Volume 1
Capítulo 6.2: A Aliança dos Quatro Tronos
Com sua percepção sobrenatural e aguçada, Shuyu ouviu o ar ser cortado e seus pelos se arrepiarem.
Uma grande onda de magia movimentava-se em alta velocidade a quilômetros dali — um ataque canalizado, bem no meio do terreno do castelo. Não sabia com precisão onde acertaria, mas com certeza mirava a retaguarda das três princesas, sentadas frente a ele.
Sua mente processou os estímulos em milésimos. Seu corpo, por outro lado, não tinha o treinamento necessário para reagir de acordo. E mesmo que conseguisse, sabia que sua magia não seria suficiente para aguentar a carga enorme de mana que cortava o espaço em velocidade supersônica.
Não teve tempo nem de sentir a adrenalina pulsar por suas veias. Um homem alto e loiro surgiu logo atrás das garotas, um rastro amarelado indicando que teria vindo do castelo. Estava no exato alvo do ataque surpresa.
Os olhos azul-celeste do recém chegado analisaram com frieza os rastros de mana, sua aura azul-piscina a cobrir toda a extensão de seu corpo. Quatro objetos, semelhantes a flechas, envoltos por uma densa camada de mana perfeita para perfurar defesas mágicas.
“Barreiras não adiantariam”, concluiu para si mesmo antes de desembainhar sua katana com uma suavidade admirável.
— Passo do Deus do Trovão.
Veloz como um clarão, realizou quatros cortes com sua lâmina — Shuyu não foi capaz de ver nem a movimentação do braço dominante dele. Aplicados com precisão, os golpes desviaram os projéteis, que atingiram o chão e criaram ondas de choque com o impacto.
O rapaz aguardou alguns segundos antes de estar certo de que não haveria mais perigo. Seus brincos redondos de prata tilitantaram quando ele se abaixou para pegar um dos objetos desconhecidos.
— Flechas douradas… — sussurrou ele. Shuyu o escutou com suas orelhas sensíveis. — Não deveria ser possível lançar sem ser percebido por algum dos Guardiões no perímetro.
Os mais jovens encaravam o salvador de suas vidas com descrença. Entre a detecção do ataque pelos três herdeiros e a chegada do homem, meros 2 segundos haviam se passado.
A velocidade e furtividade dele eram surreais. Shuyu não tinha a menor ideia de que estavam sendo seguidos.
— S-Shiro Sorako… — gaguejou Reiko — ele nos seguiu?
— Precisamente, Vossa Alteza Chiwa — respondeu o homem, cujas mãos fizeram a flecha que segurava sumir em partículas azuis. — Me foi requisitado que todos estivessem seguros durante a reunião.
— Desde quando está aqui? — Foi a vez de Shuyu jogar suas dúvidas para ele.
— Desde o momento que saíram do salão. Deveriam ter mais atenção aos seus arredores, ou serão presas fáceis no exame prático.
A katana de fio amarelo-ouro foi colocada de volta em sua bainha, mas a aura de Shiro brilhou ainda mais forte. Seus olhos encararam o horizonte ao leste, de onde vieram os projéteis.
Com a amplificação mágica, pôde detectar uma presença espiritual marcante naquela direção. Com um pouco mais de atenção, percebeu que se tratavam de duas auras poderosíssimas, como poucas que havia visto em sua vida.
“Consigo persegui-los”, avaliou pela distância. Porém, tanto o fato de precisar de alguém para proteger o castelo no seu lugar quanto a dúvida se seria capaz de eliminar sozinho ambos os alvos o fez hesitar.
No topo do prédio, o homem de longos e oleosos cabelos negros rangeu os dentes. Vestido em uma regata de malha, que deixava os músculos de seus bíceps à mostra, ele riu quando a companheira estalou a língua de frustração.
— Odeia tanto assim falhar um tiro, Koe? — provocou ele, sabendo bem da resposta.
Koe Rikimiya definitivamente odiava errar uma de suas flechas, milimetricamente calculadas por seus opacos olhos amarelos. A confiança que tinha em cada um dos disparos era enorme.
— Ele realmente é capaz de nos enxergar aqui, Hyo? Achei que 50 quilômetros já seria suficiente para ser impossível notar a nossa presença — ignorou a tentativa de tirá-la do sério enquanto ainda prestava atenção nos movimentos dele.
