Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 1

Capítulo 28: Herói

30 de Janeiro de 4818 - Continente de Origoras, Reino de Yggdrasil, Lua do Dragão

 

Sob a luz forte do sol da tarde, o grupo aproveitava os últimos momentos antes de engajar em combate contra sua examinadora. Caminhavam no mesmo ritmo, todos em um silêncio contemplativo, uns tensos demais para falar, outros mais confortáveis mantendo a situação como estava. A ausência total de som, entretanto, fazia mal a um certo garoto de cabelos negros, cujas mãos buscavam algum ponto de conforto, em vão.

Tatsuyu ponderou pela última meia hora nos eventos ocorridos desde o início do exame prático até ali. Embora estivesse certo de que os laços entre eles ficaram mais fortes, duvidava, em algum canto sombrio de seu coração, se tudo seria posto a perder naquela luta por conta de um descompasso momentâneo. Com Haruhi e Heishi não haveria problema, mas e Ayame e Shuyu? A adição de Kyorai, um elemento surpresa tanto para eles quanto para a batalha logo à frente, também não era animadora.

Seu desânimo pôde ser sentido por Haruhi, acostumada a se adequar ao caminhar lento dele.

— Nervoso, Tatsu? — cutucou ela, discretamente. 

— Não exatamente. Mais sem confiança, mesmo.

— Você é a única pessoa que a confiança oscila entre se jogar numa arena lotada sem hesitar… — Os olhos esverdeados desviaram para o outro lado. — e ter medo de lutar ao lado dos seus melhores amigos porque sente que vai dar errado.

— Já te falei que aquele caso foi um surto. Não é parâmetro! — retrucou ele, tirando um riso singelo dela. 

— Claro que é, porque ainda foi você. E foi você quem nos trouxe pra cá, Tatsu.

Só então percebeu que todos o encaravam, até Kyorai. Shuyu caminhou na direção dele e colocou a mão direita sobre seu ombro, num gesto de amizade.

— Haru está certa, Tatsu. Você é o pivô desse grupo, sem ele seríamos apenas eu e Ayame. 

“Gostaria que fosse assim”, pensou a garota.

— Isso aí que o Shu disse! — concordou Heishi. — Tu é o herói dessa história, você quem mudou os nossos caminhos! Tá até no seu nome, cara.

A piada com o simbolismo de seu nome aliviou um pouco da tensão que Tatsuyu carregava nas costas. Era verdade — fosse por sua imprudência, azar ou mesmo incompetência, todos ali estavam porque um dia escutaram o chamado para acompanhá-lo. Sentiu vontade de chorar, mas segurou as lágrimas para outro momento. “Heishi vai me aloprar o dia inteiro se eu chorar agora”, reafirmou para si. Não conseguiu pronunciar nenhuma palavra, apenas concordando com a cabeça à mensagem positiva dos colegas, que se deram como satisfeitos.

Como uma estranha ao círculo, Kyorai observou a interação com grande curiosidade. Lembranças fortes do tempo com sua melhor amiga a fizeram se questionar internamente se suas crenças eram corretas quanto aos aspirantes a Guardiões. Havia passado mais de um dia inteiro junto deles, aos poucos sentindo-se menos ameaçada pelos olhares atentos aos seus movimentos e sendo mais requisitada em conversas por Haruhi e Ayame, o que era tanto um alívio quanto um incômodo.

Naquele momento, a única pessoa com olhos sobre ela era Shuyu, o “príncipe estranho”, nas suas palavras. Diferente dos demais, nem mesmo dormindo sentia-se menos observada pelas orbes esmeraldas, tão intensas que pareciam enxergar sua alma. A rispidez na maneira que a tratava, repreendida algumas vezes por Ayame, traduzia-se, na visão de Shikage, como duas possibilidades: ou ele sendo cauteloso ao extremo, ou ele sabia de algo sobre ela.

