Volume 1
Capítulo 3.2: Visões
O turbilhão passou e sentiu uma superfície sólida o suficiente para apoiar os pés e parar os movimentos circulares. Finalmente pôde ver onde estava — o castelo de Dracone, tão amado e tão conhecido por ele. As íris esmeraldinas logo começaram a perceber que havia algo errado no local, embora fosse reconhecível.
Havia sangue espalhado pelas paredes e jardins do castelo, além de dezenas de cadáveres. Engoliu em seco, em busca de manter-se calmo e estudar a situação, embora seu estômago não fosse tão de ferro a esse ponto. Havia terror e medo em cada passo dado por ele.
No breve período que caminhou pelos ladrilhos de pedra, percebeu que o grau de destruição era bem pior do que aparentava. Várias estátuas estavam destruídas, bem como os campos de flores plantados há décadas pelos antigos governantes. Conforme se aproximou do centro da região do palácio, os gritos e sons de magia sendo usada em combate alcançaram suas orelhas.
Houve um clarão e um grito de dor indecifrável, e então ele foi transportado para uma vista áerea. Diversos cenários que uma vez visualizou nos seus queridos livros de geografia, distantes de sua realidade em Yggdrasil, foram um a um aparecendo para causar mais angústia em seu coração.
A biblioteca real de Camones, o castelo suspenso de Forestrie, os dois palácios de Camelot… A cada cena, Shuyu sentia um sentimento de perda assolar suas emoções, entristecido pela devastação de tantas paisagens que um dia sonhou conhecer. Isto durou alguns minutos, até despencar dos céus e ser novamente movido para uma sala escura.
Na escuridão intensa, sentia-se observado: não podia ver nem um palmo à sua frente, quem dirá visualizar quaisquer formas que estivessem à espreita nas sombras. O medo preenchia cada fibra de seu ser e o impedia de se mover para procurar uma fonte de luz.
Seu desejo foi atendido quando os archotes prateados foram acesos todos de uma só vez por tremulantes labaredas arroxeadas, semelhantes à cor de seu cabelo. Deu-se conta neste momento que estava na sala do trono da capital dos Guardiões e quartel-general da Longinus, na cidade de Palas — sendo mais específico, no penúltimo andar de Olympia, a torre que alcançava o paraíso, a mais alta já construída.
A claridade não alcançou todo o cômodo, contudo. Sob a luz tímida das chamas, sete pares de olhos escarlates o encaravam, como predadores esperando o menor deslize de sua presa para destroçá-la. Eles estavam todos ao seu redor, circundando-o quase que por completo, com um deles bloqueando a enorme porta de carvalho.
Na lateral oposta, na qual Shuyu assumiu que estaria o trono da líder da Longinus, uma figura esguia podia ser vista sentada, seu contorno encoberto pelas sombras. Sua presença era sufocante e assustadora, tão intensa que o príncipe sentia sua mana ser suprimida dentro de si. Os olhos, em tonalidades que oscilavam entre o violeta e o azul, emitiam um brilho sinistro em meio à escuridão que o cercava.
Nem a memória mais aterrorizante de Shuyu comparava-se ao pavor que ele experimentou em seu interior ao encarar aquele par de íris coloridas. Era a própria maldade encarnada, o arauto do terror, bem na sua frente — palavra alguma foi necessária para confirmar as hipóteses de Mizuchiko.
Os sete vultos de olhos escarlates vestiam longas capas vermelhas, cada um deles portando uma arma diferente, embora todas emitissem auras entre o roxo e o carmesim. “Certamente são guerreiros de alto nível”, constatou Shuyu, buscando sua própria espada.
Sua ação foi interrompida pela movimentação do que parecia ser o líder dos ali presentes, que se levantou do trono sem fazer qualquer ruído. O longo dedo indicador apontou para o herdeiro de Yggdrasil, que foi engolido na mesma hora por um flash de luz púrpura.
— AH!
Os empregados rapidamente se afastaram do corpo subitamente desperto de Shuyu, que levantou em um salto. Seu grito ecoou pelos corredores, atraindo a atenção de mais alguns transeuntes anteriormente dispersos — pelo jeito, não ficou inconsciente tanto tempo assim. Ofegante e ainda um pouco assustado, ele ainda tinha sérias dúvidas sobre o que era aquilo que havia acabado de experienciar.