A mulher de cabelos castanhos lisos levantou-se. Já não era muito alta, então estar ao lado de Hyoshin Reiyama e seus quase dois metros de altura a faziam ficar ainda menor. A pergunta anterior dela foi respondida com um sorriso debochado, marcado pelos caninos avantajados. Os olhos vermelhos brilhavam de empolgação.
— Acho que não há limite quando se trata do Demônio do Relâmpago.
— Ele e aquela vaca, sempre parecem estar na minha cola…
— Bem, como não funcionou, vamos recuar. Tem muitos daqueles imbecis no castelo e o raiozinho deve chegar aqui em um minuto.
A moça guardou seu arco com um suspiro decepcionado. Asas douradas emergiram de suas costas, pelas aberturas de sua jaqueta preta, cobertas pela aura amarelo-margarida que brilhava ao seu redor.
— Que saco, queria lutar um pouco — bufou Koe.
— Gostaria tanto quanto você, sabe bem — concordou Hyosin, com certo desgosto na voz — mas seríamos mortos em minutos, talvez segundos. Apenas a Líder Suprema seria suficiente para acabar com a gente.
— Só quero que ela faça o trabalho dela logo pra termos um pouco de diversão. Ela é esperta, mas muito frouxa!
— Sim. Vamos esperar a hoa de separar a cabeça deles do pescoço.
Koe saiu voando o mais rápido possível. O homem não tardou em segui-la, saltando de prédio em prédio com suas garras mágicas para fincar seu corpo ao cimento.
Tamashi ainda chorava intensamente quando Shiro partiu para conseguir reforços no castelo. Reiko seguia em choque, embora sua curiosidade quanto aos projéteis dourados caídos próximos dela a deixasse avoada.
Sua mente estava bem distante do corpo físico, imersa em pensamentos. Por muito pouco, aquela situação não foi uma absoluta tragédia, e ter essa noção assustava a princesa em um nível surreal, tão grande e tão visceral que sentia náuseas.
— Ei, Reiko — chamou o príncipe, delicadamente — você quer ser uma Guardiã para investigar o que aconteceu hoje, certo?
— Sim. É o único jeito de lutar pelo que eu acredito, mas… — O jeito que ela comprimiu seus lábios expressava sua frustração. — quando eu olho quem está na elite da Longinus, eu não consigo me imaginar ali.
— Na magia, acreditar é o primeiro passo para realizar — devolveu o príncipe.
— Mas eu não acredito, Shuyu. Eu tenho medo de morrer, isso é tudo que sei sobre mim mesma.
Expor-se daquela maneira nunca era recomendado para alguém da realeza — ser covarde era sinal de zombaria, como muitas vezes até sua mãe a ensinou. Poderia até ser a “Princesa Falastrona”, mas ainda não seria capaz de fingir ser sempre forte. Aguardou alguma manifestação negativa do rapaz, pronta para se defender.
O que recebeu, porém, foi uma mão aberta sendo oferecida para ajudá-la a se levantar.
— Acho que todos têm medo de morrer, então tudo bem.
— O quê?
— Isso mesmo que ouviu, Reiko — enfatizou o príncipe, os olhos refletindo as chamas de sua alma. — Ter medo não te faz uma pessoa fraca. Pelo contrário, o medo da perda é o que nos faz passar de qualquer limite para proteger o que amamos.
O calor no âmago de Reiko queimou mais forte. Era como se o fogo de Nidhogg incendiasse seu coração atormentado pela dúvida e incerteza. “Sensibilidade é mesmo o dom principal desse cara”, atestou para si enquanto era tomada pela emoção de ser compreendida.
Agora não era hora de chorar, Teria que ser forte, pelo menos na frente da própria irmã — a única que sempre teria que vê-la como heroína.
— Você é gentil demais. Talvez vejam isso como algo ruim, mas eu não vou mentir que gostei. — Hanako a encarou com suspeição. Sua amiga, às vezes, não sabia usar as palavras certas. — Conto com você pra proteger minha retaguarda em Palas, senhor príncipe.
Reiko acatou a ajuda para levantar, mantendo as mãos firmes às dele num aperto de mão. Os dedos delicados da princesa de Alfheim foram colocados por cima das outras mãos, o que atraiu o olhar dos outros dois.
— Vão precisar de alguém para manter seu álibi intacto. Logo, farei este favor a vocês — prometeu Hanako, com um sorriso inédito até mesmo para a Guardião de Atena.
— Muito bem, como vamos nos chamar?
