Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 1

Capítulo 4: Madrugada nos subúrbios

23 de Outubro de 4817 - Continente de Ignasia, Reino de Nebula, Periferia de Almiya 

 

Sons de passos, ruidosos e despreocupados, tomaram a viela suja. Embora a primavera fosse a estação do ano vigente naquele momento, a altitude da capital em relação ao nível do mar tornava o ar gélido e rarefeito — para uma estrangeiro, correr seria um esforço sem tamanho naquelas condições.

Porém, aquele não era o principal problema que a mulher que caminhava por entre os barracos simples enfrentava. Espessa como uma parede, uma névoa branca e densa encobria absolutamente todo o trajeto, impedindo qualquer um de ver mais do que alguns palmos de distância à sua frente.

— Eu deveria ter pego meu casaco… Que frio tenebroso — sussurrou a belíssima garota de voz fina, abraçando o próprio corpo.

Sua aparência não conversava, nem de longe, com as favelas de Almiya. Seu vestido preto de mangas longas, mas que deixava seus ombros expostos, tinha uma fenda na parte da frente, obrigando-a a usar uma saia cinza para cobrir suas coxas de pele pálida como a neve branca. Detalhes dourados espalhavam-se pelo decote e barra das vestes.

O que mais chamava atenção em sua silhueta alta e esguia eram seus cabelos. Brilhantes e longos, o vermelho escarlate de seus fios tremulavam enquanto ela se deslocava sob a tênue luz da lua cheia sem hesitação. 

Lembrava-se de ter sido aconselhada por um morador da região a não se deslocar após o sol se pôr. As lendas mais antigas daquele país contavam que as almas dos mortos vagavam pelo nevoeiro ao cair da noite, assombrando aqueles que se aventurassem na escuridão. 

Fossem nas planícies gélidas ou nos cumes do montes, esta era a lição passada entre gerações do povo de Nebula — amaldiçoado para todo o sempre por Melinoe, a Ladra de Almas e representante da casa real, a conviver com a névoa eterna.

Aquela forasteira não só ignorava o medo dos espíritos como cantarolava versos suaves, suas sapatilhas negras ecoando pelos ladrilhos de pedra da ruela. Estava começando a ficar impaciente pela demora a chegar ao seu destino — caminhara por tanto tempo e ainda não tinha visto qualquer sinal de seu destino.

Para a alegria da jovem, sua frustração não durou muito mais: pôde ver um brilho no meio da neblina, destacando-se do cenário decadente dos subúrbios da capital. Exibida em um pedestal, uma estátua em forma de lobo e feita de prata reluzente agia como um guarda para as escadas de pedra polida, que eram o caminho para as portas de uma enorme mansão.

— Parece prata atlântica… Aquele canalha deve estar mesmo nadando em dinheiro — discorreu ela enquanto estudava de perto o objeto.

Risadas altas foram ouvidas além da névoa. Dois homens, com as caras vermelhas pelo que ela especulou ser álcool, aproximaram-se dela, sem esconder um pingo de suas segundas intenções. Analisou-os dos pés à cabeça, logo assumindo uma expressão nítida de nojo, que não os impediu de abordá-la.

— Olá, princesa. Andando por aí tão tarde? — provocou o primeiro, cambaleando até ela.

— Não tá a fim de um pouco de diversão? Tenho certeza que a gente consegue te dar muito pra…

O ar foi cortado, assim como as palavras do homem. Olhou para baixo, vendo a lâmina brilhante de uma foice envolver seu pescoço, e o medo o emudeceu, assim como seu companheiro. A ruiva desviou o olhar, deixando que sua aura alaranjada falasse por si.

— Vocês têm sorte que estou de bom humor — pronunciou a mulher, sem emoção. — O Lobo Branco da Névoa está hoje? Tenho assuntos a tratar com ele, e urgentes.

A concordância silenciosa de ambos lhe deu a confirmação que precisava. Sua arma dissolveu-se em partículas brilhantes, o que abriu espaço para ambos os homens saírem correndo em absoluto pavor. “Acho que esses dá para poupar”, refletiu ao mesmo tempo que subiu os degraus para a mansão.

