Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 1

Capítulo 15: Um novo horizonte

7 de Dezembro de 4817 - Continente de Aquapia, Reino de Sophis, Academia Real de Camones

 

— Muito bem, vamos encerrar! — ordenou uma mulher logo após soar o apito em seu pescoço. — Temos o aniversário da princesa hoje, então vão para casa se arrumar!

— Sim, senhora! 

Armas e auras desapareceram segundos após o anúncio da professora. Embora o período de recesso da Academia Real de Camones já estivesse em vigor, dezenas de alunos da nona série imploraram por treinamentos adicionais. Alguns até discutiam em não participar das festas de fim de ano junto de suas famílias, o que poderia até parecer ser extremo se não tivessem um motivo.

Todos ali tinham uma meta em comum, que os unia naquele momento e os dividiria em aproximadamente 2 meses. Um desejo avassalador, capaz de forçá-los a levantarem-se até naquela semana fria de inverno em Sophis para encarar mais uma lição. Nem o sol do meio-dia era capaz de bater de frente com o vento gelado do outono lambendo suas faces sem descanso.

— Togami! 

O chamado, já conhecido aos ouvidos do rapaz de cabelos bicolores, soou como um prelúdio a um monólogo ininterrupto. Sentado sozinho em um dos bancos do gramado circundando a Academia, o suor escorria em bicas pelo rosto dele. A garota estava em um estado igual ou talvez pior quanto ao desgate.

— Oi, Reiko. O que precisa? 

— Nada, ué. Só vim falar com meu amigo, o que tem demais? — sorriu a princesa, sentando-se ao lado dele.

Vários olhares foram direcionados a eles logo que ela encostou na madeira. Togami sentiu o desconforto crescer dentro de si, afastando-se mais para a lateral do banco afim de aumentar a distância entre eles. A Guardiã de Atena encarou de volta os demais presentes ao perceber a interação incômoda com seu amigo, o que permitiu que ficassem a sós.

— Ainda não fez amizade com as pessoas?

— É meio difícil quando os rumores estão a todo vapor — respondeu, com amargura, o garoto. — Além disso, eu sou um plebeu meio harenariano. Normal acharem estranho eu estar aqui.

Um suspiro frustrado saiu abertamente da boca de Reiko. Pelo último mês que passaram juntos, Togami tinha certeza de que havia estragado seu bom humor matinal. Porém, riu sozinho da preocupação dela, tão genuína e sincera que o confortava mesmo nos momentos tensos como aquele.

“É bom ter alguém assim, às vezes”, refletiu enquanto jogava a cabeça para trás. O céu de Camones era bem diferente do céu de Hiekaja ou mesmo de Dracone — mais sujo e um tanto mais apagado. Desde que chegaram em terras atenienses, há pouco mais de 2 semanas, Togami foi apresentado a uma variedade de situações que jamais experenciaria em outro lugar, fosse na capital de seu país ou em sua vila natal.

 A começar pelo constante barulho. Sejam pelas fábricas (algo que também descobriu existir lá), pelo fluxo intenso de pessoas em todos os horários ou as muitas atrações turísticas, não havia silêncio em momento algum. Reiko o ensinou algumas técnicas para lidar com o incômodo, mas não era suficiente para dar o devido descanso aos seus ouvidos sensíveis. Muitas vezes, teve de se conformar de que não conseguiria dormir.

Outra grata surpresa foi a variedade de pessoas que caminhavam pelas ruas e estabelecimentos. Estava acostumado com a homogenia étnica de Yggdrasil, então ver cidadãos com todo tipo de aparência circulando pela cidade portuária o fez sentir-se mais recepcionado, como se não fosse tão estranho um harenariano estar ali.

Reiko não teve papas na língua para comentar o assunto. Um estalo audível foi a forma dela de retrucar o julgamento ocular dos demais alunos.

— Uma pena que só nobres atenienses estudam aqui. Podiam usar essa chance pra conhecerem algo novo, mas ficam nessa merda de posição defensiva sem sentido.

— Tá tudo bem. Eu espero passar de primeira e não ter que ver nenhum deles depois — afirmou o garoto, com meia ironia. — Mas você evoluiu bastante desde que chegamos.

— Brigadinha! — O sorriso da herdeira cresceu pelo elogio. — Vamos almoçar antes de ir pra festa?

— Quê?!

— Isso mesmo, ué. Você é discípulo da rainha Yumeko, claro que está convidado, bobão.