Seja lá qual fosse, preferiria pisar em ovos ao redor do nobre. Daquela forma, poderia manter-se no círculo sem ser o centro das atenções.

— Kyo, me ouviu? — Haru assustou-a pela proximidade repentina. “Ela não estava perto de Fukushu?”, questionou, ignorando a intimidade do apelido. — É bom não estar pensando em como nos trair!

— Não estou. Poderia, por favor, repetir sua pergunta?

— A senhorita Kyotake estava próxima daqui?

— Sim. — O tom da harenariana era monótono frente ao nervosismo crescente dos colegas. — Recomendo sacarem as armas já. Ela não poupa tempo após as explicações. Vou me colocar em posição.

A aura azul-cobalto cobriu o corpo de Kyorai e ela desapareceu por completo. O quinteto cumpriu sua parte do combinado, continuando a caminhada silenciosa pela floresta. Mais dez minutos se passaram antes de chegarem ao limiar entre a mata e um espaço aberto, no qual o sol brilhava em todo seu esplendor. Além da pequena porção descoberta de terra, a ponte de magietras brancas estendia-se além do horizonte, tal como viram em Dragetenner dias antes.

 Uma silhueta esguia de altura mediana impunha-se, imóvel, frente à entrada da ponte. Sua mão direita segurava uma espada longa de cor prateada — apontada para o chão, seu cabo e guarda-mão tinham diamantes azuis cravejados bem na divisória, destacando o ar refinado da arma. Uma esfera de mana laranja perfeitamente redonda flutuava pouco acima de sua palma esquerda. 

De olhos fechados, sua aura apresentava tão baixa flutuação que imaginaram estar em meditação. Por não terem uma reação notável ao adentrarem o campo de visão da mulher, seguiram com passos cuidadosos na direção dela. Era como se estivesse sem vontade de confrontar a aproximação ousada  deles, insetos tão inferiores que sua presença não deveria ser considerada. Centímetro a centímetro, os pés deles diminuíram a distância entre o grupo e a mulher. 

De repente, a esfera laranja desapareceu e ela encarou-os. Reveladas, as íris verde-água eram de uma frieza medonha, como se houvessem sido esculpidas em rocha de tão opacas. Saiyami fincou sua lâmina no chão com facilidade, para então direcionar sua atenção para eles. Uma onda de intimidação apossou-se de Haruhi, Tatsuyu e Ayame, com esta última agarrando o braço de Shuyu por reflexo.

A rainha de Camelot era uma beldade que se encaixava bem demais no campo de batalha. Os cabelos lisos, negros e com sutis mechas pintadas em vermelho-vinho, caiam-lhe sobre os ombros e face: para que não tivesse o olho direito oculto pela franja, esta era cortada na diagonal. A alcunha de “Heléboro da Lâmina Lendária”, de fato, era pertinente, ainda que admirar sua aparência fosse complicado quando portava uma espada tão afiada.

— A partir do momento que atravessaram a linha do Domínio do Rei, compreendo que estão dispostos a realizar um desafio pela sua aprovação — constatou a dama. — As regras são simples. Acertem-me um ataque sequer e estão aptos a seguir. 

Tal qual a lenda, Saiyami removeu Excalibur, a Espada dos Escolhidos, do solo. O fio desta brilhou mil sóis, cegando brevemente os desafiantes, logo em sequência iniciando uma tempestade de mana com a rainha sendo seu epicentro. 

Haruhi foi a única que não se acovardou perante a demonstração de força inimiga. De lança em mãos, a corrida veloz dela surpreendeu Shuyu — percebeu então que era a primeira vez que presenciava a loira em combate desde que a conhecera. Os cabelos dela tornaram-se as serpentes sibilantes de sempre durante o deslocamento dela até seu alvo.

— Mordida da Górgona! 