Os guardas do local apontaram suas lanças para ela assim que pisou nos azulejos próximos das grandes portas de madeira.

— O Lobo não está aceitando visitas hoje, senhorita — rosnou o homem para ela, por debaixo de seu elmo metálico.

— Não sou visita. Tenho ordens superiores, não me atrasem — retrucou ela com o máximo de polidez que conseguiu reunir.

O outro capanga iria dizer algo, quando ela puxou a manga direita de seu vestido para cima. Em seu braço, havia a tatuagem de uma espiral englobada por um triângulo — algo que convenceu os homens na mesma hora a deixá-la adentrar a residência.

Os suspiros dela podiam ser ouvidos junto ao barulho de seus passos velozes pelo carpete límpido. Com suas habilidades de detecção mágica, pôde chegar ao cômodo do anfitrião em poucos minutos.

Sem cerimônia, abriu a porta do quarto apenas para se sentir mais uma vez enojada naquela noite. Sem camisa e rodeado de mulheres, Um homem de ombros largos e cabelos negros espetados que iam até a cintura se divertiu com sua expressão de incômodo.

— Ora, nem me deu tempo pra arrumar a casa, Mitsuko, minha querida! — saudou ele, exibindo seus muitos dentes afiados em um sorriso.

— Não tenho tempo para suas piadinhas, Reiyama. 

— Desculpe, queridas, vão saindo agora? Preciso falar em particular com essa lindinha aqui — pediu para as várias mulheres, ignorando a recém-chegada.

Diferente do que Mitsuko sentiu, elas entenderam aquela fala como uma ameaça severa, visto a velocidade que pegaram suas coisas e saíram às pressas, uma a uma. Quando a última se retirou, a cordialidade do Lobo da Névoa se desfez em deboche.

— Veio aqui pra se divertir um pouco, baixinha? — questionou, bebericando despretensiosamente mais um gole do vinho importado. — Esse carregamento de vinho telurino tá do caralho.

— Não irei me repetir, Hyoshin Reiyama. — O olhar ríspido e a breve liberação de aura que ele sentiu em suas costas nuas o fizeram colocar uma túnica. — Vim passar as ordens do mestre. Chame a Rikimiya e vão para a capital de Yggdrasil. Receberão suas próximas ordens lá.

— Que saco. Mas se o chefe mandou, não vou fazer desfeita. 

— É o seu dever como subordinado dele — provocou Mitsuko, se é que poderia ser chamado de provocação. — Todos devemos nos curvar pela piedade dele, e você mais do que ninguém sabe disso.

— Sabe, é bem chato ter uma única mulher. Mas, talvez, seria interessante se fosse você.

— Prefiro ser morta do ter que passar um dia com você. 

A frieza na voz dela não deixou mais espaço para brincadeiras. Os olhos vermelhos de Hyoshin se direcionaram para a janela, onde seria capaz de  ver a cidade inteira coberta pela névoa.

Para a maioria dos moradores de Nebula, aquela era uma vista privilegiada. Com 9 meses de névoa por ano, ser capaz de poder ver com clareza em tempo integral deveria ser o sonho de muitos.

— Tá legal, vou parar de graça. Mas antes de ir, preciso resolver um assunto aqui na favela. Coisas do rei do crime, sabe?

A piscadela que o homem deu gerou uma careta de desgosto por parte de Mitsuko. Suspirou enquanto ele terminava de se vestir, acompanhando-o pela porta para não ficar naquele quarto nauseante.

— Vamos fazer isso logo. O mestre me ordenou garantir que você saísse imediatamente — proferiu por fim, caminhando ao lado dele.

Sentia-se diminuta perto dos quase dois metros de altura do homem. Um mordomo bem apessoado aguardava seu mestre, segurando um trapo sujo de sangue — Mitsuko tinha quase certeza que o tecido havia sido manchado há algum tempo, visto a opacidade da área vermelha.

