Volume 1
Capítulo 30: Colegas de quarto
1 de Fevereiro de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, Praça de Olympia
Uma enorme multidão de jovens circundava os gramados ao redor de Olympia, a torre do paraíso. Fosse pelo exame escrito de quase três horas na noite anterior ou pela madrugada repleta de ansiedade pela cerimônia prestes a acontecer, Togami tinha a certeza que dormiria em pé se nada acontecesse nos próximos cinco minutos. Era o terceiro puxão de orelha que levava de Hanako por piscar por tempo demais, quase caindo no chão no processo.
Escutava comentários aqui e ali de outros novatos, alguns descaradamente apontando para ele — fosse sua aura, altura ou o fato de estar acompanhado de duas princesas, a dose de inveja e temor o nauseou. “Ao menos, não é pior do que lá em Sophis”, consolou-se o garoto, cuja íris azul do olho esquerdo buscou o apoio de Reiko. A garota movia-se com fervor de um lado a outro, trocando o pé de apoio em um ciclo muito bem ritmado.
— Ei, Rei — chamou em voz baixa, para apenas ela ouvi-lo – vai demorar muito pra Líder aparecer?
— Se minha contagem de tempo está correta, faltam exatamente 56 segundos para as dez da manhã. Então, não.
— Você tá contando o tempo? — O choque no rosto de Togami fez a garota de cabelos castanhos rir.
— Claro. De que outra maneira eu saberia que horas são sem um relógio?
— Nenhuma pessoa faria isso! — retrucou, descrente. — Na verdade, acho que ninguém consegue fazer isso!
— Nenhuma pessoa sem uma memória tão boa quanto a minha. — O dedo apontada para si mesma foi acompanhado de uma face travessa e uma piscadela. — Essa é a característica dos Chiwa. Achei que já tivesse entendido, Togami!
Incapaz de formular uma resposta à constatação dela, Shinwa concordou pelo silêncio. “Tem dias que eu esqueço que estou lidando com a Rei e não com uma garota normal”, confessou. Hanako, que até então acompanhou a interação sem quaisquer comentários, indicou com a cabeça para olharem na direção de Olympia, como faziam os demais alunos.
Diversas figuras, algumas conhecidas de Togami e outras não, surgiram na sacada do quinto andar, acenando ao público. Pôde localizar Yumeko Chiwa e Asahi Koufuku um ao lado do outro, com os olhos vidrados nas filhas de ambos — estas logo os perceberam também, devolvendo o gesto empolgadamente. O garoto se perguntou se Amaka Ryoujin e Shihan Mizuchiko estariam lá também.
À esquerda de Asahi, havia uma mulher de longos cabelos pôr-do-sol, seguida então da anfitriã do evento. O cigarro em mãos não deixou dúvidas de que se tratava da Líder Suprema em pessoa. O trio sentiu algo preencher o ar ao redor, como uma parede maleável e invisível. O pigarreio da mulher ecoou entre eles, algo que deveria ser impossível de ouvir lá de cima.
— Jovens de toda Ouras! — saudou a comandante. — É um imenso prazer receber todos aqui presentes.
“Sou a Ducentésima Décima Primeira Líder Suprema da Longinus, Taeka Haruki, para aqueles que não são capazes de me ver agora. Hoje, porém, represento algo muito além de qualquer um de nós.”
O símbolo da Longinus surgiu em uma tonalidade dourada logo acima da torre. Do ângulo em que estava, Hanako notou se tratar de uma obra de Taeka, que erguia seu dedo indicador em riste aos céus.
— Muito antes das pegadas de nossos ancestrais desaparecerem para sempre, neste mesmo solo que toca seus pés… — O símbolo agora brilhava no chão. — Um sacrifício foi feito em prol de nossa espécie.
“Dizem que este homem, cujo nome perdeu-se no tempo, usou sua lança para perfurar um deus. Fosse pela confiança nele depositada, pela decisão de um ser para além do véu da vida e da morte ou por mera coincidência, o desejo deste guerreiro foi atendido, e um deus conheceu a dor da carne pela primeira vez.
“Tornar o impossível, possível; a mentira, verdade; a descrença, fé. Irmos tão além de nosso potencial que as estrelas subitamente estejam ao nosso alcance e os céus tenham se dobrado ao nosso chamado.
“Isto significa ser um Guardião.”