A esmeralda que servia como o olho da cobra esculpida na base da arma reluziu com a mana de mesma cor da garota. Kyotake não proferiu nenhuma técnica em resposta, apesar de sua lâmina exibir uma camada de tons alaranjados, e aparou o golpe inicial da Guardiã da Medusa sem grandes esforços. 

A partir daí, tilintares repetidos, causados pelo encontro da lança com a espada ou com as presas firmes das serpentes, ecoavam pelo ambiente e ritmavam o dueto criado pelas duas donzelas. A técnica de Saiyami era invejável, ao passo que a destreza de Haruhi podia ser notada pela série de bloqueios e golpes giratórios realizados por ela. As estocadas feitas pela cabeça clip-point da lança seriam letais para um combatente menos experiente.

A luta não seguiu no mano a mano por muito mais tempo. No meio de um golpe lateral de Haruhi, a militar viu o florete perolado de Ayame e a espada negra de Shuyu brilharem com as auras azul-celeste e púrpura, respectivamente à esquerda e à direita.

— Lâmina de Vento!

— Chama de Muspelheim!

As duas ondas de magia, direcionadas para ela, não tardariam a se encontrar no ponto onde estava encurralada. Viu-se necessitada de utilizar a alternativa que estava guardando para quando o confronto verdadeiramente esquentasse. Suas pernas foram cobertas por uma densa faixa de magia.

— Caminho de Brecheliant — sussurrou, vendo o laranja da aura que a envolvia tornar-se transparente.

A água em seus pés permitiu que desviasse de ambas as técnicas com um deslize rápido pelo solo. Era como se o atrito do chão com suas solas tivesse sido anulado, levando-a de um ponto a outro em extrema velocidade como bem desejasse. Tatsuyu e Heishi, livres do estado de estupor, brandiram suas próprias espadas contra a dela.

Para quem estava sujeita à uma batalha de cinco contra um, Saiyami controlava muito bem a situação. Diferente do que esperavam, ela não se destacava pelo peso de seus golpes, e sim pela veloz e elástica forma física exibida — parecia sempre pronta para retaliar os avanços inimigos ou esquivar-se de disparos feitos contra si. Sua técnica de movimentação, “Caminho de Brecheliant”, tornava tudo muito mais difícil para o grupo de Tatsuyu.

Contudo, nenhum deles pensava em recuar. Confiavam de corpo e alma que, no melhor momento, Kyorai daria a cartada final contra a Guardiã da Excalibur, então alternavam entre si para manterem a pressão sobre ela imposta enquanto buscavam uma brecha mínima em suas defesas. Foi num golpe duplo de Heishi e Haruhi, sincronizados, que o garoto de íris rubi encontrou a oportunidade perfeita.

Saiyami havia acabado de empurrar seus melhores amigos para longe quando Tatsuyu avançou em linha reta contra ela. Sua espada envolta em chamas atraiu o olhar atento da militar, que tomou pose para defender-se.

— Ponto de Quebra! 

— Não dessa vez — respondeu, por assim dizer, a mulher.

Seu grito confiante acompanhou o movimento pesado de sua lâmina. Como todas as vezes que executara essa técnica até então, o som do metal sendo estilhaçado alcançou os ouvidos do Guardião de Hefesto perfeitamente. Mais uma vez, seu trunfo deu certo, o que colocou um sorriso confiante em sua face.

Indescritível foi a sua surpresa ao ver uma das metades de sua espada negra voar para longe, seguida da infeliz sensação de ter o corpo cortado pela Espada Lendária. Saiyami puxou a lâmina para se defender no instante seguinte de um golpe do florete de Ayame, deixando-o agonizar no chão pelo extenso ferimento na lateral de seu abdômen. “Eu tenho certeza que acertei a falha…”, refletiu o garoto, arfando pesado ao mesmo tempo que tentava estancar o profuso sangramento. 

— Desculpe, Tatsu. Eu esqueci que ela estava naquele dia. — A voz grave de Hefesto soou no fundo de sua mente. — A Excalibur é a arma mais dura que existe, quebrá-la já é um sacrifício. Essa mulher também sabia do Ponto de Quebra, ela previu a sua mira.

