Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 1

Capítulo 29: Palas, a Cidade dos Guardiões

30 de Janeiro de 4818 - Continente de Origoras, Cidade-Estado de Palas, nos arredores Portão do Dragão

 

 — Cara, como é bom estar limpo depois de tanto tempo!

Sentados na sauna, Heishi, Shuyu e Tatsuyu aproveitavam a temperatura agradável — pelo menos, para eles — do ambiente para relaxar por completo o corpo. A viagem da ilha do exame até este hotel, logo nas proximidades do Portão do Dragão, demorou algumas boas horas, tempo mais que suficiente para a fome atacá-los por dentro. A prioridade de todos, porém, foi partir para a área de banho. “Por razões óbvias”, como disseram as meninas antes de se separarem do trio de rapazes imersos no vapor.

— Quanto será que custa pra manter esse hotel inteiro só pra gente? — Tatsuyu encostou as costas na parede, pensativo. — Ou será que eles oferecem de graça pra Longinus pelo serviço de proteção?

— Não queira nem saber o trabalho que dá essas conversas, Tatsu.

O príncipe de Yggdrasil estalou o pescoço, um tanto incomodado ao lembrar dos valores obscenos que escutou na última reunião. Para poupar sua própria beleza, preferiu que o assunto não continuasse.

— A parte triste é que poderíamos estar aproveitando tudo isso mais tempo se tivéssemos demorado menos pra ganhar da senhorita Kyotake — lamentou Shuyu. — As poucas vezes que vim com meu pai foram ótimas.

— É a primeira vez que fico em um hotel! É tão legal ter todo esse espaço disponível! E a comida, e a piscina…

O sorriso singelo de Tatsuyu enquanto listava as muitas coisas que chamaram sua atenção desarmou a revolta interna do menino de cabelos arroxeados. De fato, sua condição de herdeiro o fazia achar “desperdício” pagar para ter um espaço tão luxuoso ao seu dispor, mas esquecera que muitos dos competidores que passaram eram como seu amigo — jovens que nunca tiveram a experiência de aproveitar uma vida confortável um dia sequer. “Tenho um longo caminho até compreender de fato meus súditos”, refletiu, levantando-se em seguida.

— Bem, não podemos sair daqui até depois de amanhã. Que tal irmos jantar com as meninas? Elas ainda devem demorar, dá tempo de comer uns petiscos lá no restaurante antes da refeição.

Os olhos azuis de Heishi brilharam diante do convite. Justificaria-se dizendo que estava interessado em “admirar a paisagem” — algo que seu amigo de longa data sabia bem o que significava de fato.

— Vamos, por favor! 

— S-S-Shuyu, arruma a-a toalha!

— Ué, mas qual o problema de estar assim?

Tatsuyu não achou coragem o suficiente para dizer nada, apenas deixando que suas orelhas rubras como suas orbes falassem por si o porquê ele queria que as partes íntimas do príncipe voltassem ao esquecimento.

 

 

Devidamente trajadas em seus vestidos brancos sem mangas, fornecidos de cortesia pelo estabelecimento, o trio de garotas caminhava com muito entusiasmo pelos corredores luxuosos repletos de outros alunos como elas. Quer dizer, apenas as duas mais à frente, uma loira e uma de cabelos azul-gelo, que expressavam essa energia positiva — logo atrás delas, uma Kyorai muito desconfortável as acompanhava a certa distância, acanhada.

“Que horripilante é estar sem a capa. Será que posso usar sem parecer esquisita?”, dialogou consigo mesma, embora soubesse a resposta de antemão. Se fizesse sua vontade, seria um enorme chamariz no meio de todas aquelas pessoas vestidas de maneira idêntica, o que era muito pior. Vendo-se sem opções, deixou o suspiro pesado escapar por entre os lábios, puxando a barra das roupas um pouco mais para baixo. Como odiava ter coxas tão torneadas.

Tinha uma aversão fortíssima a roupas femininas. Na realidade, ao feminino, num geral: maquiagem, vestidos, cabelos longos e bem cuidados… O mero pensar em se assemelhar ao seu sexo de nascença lhe dava enjoo. Somado aos olhares de fascínio que recebera nos últimos dez minutos de caminhada, Kyorai estava a um passo de vomitar de estresse. Sua perturbação mental refletiu-se em sua aura azul-cobalto, nítida, enquanto ela ponderava em usar sua magia de ocultação.

