Volume 1
Capítulo 14: Um breve "adeus"
— Estava ventando pela manhã, Rei?
A pergunta de Hanako veio quando a amiga sentou-se à mesa dos nobres para tomar o seu desjejum — Togami, ao seu lado, tinha as vestes e o cabelo tão desarrumados quanto os dela. Muitos outros membros das cortes encaravam a dupla com certa malícia e um tanto de julgamento.
O olhar da princesa faiscou ao mirar Shiro, que agora fazia a guarda do salão de banquetes, recostado à porta e de braços cruzados. Bufou audivelmente antes de direcionar sua atenção à amiga, que tinha uma faceta óbvia de confusão.
— Não. Uma certa pessoa, porém, tava uma tempestade — alfinetou, de cara feia. — De qualquer forma, mamãe já está impaciente. Temos que comer rápido e já sair.
— Mas já? Mal tivemos tempo para colocarmos nossos assuntos em dia…
— Eu sei, Hana, mas não podemos deixar Sophis tanto tempo na mão daqueles retrógrados. Capaz de tentarem um golpe de Estado na nossa ausência — esclareceu Reiko, enquanto buscava o que comer na mesa.
— Tudo bem. Espero termos mais tempo para conversar depois do exame de Palas.
— Claro que vamos ter, amiga!
Reiko apertou as bochechas da princesa, coradas pela atenção que chamaram. Tiveram poucos minutos para papearem — um guarda adentrou pela porta principal do salão para chamar Togami e Reiko, marcando a hora de se despedirem uns dos outros.
Hanako não admitiria o esforço que foi conter a enorme vontade de abraçar sua melhor amiga. Queria muito, muito mesmo, mas os olhares dos demais nobres pisoteavam sua confiança. A resiliência de Reiko para suportar tamanha pressão era impressionante. Tão logo Shuyu cruzou a porta, meio acordado meio em transe, a princesa de Sophis e seu escudeiro se despediram dele com um aceno.
A dupla seguiu o homem pelos corredores até a entrada do castelo. Logo ao portão, três figuras, em roupas casuais, aguardavam pacientemente. Quer dizer, uma delas não tanto — Yumeko Chiwa pisoteava o chão num ritmo constante, e a expressão aterrorizada de seu marido dizia por si só que estavam encrencados.
— Reiko Chiwa! Por que tanta demora, filha? Sabe que eu não gosto de atra… — Os olhos azuis moveram-se entre a princesa e Togami por alguns instantes. — Oh. Interrompi algo?
A rainha de Sophis escondeu parte do seu rosto sob seu chapéu de veraneio. O vestido de estampa florida da mãe agora era tão vermelho quanto o rosto pintado de vergonha de Reiko, que gaguejava incongruências. Quando achou que conseguiria formular uma frase, seu mais novo amigo tomou a frente, peito estufado e mão sob o coração, como um soldado.
— Sim, mestra. Estávamos ocupados pela manhã, perdoe nossa aparência indigna de sua realeza — desculpou-se Togami, com uma mesura.
Um murro bem dado na lateral da face fez o garoto perder o equilíbrio das pernas. Reiko respirou fundo enquanto escutava os risos de Tamashi e Yumeko, bem como o pigarreio tímido de Koushiro. “Tinha que ser esse estúpido!”, xingou dentro de sua cabeça enquanto tentava recuperar sua compostura.
O rapaz até tentou encará-la para entender o que havia dito de errado. A aura dourada que a garota exibiu o fez se arrepender de meramente tentar contestar a agressão. Só lhe restava engolir em seco e aguardar.
— Corrigindo a fala desse completo incompetente, honrada mãe — pontuou a princesa, o mais impassiva que conseguiu — saímos antes do café da manhã para treinar por perto e encontramos Sua Majestade Ryoujin. Depois, o senhor Sorako nos carregou rápido demais de volta.
— Ainda bem! Já achei que teria achado sua distração de fim de ano — provocou Yumeko, arrancando mais uma expressão adorável de vergonha da filha. — Tenho certeza que o Kai não gostaria disso. Que bom que estava errada.
— M-Mãe! Não começa! Você sabe… — A rainha calou a princesa ao colocar o indicador sobre seus lábios.
— Estou brincando, querida. Vamos, estamos atrasados.
O casal real pegou a caçula pelas mãozinhas para seguirem em direção ao trem que os levaria de volta para casa. Alguns passos para trás, os jovens discutiam entre si sobre o mal-entendido que Togami gerou, em alto e bom som.