— Quê? — disseram em uníssono Shuyu e Hanako, em dúvida.
— Como assim, “quê”? Todo grupo marcante na história tem um nome, não?
— Rei, francamente… — suspirou a princesa de Alfheim. — você se esqueceu que existem as divisões da Longinus? Os Cinco Generais, toda a classificação?
— Tá, tá, chatonilda. Podemos ter um nome então só para nosso grupo interno! Trindade das Coroas me parece muito foda.
— Rei! Tamashi está aqui, controle os palavrões! — repreendeu-a Hanako.
— Perdão. Força do hábito, me empolguei.
— Merda, esqueci de uma coisa.
O olhar julgador da ruiva recaiu sobre Shuyu, que logo fez um pedido de desculpas mudo para ela. As três princesas observaram enquanto ele reorganizava os seus pensamentos, andando em círculos no pequeno gramado.
— O que foi, Shu? — questionou Reiko, inquieta pela demora dele. Nem percebeu a intimidade que colocou no apelido.
— Lembrei que tem mais uma pessoa pra incluir.
A cara de confusão de suas novas companheiras o fez lembrar que não havia tocado no tópico até então.
— Pensar alto não é sinônimo de falar, seu idiota — brincou Nidhogg no fundo de sua mente.
Afastou a voz do dragão para longe antes de fazer seu anúncio.
— Yoko Kan’uchi. Ela é a quarta integrante desse grupo.
— A princesa de Helias? Por qual motivo ela seria parte? — Reiko foi a primeira a se manifestar, incapaz de compreender a linha de raciocínio dele.
— E ela concordaria em se juntar a nós? Nem mesmo a conhecemos pessoalmente, senhor Mizuchiko. Não teriam quaisquer motivos para ela seguir com esse plano — reiterou Hanako, em sintonia à amiga.
A aura de Shuyu oscilou, como ambas puderam perceber. Um sinal de hesitação e insegurança para elas, que logo trocaram a face simpática por preocupação. Ele buscou as palavras corretas para comunicar seus motivos.
— Ela faria parte porque, bem… — hesitou no meio, aumentando a tensão. — porque ela é minha parceira? Acho que podemos chamar assim.
A surpresa de Reiko foi breve. Sua face passou por um turbilhão de emoções em milésimos, antes de assumir um semblante mortal.
— Os reinos de vocês são inimigos, e a distância não permitirá a unificação. Aposto que nenhum nobre apoiaria e vocês seriam depostos, acabando com as linhagens reais dos dois lados — constatou a garota de cabelos castanhos, ríspida e fria como o fio de uma espada.
— Eu… Nós vamos dar um jeito. Sei que deve ter alguma maneira de quebrar essa corrente.
A visível decepção de ambas as princesas não era páreo para a determinação inabalável de Shuyu. Já ouvira aquelas palavras antes — Reiko, apesar de rebelde, era racional demais para fingir que a ideia era viável. Diferente da simpatia que ele mostrou a ela anteriormente, podia sentir o veneno da realidade escorrer na fala da princesa.
— Não seria mais fácil e inteligente desistirem disso? Evitaria sofrimento para os povos de vocês, e o dever de um governante com seus súditos é maior que qualquer sentimento.
— Eu ainda sou humano, Reiko. Se a minha escolha for entre o poder e meu amor, então eu prefiro ser deposto — afirmou o rapaz, sem um resquício de dúvida.
— As cortes serão o menor dos seus problemas. A Executora Silenciosa com certeza te jurará de morte.
Shuyu não sabia exatamente se Hanako estava fazendo uma piada, mas não parecia o caso. As poucas vezes que viu Kyouka Kan’uchi, a rainha de Helias, percebeu o assustador fato de que o caminhar dela era mortalmente silencioso. Ele engoliu em seco ao lembrar do olhar dela naquele dia.
— Acho que você é o primeiro herdeiro em toda a história a negar seu trono por um amor — provocou Reiko, com um sorriso de lado e um tapa no ombro esquerdo dele. — Se tudo der errado, nada vai me impedir de tirar uma com sua cara antes de te socorrer.
— Agradeço o incentivo, Reiko. De qualquer jeito, Aliança dos Quatro Tronos está bom o suficiente para vocês? — Um aceno positivo delas confirmou suas intenções. — ótimo. Então, a partir de hoje, mandem cartas com a sigla AQT se descobrirem algo sobre os incidentes. Codificadas, de preferência.