— Quem… se descuidou… fui eu — admitiu Tatsuyu.

Passos apressados em sua direção o deixaram atento. Viu a palma aberta de Shuyu estender-se sobre sua ferida, embora não tenha escutado o que ele disse. Segundos depois, sentiu a mais desmedida dor em toda sua vida, bem como o cheiro de carne queimada que fez seu estômago se revirar. Pelos poderes de fogo do príncipe, imaginava o que ele fez, agradecido e enojado.

— Valeu… Shu!

Com dificuldade, sentou-se ao solo. Com a espada quebrada, não poderia fazer muito mais do que oferecer suporte aos colegas e orar. “Onde está Kyorai?”, indagou em seu subconsciente. Quase dez minutos se passaram desde o início do combate, já não era hora dela aparecer?

A resposta ao seu questionamento anterior veio como um raio. Por trás de Saiyami, ocupada em uma disputa de forças com Heishi, uma efêmera vibração do ar sendo cortado ocorreu quando a garota estava prestes a apunhalar as costas da rainha. A Guardiã de Ártemis havia, literalmente, surgido do nada com seu punhal branco cheio de inscrições prateadas para atacar. 

A mão livre da militar, que havia acabado de repelir Heishi com sua espada, agarrou com firmeza o pulso de Kyorai após esquivar do golpe perfurante. A menina de cabelos de leite, de sobrancelhas levantadas diante da reação instantânea, tentou se afastar, mas teve o braço quebrado com uma cotovelada potente. Seu corpo sem demora foi arremessado para bem longe com um chute giratório em suas costelas.

Sem mais cartas na manga, o grupo de estudantes sentiu o medo bater muito mais forte na porta deles. Como Kyorai foi detectada? Será que não deram cobertura o suficiente para ela? Ou Saiyami era boa demais? Shuyu quem ligou os pontos ao ter mais uma onda de fogo eliminada pela Espada Lendária.

— A esfera! — gritou o príncipe, confundindo seus aliados. — Ocultação de mana não funciona na área! 

Esta informação mudou por completo o estilo de luta de todos os outros membros da investida. Se furtividade nada impactaria, uma explosão de poder teria de ser a resposta, levando-os a atacar em conjunto com força total. A mudança de maré não desnorteou a rainha de Camelot, que colocou as duas mãos sobre o cabo de sua espada.

— Dueto de Camelot.

Cada palma puxou consigo uma espada — a original, ainda na mão direita, e uma réplica de mana, esta que tinha uma forma translúcida como um holograma. O mero brandir das duas lâminas criou uma onda de choque que os afastou do alcance dela, espadas cruzadas e prontas para o combate.

Se antes era difícil encontrar um ponto cego, tal tarefa hercúlea era agora impossível. O padrão de Saiyami ao atacar com as duas lâminas assemelhava-se a uma verdadeira dança, sem que houvesse um parceiro à altura para acompanhá-la ali. Entre saltos e giros, afastava os inimigos ou os perseguia ao seu bel prazer, sem perder a elegância em cada balançar de suas armas. Nem mesmo a velocidade impressionante de Ayame foi capaz de lidar com os ataques de múltiplas fases da rainha.

Impotente, Tatsuyu observou, um a um, seus amigos serem rechaçados pela incrível demonstração de talento diante de si. Admirado e intimidado, era um pássaro sem asas presenciando o massacre de seu bando em plena revoada, incapaz de subir aos céus e enfrentar o predador temível que os dilacerava. 

A ira queimou em seu coração. Uma ira, porém, não de sua algoz, mas de si próprio. As vozes em sua cabeça eram altas, incômodas, incessantes. Sua frustração tomava forma em palavras de desgosto proferidas pela voz distorcida de seu trauma. Cedo ou tarde, mergulharia em desespero como sempre fez.