— Esses dois certamente estão se dando bem — riu Koushiro junto da esposa.
Desceram algumas ruas em direção à estação em passadas curtas. Reiko estava pronta para jogar sua próxima ofensa ao garoto quando notou uma menina loira um pouco distante, acenando para eles. Ao lado dela, dois outros rapazes também encaravam a princesa e seu colega.
— Ei, alpinista de sofá, aqui! — Haruhi Seishin chamou com um grito, tão alto que alguns pedestres pararam para olhá-la. — Não me ignora, sei que tá me escutando!
— Desculpa a pergunta, mas o que você tem contra mim? — suspirou Togami.
— Agora, nada. Só acho mais fácil você saber que sou eu — ironizou a loira, rindo sozinha. — Quase foram embora sem se despedir. Sorte que o Tatsu lembrou que esse era o caminho pra estação.
Mais próximo do trio, Togami deu-se conta da presença de Heishi. Reiko sentiu seu amigo tensionar os músculos e recuar — o Guardião de Búri ficou confuso pela atitude. “Ele nem se lembra do que falou, né?”, pensou a princesa, assumindo a dianteira para evitar conflito com o ego do galã de gelo.
— Já estão indo pro castelo? — questionou Chiwa. — Achei que só semana que vem que fariam a mudança.
— Essa impaciente aqui… — Tatsuyu passou o braço por trás dos ombros de Haruhi, pegando-a de surpresa. As orelhas dela queimaram. — insistiu para o senhor Houseki que nós nos mudássemos o quanto antes. E como ela disse, eu lembrei que vocês iriam embora hoje.
Os olhos azuis de Heishi encaram os de mesma cor de Reiko. Ele estendeu a mão junto de um de um olhar sugestivo, que não passou despercebido pela princesa. Se Reiko quisesse realmente puni-lo por aquela afronta, o faria naquele instante, mas se controlou muito bem com uma respiração profunda.
— Certeza que não precisam de ajuda para ir até a estação? Poderia ser uma boa hora para nos conhecermos melhor.
A voz suave não persuadiu Chiwa. A mão dela encontrou o ombro de Togami, confuso e acuado pela atitude de sua colega. Reiko confortou-o com um sorriso muito belo, pelo menos para ele.
— Agradeço a gentileza, senhor Reiketsu — recusou, com polidez — Mas já estou muito bem acompanhada, pode ficar tranquilo.
A Guardiã de Atena puxou seu parceiro pela mão, mas este não se moveu. Parecia pensar em algo que o deixava nervoso — apesar de Reiko estar com pressa, sabia inconscientemente que não deveria interromper aquele momento. A boca do garoto abriu e fechou algumas vezes, ansiosa e insegura de como transmitir suas sensações.
Pelo visto, ele se cansou de procurar palavras perfeitas.
— Eu… E-Eu queria agradecer! — gaguejou Togami. — Eu só dei esse passo por sua causa, Tatsuyu. Obrigado.
Com simpatia genuína, o rapaz de cabelos degradê estendeu a mão para Tatsuyu. Antes que ele pudesse acatar o cumprimento, Haruhi se meteu entre eles.
— Ei, Togami — chamou, para a surpresa dos demais, a loira — eu sei que fui grossa contigo antes, mas obrigada por ter se importado com o Tatsu. Espero que possamos nos conhecer melhor outra hora.
Heishi foi o mais surpreendido pelo gesto de sua amiga. A protetora e rancorosa Haruhi Seishin, infame por guardar mágoas por anos — experiência própria dele —, sendo simpática com alguém que a enfureceu dias atrás? “Será que ela enlouqueceu de vez?”, refletiu.
Dizer-se incrédulo era eufemismo. Ele certamente a provocaria mais tarde para entender a intenção por trás das atitudes dela.
— Faço das palavras dela as minhas. Te vejo em Palas, beleza? — Tatsuyu interrompeu o fluxo de pensamento de Reiketsu. — É uma promessa.
Um aceno de cabeça foi tudo que Togami foi capaz de oferecer a ele naquele momento. Sem mais o que dizer, partiu atrás de Reiko, em direção ao seu destino.
Shiro adentrou apressadamente o salão de descanso do castelo. Com o fim do evento e a debandada das famílias reais, partir em uma missão para coletar informações era sua prioridade — sentia-se aterrorizado e ansioso com a ideia de estar perdendo tempo. Seria breve em pedir permissão à Taeka para voar pelos quatro continentes.