— Senhor Mizuchiko, não está levando isso a sério demais?
— Somos apenas aspirantes, você está certa, senhorita Koufuku. Tudo que descobrirmos provavelmente já estará nas mãos da Longinus com semanas de antecedência.
— Então não devíamos nos preo…
— Mas precisamos começar a ter o costume para quando for o momento real de perigo — cortou-a o príncipe.
— Ele tem razão, Hana — Reiko apoiou a ideia sem ressalvas. — Não sabemos qual o nível exato de quem está nos caçando. Não é brincadeira, e os riscos de entrar nesse jogo sem pensar são altos.
A princesa do reino das fadas não teve muita escolha além de concordar com seus novos companheiros. Lembrando que deveriam retornar ao castelo, os jovens levantaram voo, cada um à sua maneira.
Tamashi dessa vez foi nos braços da irmã mais velha. A pequena admirava os campos floridos com seus olhinhos azuis brilhantes e curiosos.
— Que flores são aquelas, Shu? — inquiriu a menina, apontando para um canteiro à esquerda.
Shuyu deixou-se esboçar uma alegria inominável quando viu o que tinha causado tamanha paixão em Tamashi. Ele logo afastou o sorriso bobo com um movimento da cabeça, em negação.
— São girassóis, Tama. Tive que pedir que mandassem de Helias até aqui.
— Por que pediu flores de tão, tão longe, Shu? Elas são bonitas, mas tem outras mais bonitas aqui!
— Te explico na próxima, certo? Hoje não dá.
Tal como a irmã, a Chiwa mais nova era crítica e esperta — seu semblante logo tornou-se de choro, frustrada pela resposta incompleta de seu amigo. Shuyu calou-se em um sorriso triste, que Hanako pôde ver pelo canto da visão.
O restante do caminho foi rápido e silencioso; estavam cansados demais para debater qualquer outro assunto. Ao chegarem de volta ao salão, perceberam a maioria dos nobres se retirando para seus aposentos decidindo fazer o mesmo.
Entre rápidos “boa noite” e “até mais”, se separaram pelos corredores ao passo que o vento rugia do lado de fora. A forte chuva era iminente.
Dentro de seu quarto solitário, Shiro Sorako analisava a flecha que havia defletido mais cedo. Ele tinha muitas dúvidas, muito mais que respostas.
Como a Águia do Apocalispse chegou ao reino de Yggdrasil? Segundo as fontes da Longinus, as flechas características da criminosa foram encontradas em corpos em Bliz e Genten, no continente de Cielunia, ainda na semana passada. Flechas idênticas a esta que tinha em mãos.
Viajar nessa velocidade envolveria um grande esforço físico ou algum tipo de teleporte, coisa que ela não tinha. Lembrava-se com precisão dos dados de todas as fichas extensas dos procurados pela elite da Longinus, com preços altíssimos sobre suas cabeças — inclusive dos dela.
Koe Rikimiya, mulher de aproximadamente 27 anos, nascida em Tellus. Deveria ter por volta de um metro e sessenta e era de origem plebeia, com uma silhueta esguia: na escala de um a dez, sua velocidade era nove, então Shiro era mais rápido que ela. Mesmo em seu máximo, tinha certeza de que não conseguiria realizar um deslocamento continental em um período tão curto.
Os pensamentos do loiro o atormentaram por mais uma hora inteira. Entre memórias de livros, escritos e relatórios da biblioteca confidencial da Longinus, não havia nada que sugerisse a existência de uma deidade com teleporte — um poder tão útil ao deslocamento de tropas e coleta de informações jamais passaria batido pela maior organização militar do planeta.
— O que foi, garoto? Com medo que estejam errados? — debochou a sua deidade, projetando-se em sua mente.
— Não enche, Raijin. Eu já aceitei que isso é muito mais grave do que imaginávamos há algumas semanas.
O deus do trovão deu uma risada estrondosa, alta como os relâmpagos lá fora. Em meio à tempestade escura, cujas gotículas frias molhavam a janela, o coração de Shiro sentiu um calafrio intenso, uma onda de terror irracional ao imaginar os segredos não revelados.
Um suspiro foi exalado de sua boca quando colocou a flecha e seus brincos prateados no criado-mudo logo ao lado da cama. O sono finalmente venceu e o rapaz se viu entregue às memórias cálidas de seu passado. Pelo menos, por hora, se apegaria a elas.