Em concordância silenciosa ao convite dela, Togami partiu na frente, falando algo sobre comer bolo ao invés de almoçar de verdade, o que a fez gargalhar. O riso e a simpatia dela, contudo, ocultavam a curiosidade crescente em seu peito, grande na mesma medida da amizade que surgiu entre eles naquele breve período que se conheciam. Lembrou-se da conversa com sua mãe, na noite anterior.

— Mãe, quem era o Guardião de Metatron há 5 anos atrás? 

A rainha e sua filha estavam sentadas em um dos muitos jardins da Biblioteca Real de Camones, após mais um dia de afazeres. Era um costume familiar sentar, durante o tempo livre, nos pontos verdes da estrutura e ler por longas horas sobre todo tipo de assunto.

Naquela noite, em função dos preparativos para a comemoração do sétimo aniversário de Tamashi, Koushiro e a segunda princesa encerraram a sessão de estudos mais cedo. A rainha pretendia seguir o exemplo do marido, mas foi capturada por sua primogênita, cuja insistência a intrigou.

 Conversas foram e voltaram e, de repente, a Chiwa mais velha se viu colocada contra a parede de uma maneira inesperada.

— Bem… esse é um tópico delicado — rodeou Yumeko.

Incerta do motivo da pergunta, avaliou até que extensão deveria contar. O olhar intenso de sua filha a impediu, moralmente, de omitir informações. O ar escapou por sua boca antes de prosseguir, cedendo ao pedido silencioso de Reiko por mais informações.

— Certo, era Kousei Kyoten, pretendente de Miyako Meishi. 

— Da rainha de Imerana? — Yumeko meneou positivamente a cabeça. — Como alguém tão próximo da realeza partiu tão cedo?

— Muitas coisas aconteceram cinco anos atrás. A morte súbita de um capitão muito prestigiado fez a Longinus ter que remanejar as tropas. — Havia um misto de culpa e nostalgia na voz da rainha. — Isso colocou pressão demais nos ombros do Kousei. Superestimamos o poder dele. 

Reiko associou a fala da mãe à conversa que teve há pouco mais de um mês com Togami. Definitivamente, as datas batiam, e saber que seu amigo havia falado a verdade acalentou seu coração. 

— Entendi. Outra coisa que tá me enlouquecendo é ele não falar o sobrenome. Tá me matando de curiosidade! — grunhiu a princesa.

Yumeko estampou um sorriso, o olhar distante em algum ponto do ambiente. Parecia rememorar algum acontecimento de tempos atrás, como um déjà vu. Todavia, não durou muito — a bela mulher desviou seus olhos azuis de volta à sua leitura, sem dar brechas para mais perguntas desconfortantes.

— Fico feliz que estejam se dando bem… — A rainha retomou sua expressão concentrada. — E que bom que finalmente largou os livros de botânica.

— Eu que o diga, mamãe! Não cansa de ler enciclopédias de geografia?

— Claro que não!

A forma que se encararam até caírem na risada as fez constatar que, com toda a certeza, eram mãe e filha.

— …ko. Reiko!

— Presente!

Togami havia parado na frente dela, de braços cruzados. Não que fosse muito imponente com seu um metro e meio de altura, mas transmitia muito bem sua irritação com o bater do pé esquerdo. “Quanto tempo fiquei sem responder?”, refletiu ela, tomada subitamente pela vergonha — o jeito que ele franzia a testa era bem fofo, diga-se de passagem.

— Fala sério, você escutou algo que eu disse?

— Claro… — O tom empolgado dela o fez levantar uma sobrancelha. — que não.

— É muita prepotência achar que a princesa deva escutar sempre o que tem a dizer. 

A dura frase fez Togami inspirar fundo, sabendo exatamente o que lhe aguardava ao virar para trás. Para ser sincero, sua paciência não estava em devidas condições, apesar dele manter sua expressão neutra.

De cabelos negros e caminhar elegante, um jovem alto aproximou-se da dupla, fitando o Guardião de Metatron com desprezo. Apesar de não estarem em combate, sua aura verde-oliva contornava sua enorme silhueta — tal exibição de poder não fez efeito que ele esperava em nenhum dos dois a quem diriga a palavra. O cinza-metálico dos olhos frios encontraram as íris bicolores de Togami.

Lado a lado, a diferença de altura era tão grande que Reiko duvidou por um instante que tivessem a mesma idade. 

— Kai! Até esqueci de te chamar, foi mal. — A herdeira coçou a nuca, sem graça. 

— Sem problema algum, senhorita — disse o garoto de voz aveludada. — Tenha mais respeito com a futura rainha, nanico.