Em meio ao caos angustiante, uma centelha minúscula e brilhante de esperança surgiu em seu interior, afastando a escuridão de seu peito. Uma mão pálida estendeu-se para ele dentro de sua mente, puxando-o de volta à realidade e, também, para cima. De alguma forma, havia se colocado em movimento.

“Pai! Mãe! Eles não morreram por um covarde!”, gritou para si, para que suas pernas continuassem correndo. Não soube ali definir sua origem ou mesmo seu propósito — entendeu naquele momento como um sinal para lutar, para levantar-se e conquistar o que lhe era devido. Um convite a estender a mão e alcançar as estrelas, tão distantes e brilhantes.

A coragem de um herói.

A corrida inconsequente na direção de Saiyami, com as armas pinceladas do sangue de todos os seus companheiros, deixou a rainha sem entender. Perdera o juízo? Ou tinha um plano para distraí-la enquanto os demais se reorganizavam? Seja lá a resposta, colocou as duas espadas em posição para desferir um novo ataque contra ele.

— Presas de Ivain — murmurou, desferindo um corte duplo pela direita.

As lâminas envoltas em mana obrigariam-no a recuar. Estava desarmado, não tinha como fazer qualquer outra ação que não desviar ou seria retalhado pelo fio cortante da Espada Lendária. 

Saiyami arregalou os olhos ao perceber que ele não iria parar de forma alguma. O braço esquerdo dele ergueu-se no caminho entre as espadas e o corpo, envolto em chamas bem mais vívidas do que as que vira antes. “Ah, ele vai morrer”, pensou com simplicidade no momento do choque físico das duas partes, receosa do que a Longinus acharia de um caso assim em pleno exame. A culpa cairia inteiramente nele, ao menos.

Os papéis se inverteram. A mulher escutou o som de metal digladiando-se e, então, não conseguia mais mover suas espadas — ambas estavam perfuradas na pele cinzenta do braço do inimigo, o que confundiu Kyotake. Não existia metal, rocha ou lâmina que sobrevivesse ao golpe da Excalibur, a Espada que Corta Aço, então como ele havia segurado o fio mais afiado de todos com a pele nua? 

A hesitação breve da guerreira foi uma janela perfeita para Tatsuyu. Seu outro punho, de pele cinza e perto o suficiente dela, foi colocado para trás e incendiado pelas mesmas labaredas.

— Mão do Ferreiro! 

A combustão impulsionou, junto do peso de seu corpo, o soco contra o abdômen de Saiyami, arremessada para longe com a força do impacto. Fukushu foi capaz de manter a pose de ataque por alguns segundos, em seguida caindo de joelhos com uma respiração pesada e suor em suas roupas. Pela detecção mágica de sua aura, Shuyu deduziu que noventa por cento da mana dele havia sido carbonizada apenas naquele golpe. “Engraçado, não era tão grande assim antes… O que será que rolou?”, inquiriu o príncipe, curioso quanto ao estado do amigo.

A primeira do grupo a compreender de fato o que aconteceu foi Haruhi, que enlaçou seus  braços ao redor de Tatsuyu sem que ele nem percebesse sua rápida aproximação. O casal se desequilibrou, fazendo a loira ficar por cima do garoto, afundada em um choro de alívio e raiva enquanto proferia ofensas desconexas ao seu melhor amigo. Heishi e Ayame se juntaram logo em seguida à pilha de euforia — o Guardião de Hefesto clamava para saírem de cima dele pela dor latejante no braço cortado, de volta ao normal e repleto de queimaduras.

Caída em um canto do campo de batalha, Kyorai encarava o céu acima deles de mente vazia. Novamente, havia sido inútil em sua única função, desta vez de maneira tão miserável que tinha vergonha de encarar Tatsuyu cara a cara. “Ele confiou em mim. Ele insistiu que eu faria a coisa certa, mas quem teve que resolver foi ele”, repreendeu-se a si mesma, escondendo o rosto sujo de terra e sangue com o único braço saudável. A dor física não se comparava à frustração emocional em seu coração, latente e confusa — por que se sentia tão, tão abalada pelo seu fracasso? Nem quando sua melhor amiga foi quase morta por um descuido ela ficou daquele jeito.