Com sua percepção extremamente aguçada, Taeka sentiu aquelas milhares de auras reverberarem com suas palavras, o que a fez abrir um sorriso satisfeito. “Às vezes, é legal sentir tudo o tempo inteiro”, refletiu, atenta aos movimentos da grande massa no gramado. Cutucavam-se, discutindo em tom muito baixo sobre o significado daquelas palavras tão complexas ao repertório deles, enquanto eram encantados por terem um vislumbre do peso que agora era jogado sobre seus ombros.
Porém, o carinho dela logo transformou-se em angústia, e um sentimento de medo envolveu o coração da Líder em trevas.
Todos ali eram seus subordinados. Como todo ano, via aquelas faces repletas de esperança e desejo de mudarem o mundo, embora soubesse se tratar mais de um ideal juvenil do que uma possibilidade real. E, assim como todo ano, ela também sabia que apenas metade daquele grupo persistiria através das patentes para se formar na Academia de Palas dentro da próxima década. Isto sendo otimista.
Fosse por morte, pressão ou invalidez, ser um Guardião era uma jornada de altíssimo risco — nem os mais fortes Abençoados que conheceu conseguiram fugir de serem açoitados pela vida ingrata que era ser um soldado da Longinus. Coincidentemente ou não, desde a morte do último rei de Palas, mais e mais assassinatos apareciam a cada primavera, do médio ao baixo escalão. Para quem assumiu em meio ao caos crescente, Haruki estancou bem a onda exponencial, embora os números seguissem alarmantes.
O fardo da responsabilidade erguia-se sobre suas costas, pesado como o céu sustentado por Olympia. Ela era a única capaz de mudar o rumo daquela situação, mas seus esforços estratégicos para desmantelar grupos criminosos mostravam-se infrutíferos diante das repetidas frustrações. Reiyo confortava-a, tentando aliviar a culpa por ela carregada e buscando argumentos para mostrar o esforço da comandante em prol da paz. As noites mal-dormidas de Haruki, fonte de suas horas em frente ao espelho maquiando-se ao máximo para ocultar os traços de seu cansaço.
Qualquer forma de paz espiritual era violentamente tirada dela quando se obrigava a comparecer aos enterros de seus soldados. Nos gramados silenciosos de Genten, nas montanhas mórbidas de Bliz ou no calor sufocante das florestas de Tellus, ela não deixou de comparecer a nenhum dos mais de mil rituais de despedida feitos para aqueles que partiram sob seu comando. Não importasse onde, ela lá estaria para receber os agradecimentos, ofensas e lágrimas derramadas por seus erros como Líder Suprema. Se falhara com aquelas pessoas, o mínimo que poderia fazer era ser o cordeiro que livrava as pobres almas de suas dores.
Altos e pesados, cada passo dela carregava a alma de todos aqueles que morreram por um propósito maior. Eles eram a cruz torturante, a ser carregada por ela até a morte levá-la em seu último suspiro — milhares de nomes de homens, mulheres… crianças, esquecidos pela memória de suas tropas mas jamais pela dela.
Lembraria de cada um deles. Hoje e sempre. Por ora, suas emoções negativas seriam negligenciadas.
— Como já foram informados, é hora de receberem seus uniformes. — Afastou aqueles sentimentos ruins com um gesto firme das mãos. — Adentrem por estas portas e encontrarão suas roupas, feitas sob medida, e a indicação de seus dormitórios. Àqueles sem uma deidade, desçam ao subsolo em seguida para escolherem uma das muitas oferecidas pela Longinus.
Gritos de empolgação foram ouvidos em cantos da multidão, em grande quantidade. “Acho que esse ano temos mais recrutas sem um deus para servir”, pensou Taeka, antes de silenciá-los com sua aura.
— Por fim… sejam mais uma vez bem-vindos ao ponto de partida de um futuro grandioso — reiterou, com a mão direita ao peito. — Que a Estrela do Amanhã os guie ao seu destino!
Pela segunda vez, seus subordinados reagiram com intensidade às palavras de incentivo, logo partindo para cumprirem com o cronograma do evento. Pouco a pouco, o campo verde tornou-se outra vez visível para os reis e rainhas na sacada da torre. A primeira a se dirigir à Líder Suprema foi uma donzela de longos cabelos brancos — como todos ali, vestia o uniforme da Longinus, com detalhes brancos-quartzo nas botas e bordados. A coroa bem colocada sob sua cabeça dispensava apresentações.
A mulher puxou a barra de sua saia, em saudação.
