncio de seu oponente, parado na lateral oposta à dela.
Zuko Ryoujin, o príncipe herdeiro de Bellato. Ela se lembrava de escutar sobre ele de Keishi — tinham a mesma idade e, pelo que foi contado a ela, o mesmo tempo sendo Abençoados, ela por Eolo e ele por Diarmid, o Protetor dos Heróis. Reconheceu nas mãos dele a Norálltach, uma das 4 armas lendárias da deidade real bellana.
Sem contar o fato dele ser filho de Amaka Ryoujin, a Rainha Maldita. Teria que dar tudo de si ou possivelmente seria derrotada num piscar de olhos. Com isso em mente, aproximou-se do juiz e de seu adversário.
— Quando esta moeda encostar no chão, o duelo será iniciado! — anunciou o homem, encarando tanto a menina quanto o nobre. — Estão preparados?
— Sim! — responderam em uníssono.
A rapieira branca de Ayame e a espada de duas mãos prateada de Zuko surgiram em suas respectivas mãos. Ambos assumiram uma pose de combate quando o pequeno objeto redondo foi arremessado pelo juiz.
“Pelo Kei!”, pensou Ayame.
“Por ele”, pensou Zuko.
Seja quem fosse para vencer, apenas a moeda iria decidir.