— Ei, Kyo! — chamou Haruhi, com as serpentes acompanhando seu olhar. — Tá tudo bem? Não pode mentir, hein!

— Claro. Só… — Buscou as palavras certas, sem sucesso. — não gosto dessa roupa. Fico melhor parecendo um menino.

— Não, não! Mil vezes não, Kyozinha! — rejeitou Ayame. O apelido a fez franzir a testa em reprovação. — Olha como ele destaca suas pernas lindas! E seu cabelo curtinho assim é tão mais bonito que o meu, que inveja!

— M-Mas eu não quero que achem bonito!

A confissão fez Shikage ser encarada de cima a baixo por suas colegas, como se houvesse dito a mais contraditória das frases. Tinha seus motivos para isso e era plenamente capaz de entender a origem de seu asco em estar nos holofotes, mas ainda era tão estranha assim de sentir tudo isto de uma vez? Cabisbaixa, não viu ambas acenarem uma para outra, comunicando-se pelo olhar. 

De repente, Kyorai sentiu a mão calejada de Haruhi acariciar o topo de seus cabelos nevados.

— Tudo bem, acho que entendi. Vamos buscar sua capa na lavanderia.

— Mas v-vai chamar atenção! 

— Deixa que eu e a Aya chamamos a atenção mais do que você.

A piscadela marota da loira confundiu a Guardiã de Ártemis. Aos poucos, a mana esverdeada de Seishin enclausurou seu corpo, criando uma camada opaca sobre a pele dela. Alguns segundos se passaram e, quando a magia sumiu, uma garota muito diferente se revelou — os cabelos agora eram rosa-choque, enquanto os olhos e cobras assumiram tonalidades alaranjadas. Se a pele antes era mármore, tornou-se ébano, mais escura até que a própria Kyorai. O sorriso simpático, contudo, manteve-se.

— Vamos lá, Kyo!

— É, vamos! 

Cada uma das mãos dela foram puxadas, sem cerimônia, em direção à lavanderia particular do hotel. Seus passos tentavam acompanhar o ritmo acelerado de suas amigas, cujas risadas altas contagiaram o interior de Shikage com algo que ela não conhecia direito. Ao mesmo tempo que estava feliz, sentia um aperto indescritível no peito. Será que merecia aquele cuidado? Por que elas eram tão brilhantes?

Ela tinha o direito de sorrir daquele jeito junto delas?

 

 

— Chegamos! 

— Ah, finalmente, hein, Haru! Demorou pra cace… Que porra de visual é esse?

O comentário sincero de Heishi gerou um tapa igualmente sincero de Haruhi, furiosa e um tanto envergonhada pela sua falta de noção. “Merda, me deixei levar pela Kyo e esqueci que ia ver os garotos”, amaldiçoou sozinha ao perceber o olhar curioso de Tatsuyu sobre si. Não notou o rubor leve preencher as bochechas escuras dela, nem a maneira que cruzou os braços sobre o busto pela timidez.

— F-Foi pra ajudar a Kyo! Ela precisava de um empurrãozinho — justificou a menina, puxando a encapuzada para perto. — Né, Kyo?

— S-Sim. Agradeço à senhorita Seishin e à senhorita Tengoku.

— Ei, sem formalidades! — Ayame desta vez quem passou o braço ao redor dos ombros da colega. — Repita comigo: “Aya”! “Haru”! Vai, sua vez!

— Desde quando vocês ficaram tão próximas? — O príncipe demonstrava sua confusão diante da interação curiosa entre elas.

— Coisas de garota que vocês, meninos, não precisam saber, Alteza.

— Ai, como elas são unidas! Que fofura, minha gente — debochou Heishi, cem por cento recuperado do ataque anterior de Haruhi.

— Sabe, eu tenho energia o suficiente pra te descer o cacete, Reiketsu.

— Pode vir, Tengoku.

Os olhares rivais faiscavam de ódio, mas o escalonamento de violência foi interrompido pelo surgimento de uma outra figura logo ao palanque montado no salão. Envolto em uma aura prateada bem chamativa, o homem de cabelos brancos bem arrumados e olhos índigo esquadrinhou o ambiente antes de pigarrear no microfone.

— Boa noite, senhores e senhoritas. Os draconianos devem me reconhecer, mas meu nome é Youzaki Mekurao, conselheiro direto do rei — apresentou-se, calmo e composto. — Hoje, venho dar-lhe os parabéns pela conquista do exame. 