— Belíssimo discurso, mestra Haruki. — Olhos tão pretos, de forma que escondiam as pupilas, encararam os alaranjados de Taeka. — Mesmo eu senti-me cativada pela senhorita.
— Modéstia sua, Aime.
— Não há motivos para uma Kan’ai mentir, mestra — reforçou a mulher. — Senti todas aquelas almas vibrarem pelo seu discurso. Foi esplêndido.
— Concordo, mestra!
Uma outra mulher, esta de cabelos ondulados e rosados e um pouco mais alta do que Aime, se juntou a elas, sorrindo de orelha a orelha. Pela janela dos olhos azul-mar, a comandante da Longinus tinha certeza de que ela estava sonhando acordada com alguma ilusão criada por suas emoções intensas. A maneira que Aiko Reigo, rainha de Eromi, rodopiou no lugar a fez ter certeza de sua dedução anterior.
— Embora eu tenha a impressão de que a inquietação foi causada por amores juvenis surgindo diante dos nossos olhos!
— Aiko, você sempre quer pensar no romance antes da realidade — riu a Líder, para a raiva dela. — Acho que você disse isso todos os anos desde que virou rainha.
— Mas o que mais eu diria quando tantos corações irradiam o amor no ar? — advogou a rosada. — Como eu adoraria levar minha vida como uma valsa romântica com um belíssimo príncipe!
Prevendo um longo desabafo sobre como se sentia sozinha, Aime silenciou sua amiga com seus poderes, envolvendo sua boca em névoa. Alguns riram, simpáticos à ideia da governante eromiana, ao passo que outros tomaram o próprio rumo para a saída. Como chefes de Estado, não tinham tempo a perder com diversão, ainda mais durante o fim do primeiro mês do ano. Tinham encontros e reuniões com um amplo número de negociantes de Palas, então usariam o intervalo breve entre esta cerimônia e a sessão de encerramento do exame, marcada para a noite daquele mesmo dia, com muito esmero.
Apenas os pertencentes à geração mais recente de monarcas permaneceram quando Aiko se livrou das amarras de névoa, furiosa. Aime sabia da sessão de gritos por vir, então tapou as orelhas com as mãos pálidas, brancas como seus cabelos.
— Aime Kan’ai, eu já te disse pelo menos dez… dez! — A ênfase no numeral arrancou mais algumas gargalhadas dos colegas. — Para não usar sua névoa em mim! É muito frio, poxa!
— Ela só estava te impedindo de parecer uma velha amargurada — comentou um homem de cabelos platinados, presos em um rabo de cavalo alto. — Deveria agradecer ela de te poupar da vergonha.
— Vai atrás da sua esposa de uma vez e não me enche, Hiko!
— Claro, Ai. Não que eu tenha que pedir sua permissão para isso.
A figura esguia de Hiko Katsui, o rei de Genten, se virou para a saída, seus olhos dourados apenas levemente visíveis sob a franja no centro do rosto e sobre os ombros largos dele. O anel dourado em sua mão esquerda, inscrito com o nome “Shou”, reluziu quando ele acenou em despedida aos seus colegas. De fato, tinha coisas mais importantes a fazer, como buscar sua esposa para uma merecida lua de mel.
Para quem estava se acostumando à presença constante da mulher baixa de olhos púrpura, não a ter consigo por quase uma semana foi… delicado, na falta de uma palavra melhor. Teve, ao menos uma vez a cada dia, um momento de desatenção em que dirigiu a palavra para sua esposa ausente — no café da manhã, oferecendo comida ao ar; durante o banho, perguntando se poderia lavar suas costas, e até na hora de dormir, em que pediu para ela desligar a luz, se dando conta apenas cinco minutos depois que não estava acompanhado.
Mais um dia longe dela e iria descarrilhar de vez.
— Que bom que a Shou convenceu a deixarem o Touma lá em Orbisla… Eu ficaria doido tendo que esperar meses pra ver ela uma vez — confessou para o nada, não esperando uma resposta.
— Então é assim que você se sente, Hicchi?
Só uma pessoa o chamava daquele jeito. Espantado, virou-se para procurar a fonte da voz tão conhecida, mas nada encontrou em seu campo de visão. A risada calorosa trouxe ao seu rosto uma iluminação, percebendo seu erro. “Lerdo como sempre”, pensou ele, revirando os olhos pela sua habitual incompetência.
— Tá, Shou, pode sair da minha sombra!