O rei chegou alguns minutos depois, quando o sol já não era mais visível e as primeiras estrelas surgiam no céu noturno. Em um gesto de simpatia, Shihan se ajoelhou à altura do filho.
— Shuyu, meu filho! Está tudo bem? — As luvas de metal frio tocaram o rosto do rapaz, agora sentado. — Me foi informado pela sua Majestade Sekisuna que você havia desmaiado de repente. O que sente?
Desorientado, o mais novo encarou o rosto de seu pai, ainda absorvendo a sensação estar de volta ao seu corpo físico. Alguns poucos segundos foram o suficiente para seu coração disparar e o desespero tomar conta de suas palavras.
— Pai, o mundo vai ficar em ruínas! Eu vi tudo, o castelo, a biblioteca de Camones, tudo vai ser destruído!
— Do que está falando, Shuyu? Está mesmo bem? — O rei não parecia acreditar nem remotamente em seu filho. — Não existe uma única ameaça que o senhor Houseki não consiga resolver, quanto mais a Longinus inteira!
Shihan ajudou o filho a se levantar, fazendo este quase tropeçar na longa capa branca. O rapaz buscou detalhes em sua mente para enfrentar a desconfiança no olhar de seu pai, angustiando-o ainda mais.
— A sala do trono de Palas — disse, quase que em um sussurro.
— O que?
— Oito pessoas, pai! Sete com olhos escarlates e uma com olhos violeta! — Agora, tinha toda a atenção do homem. — Eles tinham armas e vestiam capas vermelhas, todos exceto o de olhos violeta!
— E você não viu o rosto de nenhum deles, meu filho? — questionou o rei, com uma pitada de descrença.
— As sombras não deixavam, é como se estivessem os escondendo… Mas eu tenho certeza absoluta que aquela era a sala do trono no penúltimo andar de Olympia.
— Shuyu, o que você está dizendo é bem sério.
— E ele não poderia estar tentando ser mais sério com você, Shihan — ressoou, além da multidão, uma voz feminina. — Dá para ver no olhar dele o terror do que está falando. Não é mentira alguma.
A passos rápidos, Suika Jishima, a comandante do exército de Yggdrasil, atravessou a multidão. Diferente de Keishi Houseki, vestia o uniforme da Longinus na versão feminina, com saia plissada e os detalhes em vermelho. Os olhos verde-piscina carregavam um ar tranquilo, apesar do clima pesado: na visão dos outros, poderia ser por sua presença poderosa e confiante, mas Shuyu sabia exatamente o que sua querida “Tia” estava pensando.
— Se diz, Sui… Quem sou eu para duvidar da capacidade de dedução da minha pessoa de confiança? — suspirou o homem barbado, ajudando seu primogênito a se levantar. — Por favor, leve o Shuyu até o quarto. Vou enviar uma mensagem para Palas convocando uma reunião real o mais rápido possível.
— Com certeza, meu rei!
Após uma breve reverência de sua general, Shihan se retirou apressadamente. Quando ele saiu do campo de visão e os serviçais se dispersaram, a guerreira passou seu braço pelas costas do príncipe, puxando-o para baixo para afagar amigavelmente seus cabelos.
— Claro que você só queria mexer no meu cabelo, tia Suika… — sussurrou com a voz abafada o menino.
— Poxa, meu garoto, eu troquei suas fraldas e você ainda me chama de tia? — brincou a mulher, aumentando a força de seu aperto.
Se havia alguma formalidade antes entre eles, esta sumiu no momento em que ficaram a sós. Embora mantivessem as aparências em público por mera necessidade, Suika era a ;única que Shuyu não precisava nem mesmo dar a liberdade de tratá-lo como um cidadão normal. Mesmo com 40 anos, a comandante ainda mantinha bíceps fortes e marcados. Em conjunto com o cabelo negro arrumado em duas marias-chiquinhas, sua aparência seria facilmente confundida com uma adulta na casa dos 20, talvez até um pouco mais jovem.