A agressividade incoerente de Kai Tamaki apenas fez o plebeu revirar os olhos. Àquele ponto, havia se tornado rotina ter que encontrar com a única pessoa definitivamente detestável que conheceu desde a chegada à Sophis. "Tudo culpa dessa idiota", acusou Togami dentro de sua mente.

Mimado, esnobe e… adorado. Um nobre como ele era a representação perfeita do ideal que Reiko lutava contra, e ainda assim ela insistia em oferecê-lo uma íntima amizade. Os professores também não relatavam nada de estranho no dito “aluno exemplar”, fosse por ignorância ou medo de represálias da família à direita dos Chiwa. Influência política era a única razão que o draconiano conseguia encontrar para que tantas atitudes dele fossem totalmente ignoradas pelos colegas.

Com Togami, havia uma discrepância ultrajante de tratamento — em duas semanas lidando com ele, não houve uma vez sequer que tenha sido respeitado. Estava certo de que ele era parcialmente responsável pelos maus rumores sobre a admissão de um plebeu estrangeiro na prestigiada Academia Real de Camones, e isso atiçava os nervos de Shinwa.

— Claro, claro. Isso é tudo, senhor? — debochou Togami, com uma mesura. — Ou tem mais algo que Vossa Senhoria gostaria de adicionar?

— Ainda não entendi o que Sua Majestade viu em um… garotinho estrangeiro

A ênfase que ele deu na palavra “estrangeiro“ eliminou qualquer resquício de cordialidade que pudesse ter restado em Togami. A espada de fio branco saiu rapidamente da bainha, sendo apontada ao rosto de Kai em represália. Existiam linhas que não deveriam ser cruzadas por um homem para ferir a honra de outro, e Kai estava desrespeitando todas elas.

O ego inigualável do jovem não permitiu que aceitasse uma ameaça de um mero plebeu.

— Isso é uma afronta à minha autoridade e um desrespeito à princesa! — Apontou o dedo ao rapaz, uma face perversa como quem estava pronto para aplicar uma punição. — Ajoelhe-se e implore pelo nosso perdão!

— Kai! Para com isso! — Reiko não entendia a intenção de seu amigo nem como a situação havia escalado tão rápido — Tá tudo bem, ele não fez por ma…

— Alteza, com o perdão da palavra, mas a senhorita e Sua Majestade têm sido muito brandas em suas atitudes — cortou o moreno, sem tirar os olhos de sua “vítima”. — Eu escutei o que ocorreu. Este garoto não tem o decoro para pisar no solo sagrado de Sophis, quiçá ser treinado por Sua Majestade em pessoa.

— Não fale mal da mestra e da Reiko, seu miserável! 

Podiam falar o que fosse dele, de seus modos ou de sua ascendência. Dos Chiwa, aqueles que deram a ele uma oportunidade nova de vida? Em hipótese alguma. Era a gota d'água para ele.

— Cansei-me de suas palavras chulas, nanico — rosnou o nobre. — Eu te desafio a um duelo mágico!

“Duelo mágico” era um termo que Togami aprendera em suas mais recentes aulas. Uma batalha sem armas, utilizando apenas a mana para disparar ataques contra seu oponente. Ou seja, uma forma de mostrar, objetivamente, a quem pertencia o maior poder e refino no uso da mana.

O rapaz de cabelos bicolores assentiu com a cabeça, caminhando um pouco para longe. Kai potencializou sua aura ao máximo, confiante de que ensinaria uma lição ao seu adversário apenas por meio da intimidação. “Érebos e Hemera colocarão esse empecilho em seu devido lugar”, cravou em seus pensamentos enquanto envolto pelo manto esverdeado de mana.

Repentinamente, a aura branca de Togami engoliu qualquer traço da mana do nobre. Agora liberada, a pressão mágica do pupilo real fez Kai sentir-se preso ao chão — era como se seus ombros estivessem sob uma mão invisível, pesada e opressora. Até mesmo Reiko surpreendeu-se com a densidade de magia no ar, que tornava até respirar uma tarefa complicada.

Desde a primeira vez que viu Togami lutar, nunca havia visto ele liberar por completo seu poder. Na luta contra Koushi e Naochi, foi nocauteado por um descuido e os treinos não o forçavam muito além do que ela viu antes. Era a primeira vez que via a aura dele em sua forma integral. 

— Vamos logo com isso — ordenou o garoto de baixa estatura. 

— N-Não me dê ordens! Disparo Duplo!