A ordem foi cumprida pela mulher, que se materializou atrás dele com um abraço firme ao redor de sua cintura. Hiko girou o corpo para encarar o belíssimo sorriso de sua esposa — trocaram breves olhares apaixonados antes de um beijo repleto de saudades.
— Alteza, o que achou?
Yoko acompanhou o uniforme masculino da Longinus de Ichika ganhar detalhes no mesmo rosa-fúcsia emitido pela aura do garoto durante o exame. As cores escuras das vestimentas contrastavam muito bem com aquele tom ofuscante e com o cabelo salmão dele.
Diferente de muitos ali, surpreendidos pela súbita mudança de paleta das roupas entregues aos novos soldados, Yoko tinha conhecimento suficiente sobre as roupas da organização para manter-se estoica à empolgação do ambiente. Seu colega, por outro lado, estava inebriado pela euforia coletiva, dançando no lugar para se mostrar de todos os ângulos possíveis.
— Ficou ótimo em você. Te dá um pouco de largura nos ombros.
— Essa impressão é mais que bem-vinda! — celebrou o garoto. — A senhorita também ficou extremamente bonita!
— O objetivo dos uniformes de Aracne é serem práticos e confortáveis. — O apontamento apático de Kan’uchi fez Ichika revirar os olhos. — Acho que cumpre ambas as premissas.
— Não está sendo demasiada técnica, Alteza?
— O que insinua?
— A major Rikage ouviu a senhorita chamando algum nome.
Assim como as bochechas coradas, os bordados laranja-avermelhados do uniforme feminino de Yoko incandesceram por conta das emoções intensas da nobre solana. “Bingo”, pensou Seiyama, observando a princesa forçar o rosto a manter neutralidade, embora estivesse falhando muito mais do que gostaria em ocultar o reflexo de um sorriso bobo.
— Não compreendo do que estão falando — retrucou, monótona.
— Poxa, você não quer chamar a atenção de ninguém? Um amor não correspondido? Um admirador secreto? Um plebeu que tomou seu coração?
A insistência repetitiva de Ichika obrigou a herdeira a simplesmente ignorá-lo, antes que a pressão emocional sobre ela fosse forte demais. Rumores espalhariam-se como fogo em palha entre adolescentes, e algo tão ultrajante como a relação romântica entre os herdeiros dos dois maiores rivais políticos da história seria motivo de um escândalo sem precedentes.
Se dependesse de Yoko, teriam mantido o segredo até suas respectivas coroações, com o objetivo de minimizarem os riscos de serem ostracizados socialmente. Seu querido namorado, porém, teve outros planos ao abrir o jogo com Tatsuyu e as duas outras princesas da Aliança dos Quatro Tronos. Tinha plena certeza de que nunca ofendera tanto alguém como quando escreveu a Shuyu aquela carta furiosa. Até diria que o arrependimento depois de enviá-la a deixou para baixo, mas foi necessária, sem dúvidas.
Reiko era sua principal preocupação entre o seleto grupo de portadores da confidência — afinal, era a “Princesa Falastrona”, conhecida por ser um livro aberto quanto às suas intenções e extremamente sincera. Se pisassem no calo dela, não demoraria para Kyouka Kan’uchi em pessoa invadir a sede da Longinus para iniciar uma nova guerra entre Helias e Yggdrasil. A mera imaginação da decepção assustadora de sua mãe causava calafrios na princesa solana.
Diversos comentários soaram aos ouvidos dela, atenta às movimentações dos outros estudantes presentes naquele vestiário unissex. Um trio de auras era bem mais notável no mar de mana, sendo estas o centro do burburinho na seção sudeste do ambiente. Os sons sem sentido tomaram forma conforme passou a destinar uma parte maior de sua atenção a eles.
— Quem é aquele garoto baixinho ao lado de Sua Alteza Koufuku?
— A roupa dele também não mudou de cor… que estranho.
— Com sua licença — solicitou Ichika, abrindo caminho por entre a multidão. — Ei, senhori…
— Rei! — gritou o jovem, enfim desfazendo a expressão séria que tinha nos olhos heterocromáticos para dar lugar a uma frustração quase infantil. — Por que só os uniformes de vocês mudaram de cor? E eu fiquei com esse branco horrendo?