— É porque você sabe que eles confiaram em você, Kyo — apontou Ártemis, plácida. — E você confiou neles para te ajudar.

— Mas nem com a Mimi…

— Eu sei o que se passa nos seus sentimentos, menina. Muito além do que você mesma compreende.

O corte impiedoso da deusa da caça deixou-a ainda mais pensativa. Queria levantar e sair dali, tamanha era sua vergonha com a própria incompreensão. Os sons de passos pesados a tiraram de seu devaneio, e o rosto de Shuyu surgiu no campo de visão dela, de ponta cabeça. Apesar da cara claramente incomodada dele, a mão estendida contrariava sua atitude ríspida.

— Ótimo trabalho, Shikage. Não deu frutos, mas saiba que respeito o fato de ainda ter cumprido sua parte do acordo — declarou o herdeiro de Yggdrasil. — E não se culpe, o Tatsu surpreendeu até mesmo a mim com o que fez. O que importa é ter dado certo.

— Você não precisa mentir pra mim. Está na sua cara que me detesta. 

— De fato, não estou convencido com sua personalidade. Porém, quem sabe você não me surpreende agora que estamos aprovados?

Pela primeira vez em mais de um dia, Shuyu sorriu para ela, mesmo que de leve. Ponderou até onde estavam falando sério e onde começava o deboche, algo demasiado complicado para alguém literal como Kyorai. Relutante, sua decisão final foi acatar — muito a contragosto — a ajuda dele para colocar-se em pé. Seus ossos rangeram de pura agonia com o modo que estavam deslocados e quebrados. 

Não demorou muito para Saiyami, por inteiro recuperada, voltar a pisar no alcance original do campo de batalha. Diferente dos alunos, feridos em muitos pontos e com as vestes empapadas de sangue, o uniforme da Longinus com detalhes laranja possuía apenas um buraco no centro da barriga, bem no ponto que Tatsuyu a acertou há pouco. Excalibur também estava desaparecida de suas mãos.

— Fui total e completamente derrotada, para minha extrema frustração. — A voz da rainha era séria e baixa, com um quê de embargo. — Como avaliadora, lhes concedo a permissão para seguirem. Há um posto de cuidados logo à frente, os curandeiros farão um bom trabalho.

— Ei, Tatsu, Haru! — Com as mãos balançando pela empolgação, Heishi chamou seus melhores amigos. — Vamos passar todos juntos a linha para Palas!

— Qual é, Heishi, eu não consigo nem andar direito! — retrucou o moreno.

— Deixa de moleza, meu amigo querido. — O olhar intenso de Tatsuyu não afrouxou diante do bom humor dele. — Tá, eu te levo no colo, madame! Haru, me dá uma mão aqui.

— Eu não, se vira aí — delegou a loira, soltando o colega ferido sobre Reiketsu. — Kyorai, eu vou te levar.

— O q-qu…

— Agora você deixe de desculpa, mocinha! Eu tô vendo esse braço todo fodido!

No fim, O sexteto conseguiu se organizar para estarem todos na mesma faixa horizontal, a um passo da ponte para Palas. As trocas de olhares entre eles diziam muito mais do que palavras seriam capazes — o caminho que trilharam fora longo, cheio de obstáculos, mas estavam ali. Todos acenaram, prontos para o ritual.

— A partir daqui, a nossa vida não vai ser mais segura, fácil ou tranquila — profetizou Shuyu, antes de seu primeiro passo — e espero que todos vocês estejam dispostos a seguir até o fim!

— Com certeza! — concordaram os demais, aos gritos.

— Então me sigam, Guardiões!

 

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