Ser uma Abençoada, claro, também tinha sua pitada de importância nessa jovialidade.
— Tá bem, tá bem. Te amo também, mãe — disse por fim. Ela o respondeu com um largo sorriso.
— Obrigado, Shu! Mas vamos ao que interessa. — A voz dela deixou de ecoar pelo corredor, assumindo um tom controlado. — Mais uma “visão do futuro”? O que foi desta vez, algo com a princesa de Helias?
Lado a lado, caminharam pelo trecho que conectava a Academia de Dracone ao palácio real, com os sons de seus calçados batendo nos ladrilhos de pedra se espalhando pelo ambiente.
Shuyu não conseguiu segurar a vontade de tocar de leve as belas e bem cuidadas flores do jardim. Este movimento inocente na visão do príncipe trouxe um invisível véu de frustração para Suika, que buscou não se expressar. Ela soube que algo estava errado quando ele colocou a mão no pescoço, movimento que ela tinha absoluta certeza de que ele aprendeu observando-a.
— Quem dera fosse… Só o fim do mundo, nada de mais — desmentiu ele, após algum tempo admirando as cores. — Me pergunto se sou mesmo capaz de ver o futuro.
— Dessa vez, acho melhor você não ter esse poder. Mas se for o caso, pode ficar tranquilo que vou te treinar para sobreviver.
O riso contagiante de Suika aliviou um pouco da tensão nos ombros de Shuyu, como ela desejava. Andando de costas com as mãos na nuca, ela parecia ser apenas um pouco mais velha que Shuyu a esse ponto. O príncipe, antes nervoso e um tanto acanhado, agora tinha um olhar irritado para a mulher.
— Tenho medo dos seus exercícios, mãe. Da última vez, eu quase morri caindo naquele fosso com crocodilos!
— Você tinha que conseguir se defender ou eu não teria como continuar o que planejei para você. - Suika deu de ombros, despreocupada. — E se você não conseguisse, eu iria te salvar na hora. Sei exatamente quando for a hora de parar.
Os métodos de treinamento militar da comandante de Yggdrasil eram, sem sombra de dúvidas, exóticos. Apesar de estar a pouco tempo treinando sob a supervisão da morena, já podia concordar com todos que lhe disseram isso antes.
— Não foi o que eu ouvi quando quase perdi meu braço — bufou, ainda com a memória de seu primeiro dia fresca na cabeça.
— O que importa é que você não desistiu. Esse é o espírito, meu querido!
— Alguma hora eu ainda vou matar aqueles lagartos malditos. — O sorriso torto no rosto dele fez a mulher rir mais alto.
Haviam chegado, finalmente, aos aposentos do rapaz. Quando ele ia encostar na maçaneta, recebeu um cascudo bem dado, fazendo-o perder o equilíbrio. “Ela sempre esquece da força que tem…”, reprovou em silêncio, esfregando onde sabia que um galo surgiria.
— Ei, Shu. — chamou a guerreira, com os braços abertos. — Sei que sempre brinco com você e que, às vezes, seu pai não te leva a sério. Mas saiba que te amamos muito.
Uma fisgada foi sentida em seu coração. Shuyu sabia o sentimento que Suika desejava passar para ele, embora doesse em sua alma não poder correspondê-lo. Ele forçou o melhor sorriso que pôde, se colocando no aperto caloroso dela.
— Também te amo, mãe. Te vejo amanhã para o treino?
— Com certeza! Estarei no salão no café, já te esperando.
— Certo. Boa noite.
A porta de carvalho escuro foi fechada com pesar atrás de si. Dentro do quarto repleto de quinquilharias estrangeiras, o príncipe apenas se jogou em sua grande cama, sem nem mesmo tirar o uniforme sujo da batalha.
Fosse pelo esforço físico de lutar com Ayame ou pela tortura psicológica de suas visões, os músculos dele relaxaram no mesmo instante em que sentiram o aroma floral de seus lençóis. Aos poucos, o frio da noite de primavera foi substituído pelo calor imaginário de um campo ensolarado de girassóis.
— Yoko… — balbuciou por fim, caindo no sono logo em seguida.