A dupla de Helias olhou um para o outro, confusos. A maneira que o menino de cabelos bicolores se dirigia não só a uma nobre, mas a herdeira do mais poderoso reino do continente de Aquapia indubitavelmente não era adequada para alguém de baixa classe, como assumiram pelos cabelos desarrumados e ausência de adornos adicionais na roupa recém-recebida por ele. Menos esperado ainda foi a risada genuína que a Princesa Falastrona soltou diante do comentário dele, junto de um sorriso traiçoeiro.
— Togami, às vezes acho que você se faz pra me divertir.
— O que você tá insinuando, cabeça de vento?
— Que você não consegue associar uma coisa a outra da mesma maneira que uma criança não entende que um mais um é dois. — Ichika segurou para não perder a compostura com aquela frase. — Dã, é a cor das nossas auras, bobão, eu sou dourado e a Hana é laranja. O que é tão difícil pro seu cérebro de esquilo?
— Porra, não tenho problema algum em entender isso! — retrucou o baixinho, ainda mais colérico. — Mas nem pra mudarem meu branco pra prateado, sei lá! Só é feio demais!
— Me perdoem por interromper sua conversa, meus caros colegas!
Os olhos de ambos direcionaram-se à Ichika, cuja movimentação silenciosa Yoko nem percebeu até ele se pronunciar. A pose galante de Ichika valorizava bastante sua silhueta atraente, recebida com suspiros apaixonados de muitas meninas, mas não pareceu surtir efeito algum em Reiko ou Togami, que apenas o encararam de baixo a cima como se olhassem para alguém fora de suas faculdade mentais.
— Quem é tu? — questionou o rapaz, erguendo uma sobrancelha.
— Eu lembro bem de alguém com o rosto bem parecido com o seu… — Um segundo foi suficiente para a Guardiã de Atena revirar suas memórias e, então, abrir os olhos com empolgação. — Seiyama?
— Não sei dizer se me reconhecer assim é algo muito bom ou muito ruim pra mim.
— Que nada, lembrei dessa presilha lindíssima! Você continua muito bonita! — Pelo sorriso amarelo e roupas masculinas, a Chiwa notou seu erro, corrigindo-o sem demora. — Oh… bonito, então?
— Obrigado, Alteza!
— Se um nobre de Helias está aqui, isso quer dizer…
Reiko escaneou as pessoas atrás do rapaz com as orbes azuis, logo encontrando os cabelos pôr-do-sol de sua semelhante entre as muitas cabeças que conseguia ver de sua visão alta. A aproximação imediata da ateniense não deu tempo de Yoko se preparar mentalmente para aquele encontro. Engoliu em seco o receio para se curvar em saudação ao trio, sob a observação curiosa de Hanako e Togami.
— Oi, oi, Kan’uchi! — saudou Reiko. Um chute rápido de Hanako a corrigiu. — Ai! Tá, Alteza Kan’uchi.
— É um prazer nos encontrarmos neste momento, Alteza Chiwa, Alteza Koufuku. — Nem um pingo da hesitação que sentia transpareceu em sua apresentação impecável. — Embora me conheçam de vista, suponho, permitam-me anunciar minha presença. Sou Yoko Kan’uchi, princesa de Helias. E tu, serias…?
— Togami Shi… — Impediu-se de continuar ao notar o que estava prestes a falar. — Togami, prazer. Só Togami.
— E eu sou Ichika Seiyama, prazer, Togami! — acrescentou o outro menino.
Não demorou muito para os dois começarem a conversar, excluindo as meninas de um debate acalorado sobre o exame da semana anterior. Hanako revirou os olhos, ainda com as íris âmbar a encarar, com estranheza, a figura do nobre solano. Já escutou uma vez sobre pessoas como ele ao visitar Helias e Sophis com sua família… Ver a situação assim, tão perto de si, gerava curiosidade e um pouco de repulsa. Ela sabia ser irracional, sem sentido algum e talvez até cruel — queria se amaldiçoar por ter tais pensamentos.
— Não se culpe, querida — sussurrou Titania em sua mente. — É natural aos seres humanos repelirem o que não entendem.
— Ma…
— Apenas de pensar que isto não é certo, a senhorita já está muito acima de grande parte dos homens. — A imagem mental da belíssima deusa entregou um sorriso singelo a ela. — Agora, aproveite esse tempo assim como seu pai aproveitou.
— Hana, eu sei que tu tá falando com a Titania mas presta atenção um pouquinho!