— Vou só eliminar uma gangue que está ameaçando o território da Alcateia da Neblina. É meu trabalho acabar com quem causa confusão no meu domínio — assegurou Hyoshin, agarrando o pano e inspirando profundamente.

De um instante para o outro, a ruiva pôde perceber uma mudança absurda na mana do rapaz. Antes controlada, a aura rubra jorrava ao redor de seu corpo, inundando o saguão em uma pressão mágica intensa. Ainda assim, Hyoshin mantinha-se completamente imóvel e silencioso.

Dentro de sua mente, a informação sensorial do cheiro férreo foi processada e intensificada centenas de vezes. Uma pessoa normal teria o cérebro sobrecarregado pela atividade neural intensa — entretanto, o Guardião de Fenrir, o Lobo do Apocalipse; jamais seria tão incompetente assim. Um intervalo de alguns segundos foi suficiente para que o olfato sobrenatural se fundisse à visão dele e formasse um rastro em direção ao dono do sangue derramado.

Sem aviso, o gângster disparou pela porta, deixando sua parceira para trás. Se esconderiam na neblina, mas nunca conseguiriam apagar o cheiro delicioso que exalavam.

As ruelas estreitas eram preenchidas pela poeira, suspensa pelas passadas supersônicas do Lobo Branco da Névoa. Aos poucos, a representação visual do cheiro tornou-se mais e mais nítida, o que indicava estar se aproximando de sua presa. Trocou a velocidade pelo silêncio absoluto de seus movimentos, tornando a noite quieta uma vez mais.

Risadas podiam ser ouvidas além da parede de uma das poucas casas de concreto da região. Através de uma rachadura, sendo possível confirmar sua hipótese: todos homens, de pele escura e um sotaque estranho enquanto conversavam.

— Harenarianos… Já causam problemas no próprio país, agora vêm causar aqui — sussurrou para si, seu sangue esquentando.

Hyoshin ergueu o braço direito aos céus. Lentamente, sombras encobriram sua mão, criando uma versão gigante de uma pata de lobo. Com um único golpe, derrubou a parede sobre suas presas, que se desesperaram ao perceberem o ataque.

Assim que o primeiro pescoço foi cortado, o instinto assassino do lobo dominou a mente de seu Guardião. A deliciosa sensação de derramar sangue sem um único pensamento era inebriante, irresistível, maravilhosa — o terror de sua próxima vítima sempre fazia seu coração errar uma batida. 

Melódicos eram os gritos de seus inimigos causados pela dor excruciante de desmembrar seus corpos, excitante era o toque cálido do sangue em sua pele e enlouquecedor era saber que havia apenas começado sua diversão.

Os clamores de ajuda de cada um dos bandidos ecoou pelas favelas, embora ninguém fosse os resgatar de seu destino infeliz. Se Hyoshin Reiyama derramasse uma única gota de sangue, o massacre só acabaria quando todos que ele quisesse mortos estivessem irreconhecíveis.

Apesar de ser complicado deslocar-se pela neblina, Mitsuko alcançou minutos depois o seu colega. Sua foice e aura alaranjada estavam prontas para ser usadas, e quão inútil essa preparação se mostrou quando constatou a carnificina já finalizada.

Espalhados pelas paredes e pelo chão pintados de vermelho, cadáveres de todas maneiras possíveis poderiam ser vistos: decapitados, mutilados e até cortados ao meio, com as entranhas despejadas pela imundície do local. A ruiva sentiu-se ainda mais perturbada pela cena ao ver o autor daquele espetáculo macabro parado ao centro de toda aquela desgraça, banhado em sangue e sorrindo com tanta satisfação que causou arrepios nela.

— Mitsuko, minha querida! Você é muito lenta! — comentou ele enquanto pisoteava com força a cabeça de um dos mortos. — Desse jeito não sobra nenhum pedacinho de lixo pra você brincar também.

— Dispenso, Reiyama. — Foi tudo o que ela conseguiu dizer, evitando pisar em algum resto mortal perto de si. — Está tudo resolvido?