Sem um aviso de início e com o adversário de costas para si, Kai concentrou toda sua aura em um disparo de luz e trevas entrelaçadas, movendo-se com grande velocidade pelo campo. Togami estendeu o indicador de sua mão esquerda na direção do golpe com uma suavidade assustadora.

— Concentrar — murmurou inaudivelmente.

Um clarão enorme surgiu da ponta de seu dedo, quase como um pequeno sol. Reiko conseguiu enxergar, através da intensa luz, a expressão de seu amigo de olhos heterocromáticos.

Furiosa e, concomitantemente, plácida. Talc  omo o oceano calmo instantes antes de um tsunami devastador.

— Consumir.

O segundo comando de Togami disparou uma onda de energia dezenas de vezes maior do que a técnica de Kai, que desapareceu ao encontrar a massa mágica. Os olhos do jovem nobre arregalaram em terror quando percebeu que o impacto com ele era inevitável.

Como o esperado, a explosão encobriu a área onde estava em uma nuvem circular de pooeira. Reiko colocou as mãos sobre sua boca, desesperada — a possibilidade do aluno da rainha ter pulverizado o herdeiro da casa Tamaki fez milhares de cenários passarem em sua mente naquela hora. Togami, porém, continuava no lugar, impassível, embora sua aura estivesse novamente contida.

Escutou a tosse seca de seu melhor amigo soar aos seus ouvidos, o que a fez correr na direção do som. Em meio ao rastro de destruição, a silhueta de Kai, repleto de queimaduras, aliviou todo o medo que preenchia o coração apertado da princesa. O nobre tentou se forçar a estender a mão na direção de seu oponente, suas íris queimando com o mais puro ódio pelo plebeu que o fizera passar tamanha vergonha.

— Seu… maldito! — A voz dele saiu fraca e lenta pela dor que sentia. — Como ousa…?

— É um duelo mágico. Teve sorte que só reagi ao seu golpe — sibilou Togami, com grande desgosto na voz — e não que ataquei de surpresa como um covarde.

— Você vai pagar! Você… com certeza… vai… 

Kai caiu, inconsciente; teria se chocado ao chão se Reiko não tivesse pegado o corpo dele por reflexo. O olhar da herdeira do trono buscou o colega, que começou a caminhar para longe enquanto estava distraída. Aquele comportamento apático a irritou, embora ela não entendesse o porquê — deveria mesmo estar prestando tanta atenção aos seus movimentos, ao invés de tratar as feridas de sua paixão?

— Togami! Que porra foi essa? — urrou ela, nervosa e preocupada ao mesmo tempo. — Você quase matou um membro da nobreza! E meu amigo também!

— Não, ele quase me matou — retrucou o garoto. — Fala sério, eu fui atacado sem aviso e você ainda vai defender ele? 

— Não importa quem começou, seu idiota! Olha as feridas, isso foi perigoso!

— Se está tão preocupada com esse cara, leve ele pra enfermaria. — A frieza na voz e nas íris de Togami assustou Reiko. Ele não era assim. — Eu estou indo pro quarto, até mais tarde.

— E-Espera, Togami! Não é assim!

O grito dela não foi ouvido — pelo menos, o menino não reagiu a ele. O âmago da princesa ficou dividido entre correr atrás dele e cuidar dos machucados de Kai. A escolha que há um mês seria óbvia havia se tornado extremamente questionável, o que deixou sua cabeça em parafuso. 

Não estar certa do que fazer era um cenário bem raro. Seu instinto lhe disse para ficar, e Reiko abraçou o corpo inerte de seu amado, como Togami pôde ver pelo canto do olho. Inconscientemente, o garoto apertou os punhos com uma enorme frustração, desaparecendo de vista em seguida.

— Você está assumindo coisas, Shinwa — repreendeu Metatron.

— Você não sabe de nada! 

Togami poderia até não compreender, mas sua deidade sabia sim o nome do sentimento que o machucou. No fim das contas, o garoto era só mais um humano como outros muitos que Metatron um dia escolheu. Nada do que sentia era inusitado ao anjo supremo.

Sozinha com as próprias emoções, a Guardiã de Atena utilizava toda sua imensa capacidade cerebral para formular uma explicação para si mesma. Ela amava Kai, mas desde quando tinha tanto apreço pela simpatia e calor de Togami? Como, em um mês, a presença dele era tão forte em sua vida? 

Essa dúvida martelou seu interior. Por que não se sentia plenamente feliz de ter seu amor em seus braços?

A única que poderia responder isso era ela mesmo. Infelizmente, não encontraria a solução naquele dia.



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