A voz estridente de Reiko foi a primeira coisa que ouviu ao voltar ao plano material. Pela forma que até Yoko a encarava, sua distração dentro do subconsciente a fez perder algum assunto bem importante — o bufar nítido de sua melhor amiga a fez ter certeza. A raiva logo se transformou na usual animação da Chiwa, que pegou nas mãos da ruiva.
— Já sabemos quem é a terceira pessoa do nosso apartamento! — repetiu a jovem, apontando para a princesa do sol. — A Yoko…
— Senhorita Kan’uchi, Rei.
— Mi, mi, mi… Tá bom, a senhorita Kan’uchi também está no 804 do prédio 440! — completou Reiko. — Demos sorte de pegar tanto o apartamento quanto o lado dos dormitórios que fica pro leste. O quarto com vista pro nascer do sol é meu!
— Bem, então vamos por caminhos separados… — suspirou Togami. — Peguei o 403, prédio 190. Pelo que você falou, tudo virado pro oeste. E você, Ichika?
— 903, prédio 252. Colado na ponta noroeste e sem vista pra nada. — Uma lágrima de frustração escorreu pela lateral do olho dele. — Precisarei que algum de vocês me empreste uma janela para que eu possa pintar o crepúsculo! Por favor!
Riram mais um pouco, se despedindo em seguida para seguirem seus respectivos endereços. Cansado dos olhares e murmúrios incessantes sobre sua aparência e aura, Togami acelerou por entre a multidão para ir o mais rápido possível à sua nova morada. Sua corrida desenfreada refletia, também, parte de sua ansiedade com a ideia de dividir um espaço com alguém que não fosse sua família.
— Como vão ser os meus novos colegas? — A dúvida se materializou pela voz dele, um tanto nervosa. — Pensando melhor, eu vou ficar dez anos morando com eles, né? Espero que sejam legais.
Junto do informativo indicando a localização, havia também uma chave, cujo funcionamento seguia o mesmo mecanismo de pigmentação do uniforme. Olhando ao redor, era um dos primeiros a chegar no perímetro dos dormitórios — diante daqueles prédios, milimetricamente espaçados e ligados por pontes em diversos andares, a sensação era a mesma de olhar para uma muralha de quase 40 metros de altura. Não tinha a mínima noção sobre como a Longinus conseguia manter tamanha estrutura e ainda ter tantos recursos à disposição de seu exército. Pensar demais naquilo não fazia sentido ali.
Por dentro, a decoração era tão esplendorosa quanto, sendo repleta de estatuetas, chão polido e materiais refinados. Teve alguma dificuldade para compreender o uso do elevador, mas logo conseguiu se dirigir ao quarto andar e encontrar a enorme porta com a numeração “403” esculpida na madeira chiquérrima. A chave metálica branca reluziu em suas mãos, aflita por adentrar a fechadura e dar início à nova fase da vida do garoto.
Há quase dez anos atrás, seu irmão deveria ter passado pelo mesmo filme que ele. O frio na barriga de um novo mundo inteiro abrindo-se para dele explorar, um único passo que significava muito mais do que ele era capaz de compreender para a jornada de sua vida. Tsuyoshi Shinwa sentiu tudo isso, tinha essa certeza em seu coração.
— Certo, vamos lá! — reafirmou sua confiança, encaixando o objeto no trinco da porta.
Porém, quando tentou girá-lo, nada aconteceu. “A porta está aberta?”, pensou, impressionado com o descuido da Longinus em uma área tão importante como aquela. O hall privativo do conjunto se revelou aos seus olhos heterocromáticos, que localizaram três pares de calçados estacionados na sapateira bege à esquerda da entrada. Cauteloso, Togami guardou suas próprias botas antes de seguir pela passagem ao próximo cômodo.
Vozes masculinas — três delas — soaram dele.
— Cara, que apartamento foda! Quem será que vai ser nosso último colega?
— Não sei, Heishi. Espero que seja um cara legal.
— Com certeza vai ser, Shu! Foram muito gentis de colocar todos nós juntos. Será que a gente deveria ter esperado pra entrar?
Reconheceu ambos os interlocutores com apenas aquela interação. Não podia acreditar que a sorte sorriu para ele daquela forma.
— Tatsuyu?
O nome escapou por entre os lábios entreabertos de Togami, e os três pares de orbes viraram para ele. Shuyu Mizuchiko, Tatsuyu Fukushu e Heishi Reiketsu, vestidos em seus uniformes, retribuíram o choque dele com um grito empolgado.
Os primeiros fios estavam, enfim, reunidos novamente.
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