“Em nome da Longinus, espero grandes feitos de todos aqui presentes nos próximos 10 anos sob a supervisão da Academia. Terão acesso aos mais capacitados professores, as mais bem equipadas instalações e o mais completo treinamento físico e mental.

“O fechamento do Portão do Dragão se dará amanhã, às nove da noite, com a cerimônia oficial de boas-vindas marcada para depois de amanhã, logo após o café da manhã na praça da torre Olympia. Para aqueles sem deidade, peço a gentileza de seguirem para o subsolo para o ritual de seleção após a entrega dos uniformes. Oh, e terão um exame escrito em seguida ao jantar de amanhã, estejam prontos.

“Avisos encerrados, um bom banquete a todos. Saúde!”

Tão de repente quanto surgiu, Youzaki sumiu atrás das cortinas, mas não sem antes dar uma piscadela na direção do grupo de Shuyu. O conselheiro lembrou-se com carinho de quando presenciou uma cena semelhante, quase 30 anos atrás — Shihan e o príncipe tinham muitas semelhanças, realmente, mas o rosto dele era idêntico ao da falecida rainha. A melancolia agridoce que fisgou seu coração o fez sorrir para o nada.

— Estou velho, Chitose. Uma pena você não ter visto o olhar dele hoje — murmurou o senhor, afastando uma lágrima solitária de sua bochecha.

  Tatsuyu ainda absorvia as palavras do anunciante quando a explosão de gritos de alegria alcançou seus ouvidos. Entre soluços, risos e muitas celebrações, a expressão “exame escrito”  rodopiava sem parar na superfície de seu consciente. “Nessas horas que eu odeio ser burro”, xingou dentro de sua cabeça. Seus olhos rubi buscaram os de seus colegas.

Nenhum dos demais expressava qualquer surpresa quanto ao teste final que enfrentariam. Shuyu e Haruhi discutiam sobre possíveis questões, Kyorai manteve a mesma face neutra e Heishi e Ayame estavam focados demais em uma discussão acalorada entre si para perceberem o sentimento de pavor que o assolou. A palpitação em seu peito existia, embora bem diferente da usual tremedeira por ansiedade.

— An… O senhor Fukushu está bem? — A voz de Kyorai vacilou, em dúvida se deveria ou não tornar o foco para ele.

— Tá sim, Kyo! Ele tá passando mal por bobeira — devolveu Haru, risonha.

— Como assim?

— Não existe alguém no mundo que deteste mais a parte teórica da mana que o Tatsu. Ele só não reprovou até aqui porque o Heishi era bom de cola.

— Sou mesmo! — O galã de gelo se juntou à conversa. Kyorai não tardou em grudar ao corpo de Haruhi. — Mas acho que aqui ele tá fodido, colar deve ser impossível com uns instrutores desses.

— Deu muito ruim! Ser burro é uma merda!

Os parceiros do Guardião de Hefesto só puderam rir do desespero dele ao bagunçar os próprios cabelos de raiva.

 

 

Haru bocejava pela sensação de molhado sob suas vestes. O banco no terraço do hotel ainda estava um pouco úmido da chuva da noite anterior, mas entre o frio nas nádegas e a preguiça de ficar em pé, escolheu abraçar o encosto amadeirado sem pensar muito. A aparência adotada no jantar já havia sido desfeita, então estava de volta aos cachos loiros e olhos esverdeados.

Olhos estes que admiravam o raiar do sol no horizonte, um tanto impacientes — onde diabos estariam os dois “patetas”, como chamava-os, e por que estavam tão atrasados para o compromisso que eles mesmo marcaram? Suspirou pesadamente, encantada e distraída pelo brilho cada vez mais caloroso da manhã resplandecer sobre seu rosto. 

Por não estar em estado de alerta, vide a ausência do cabelo de serpente, deu-se conta da aproximação de passos apenas quando estes abriram a porta de acesso ao local. Heishi e Tatsuyu, com expressões cansadas e ofegantes, foram recebidos com um sibilar forte na direção deles.

— Vocês marcam comigo cinco e meia pra só darem as caras às seis da manhã? — reclamou a garota, de pé. — Porra, custava nada dar uma aceleradinha!

— Tudo culpa do Heishi, ele ficou até tarde tentando paquerar uma mina lá no saguão! 

— Tatsuyu, seu canalha do caralho!