— Esses porcos sujos de Harenaris nem me divertem, uma pena eu ter matado todos tão rápido. Você!

A garra de sombras ergueu um homem, anteriormente escondido em meio à pilha de corpos na lateral do cômodo. Debateu-se como um peixe fora d’água, enquanto o predador deleitava-se com a aflição de seu novo brinquedo.

— Não dá pra esconder o cheiro da vida no meio da morte, seu verme! — urrou Hyoshin, apertando ainda mais o pescoço dele. — Me diga, rato harenariano, o que vieram fazer no meu império?

— Nós somos… apenas refugiados de guerra… não tem nada para… nós — agonizou ele, sem ar.

Ao pronunciar sua resposta, as garras da outra mão de Hyoshin perfuraram seu peito, matando-o na hora. Mitsuko se moveu ao seu lado, sujando as sapatilhas negras com sangue alheio e impressionada pela velocidade que seu companheiro havia derrubado tantos adversários.

— É uma piada. O povo de Nebula sofre há milênios nas mãos desses nobres malditos e ele ainda tem coragem de dizer uma merda dessa? — bufou o homem, cuspindo em sua última vítima.

— Você estava mesmo furioso — comentou Mitsuko, apenas.

Achou melhor não fazer mais comentários sobre a brutalidade utilizada ou sua opinião sobre a identidade étnica dos mortos. Não queria ter nem a chance de entrar no radar de inimigos de alguém tão forte como ele.

— Vamos voltar. Vou arrumar o que preciso para a viagem e vamos sair ainda hoje. — O olhar dele direcionou-se aos restos mortais, desdém emanando de suas íris vermelhas. — Deixe os corpos aí. Os vermes vão dar boas-vindas pra eles.

A luz lunar tornava-se cada vez mais fraca conforme caminhavam de volta à mansão. Em absoluto silêncio, contemplava o céu abandonar o frio do azul da noite e abraçar os tons quentes da manhã, apesar de não observarem diretamente qualquer astro pela densa névoa. Tudo que demonstrava que seguiam no mesmo ritmo eram as batidas compassadas dos pés no chão, fortemente audíveis.

— Ei, Reiyama — chamou a mulher, para a surpresa de seu acompanhante. — você acha que os pobres desse reino poderão ver as estrelas algum dia?

O moreno não respondeu, mantendo o ritmo constante de suas passadas largas. Mitsuko assumiu que sua pergunta seria meramente retórica — esperar empatia de alguém como ele era trair sua própria inteligência, o que a fez se contentar com o silêncio.

O quão surpreendida foi quando a voz grossa pigarreou em meio à névoa, chamando a atenção para si.

— Não me importo com o povo — constatou ele, sem rodeios. — Se o que o chefe planeja funcionar, com certeza as cabeças dos nobres vão rolar e apenas os fortes vão sobreviver. E o povo de Nebula é o mais forte de todos.

— Tem razão. Obrigada.

— Não esperava que fosse puxar papo comigo, baixinha. Está tão interessada assim? — Hyoshin não perderia uma provocação por nada.

— Não é por mim. Não tenho o menor interesse em você ou em qualquer outra pessoa.

“É tudo por mim mesma”, completou em seu interior. Se o sangue de muitos teria que ser derramado para mudar as injustiças, então Mitsuko estaria disposta a sujar suas mãos por um futuro melhor. Ninguém mais sofreria, enquanto isso dependesse do esforço dela. 

— Pensando na Kyo? — deduziu o Guardião de Fenrir, mesmo sem a visão de seu rosto. — Também estou com saudades da mudinha.

— Não só nela. Mas não importa, vamos nos apressar.

Hyoshin não quis forçar uma conversa, embora tivesse percebido uma mudança sutil na aura de Mitsuko — um misto entre angústia, raiva e culpa, tão pequeno mas tão destacado de seu padrão rígido e controlado.

Ela jamais admitiria para ele, mas talvez não estivesse tão pronta assim para realizar sacrifícios.



Comentários