Diante da naturalidade de seus dois melhores amigos, a raiva de Haruhi não conseguiu se sustentar por muito tempo. Em segundos, fora substituída por uma risada espalhafatosa, para a sorte deles. Seu amigo de olhos vermelhos percebeu as vestes molhadas e criou uma chama para secar tanto ela quanto o banco, além de aquecê-la no processo.

A garota agradeceu antes de convidá-los a se sentar junto dela diante do nascer do sol, o que de bom grado acataram. Qualquer vestígio de sono apagou-se do trio em um instante para dar lugar para uma empolgação contagiante que se intensificava repetidamente. O calor da estrela da alvorada limpou o frio da noite, assim como a amizade afastou qualquer medo do futuro iminente de seus corações. Ao menos, por ora.

Havia sido uma longa trajetória nos últimos quatro meses: desde o encontro de Tatsuyu com Togami no início da primavera até aquele meio de verão, a vida deles deu uma guinada súbita ladeira acima. Saírem de famílias simples dos subúrbios de Dracone para um hotel chique custeado pela maior organização militar do planeta num período tão curto. Tudo pelo sacrifício de seu sangue e suor.

— Eu sabia que a gente ia conseguir! Só você que ficou nessa negatividade, Tatsu — provocou Heishi, de olhos fechados e nariz empinado. — Brincadeiras à parte, eu esqueci de perguntar antes, tava cansado demais pra pensar, mas o que foi aquilo que tu fez contra a senhorita Kyotake?

— Eu… eu não sei. 

A incerteza fez o outro moreno abrir apenas um dos olhos em resposta. “Não sabe? Ele bateu de frente com uma rainha e não sabe como fez isso?”, julgou Reiketsu. Ver o sorriso leve e despreocupado de seu melhor amigo, agora perdido em alguma piada boba de Haruhi, aflorou em seu interior algo que nunca achou que teria Tatsuyu como alvo. 

Inveja. Um amargo gosto de querer, mas não poder se igualar a ele. 

Desde que se conheceram, Heishi viu ele apanhar, perder, se ferir e passar vergonha, enquanto ele mesmo nunca tinha encontrado um único problema social ou em combate. Ainda que fossem melhores amigos, tinha plena consciência de estar em um nível acima dele e da outra integrante do trio. Ano após ano, ele admirava, com pena, a persistência de Tatsuyu em brigar contra as estatísticas e ser agraciado com a dor da derrota.

Contudo, quando mais importou, foi justamente o “fracassado”, mais uma vez desafiando as expectativas impostas sobre ele, quem conseguiu a vitória. E, assim como todas as outras vezes que Heishi perguntara a ele o porquê de ter se movido, a resposta foi a mesma.

— “Eu não sei”, é? — repetiu para si.

— Ah, sim? Eu não sei mesmo, eu só fui pra cima e confiei que daria certo. — O tom de Fukushu não restava dúvidas de que falava a verdade. — Você mesmo disse pra eu confiar, Heishi. Vai me falar pra não te dar ouvidos mais?

— Olha, do jeito que você é, não deveria mesmo.

— Você é meu melhor amigo! Claro que eu vou te ouvir, seu imbecil!

Desarmada pela sinceridade repentina dele, a bomba tóxica no coração de Heishi deixou seu líquido escapar por dentro dele, corroendo-o com o desgosto de sua própria personalidade. Que tipo de pessoa horrível era para pensar tão mal de alguém cuja única emoção que lhe ofereceu foi companheirismo? 

— Deveria se envergonhar, garoto. — Búri serviu como sua consciência, pesada e absoluta. — Não se esqueça de que a arrogância é o que faz os humanos morrerem pelas causas mais estúpidas.

— Relaxa, eu já entendi. Você já viu que tô arrependido aí dentro.

— Sei muito bem. Informá-lo mais uma vez, porém, nada me custa — esclareceu a deidade. — Seja menos desprezível, por favor.

— Heishi! Ouras para Heishi, tá ouvindo a gente? 

Haruhi o trouxe de volta à realidade, preocupada com o silêncio nada usual do amigo. Seus olhos esverdeados aguardavam a resposta para alguma pergunta que ele com certeza havia acabado de ignorar — com um pigarreio leve, o Guardião de Búri se ajeitou.

— Foi mal, o malandro aqui dentro tirou minha atenção. O que tu disse, Haru?

— Hoje é aniversário da Ayame — pronunciou calmamente a loira — então achei que gostaria de saber.

— O quê?

O grito de Heishi reverberou pelos céus de tão alto. Teria coisas mais importantes para se preocupar naquele dia.

 

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