Porém, logo ao adentrar o cômodo, percebeu que demoraria um pouco mais do que o desejado. Para sua não tão grande surpresa, a Líder Suprema, aquela que havia reservado o ambiente naquele horário, estava acompanhada.
Sentadas em um dos bancos, Taeka e uma mulher de longos cabelos castanho-avermelhados apoiavam a cabeça uma na outra. O recém-chegado suspirou pesadamente, ajustando a gola de seu uniforme da Longinus. “Isso vai ser um saco”.
— Líder Suprema Taeka Haruki — anunciou o loiro — é sério que desligou sua percepção mágica menos de uma semana depois de um ataque direto à realeza?
A mulher deu um salto de susto, mexendo também a companheira. A acompanhante encarou os arredores, desnorteada, enquanto Taeka ajustava as vestes amassadas. A tossida para mascarar sua gafe foi mais reveladora do que ela imaginou — estava com uma expressão satisfeita demais para esconder o que faziam.
— Ora, Shiro, não tem noção do quanto é exaustivo escutar, sentir e ver tudo o tempo inteiro — justificou Taeka, ainda arrumando o próprio cabelo. — Até eu preciso de um descanso às vezes.
— Se eu fosse um inimigo, vocês dois estariam mortas.
— Mesmo dormindo, Rei iria reagir se sentisse qualquer ameaça, sem contar as dezenas de soldados ao nosso redor — retrucou novamente, convicta.
A Arcanjo Mudo, Reiyo Suishima, soltou um grande bocejo. Sem suas roupas largas da Longinus, seu corpo musculoso e torneado era ainda mais aparente — era como se tivesse sido esculpida à mão por um grande artista. As íris chocolate dela encararam Taeka e Shiro, aos poucos processando a situação.
A maneira que arregalou seus olhos era bem avulsa à sua personalidade.
— Eu dormi? — A pergunta preocupada escapou por entre os lábios rosados. — Desculpa, Tae, fui descuidada.
— Imagina, raio de sol. Sei que você não estava cem por cento em sono profundo. E também, querido Shiro…
Um estalo de dedos da comandante da Longinus revelou uma espessa barreira dourada que, até então, o Guardião do Raijin não havia sentido um traço sequer. Taeka sorriu para o seu general, dando um selinho carinhoso na parceira em seguida — convencida e preparada como sempre.
Shiro pensou no quão enorme era o abismo entre eles. Uma única patente separava-os na hierarquia, e ainda assim ela estava muito à frente dele — e de qualquer outro — em todos os aspectos. Suas reflexões teriam que ficar para outra hora, visto o assunto principal que viera tratar.
— Eu nunca estou desprotegida. Isso eu te garanto.
— Tá bem, faça como quiser. Vim pedir sua permissão para sair até meados de fevereiro. — O homem foi direto ao ponto. — Há algo errado com o ataque à filha dos Chiwa. A Águia deveria estar ainda cruzando o oceano. Como ela passou por Cielunia, o Oceano Odisseu e 2 reinos de Origoras em tão pouco tempo?
— Não nego que fiquei surpresa com seu relatório, Shiro, mas outra coisa me intrigou.
Com um gesto, a líder conjurou um amontoado de papéis. Neles, um conjunto de informações, pontuadas em tópicos, preenchia do topo ao rodapé cada uma delas com detalhamento preciso. A ficha de Koe Rikimiya, criminosa procurada de alto nível, estava anexada por um clipe ao resto do maço.
— A Águia Dourada do Apocalipse é conhecida por atuar sozinha — leu a mulher — e naquela noite, você disse que haviam duas auras fortes.
— Correto.
— Esse seria o primeiro ataque dela estando acompanhada. O histórico dela é de apenas ataques solo, e nunca contra membros do alto escalão.
O destaque dado a esse fato que Shiro já havia notado o fez bufar mais uma vez. A impaciência dele, conhecida de longa data pelo casal à sua frente, era característica desde a época da Academia, quando os três foram colegas. Pelo visto, o tempo não o acalmou.
A impaciência não era impulsividade ou grosseria, contudo. O homem respeitosamente pediu a palavra, apesar da notória ansiedade de resolver o assunto dentro dos próximos dez segundos.
— Sim. Faz anos que Reiyo fez o registro dela, destacando as capacidades dela em combate à longa distância. — Suas frases concatenavam-se tão rápido quanto seus pensamentos. — Tenho quase certeza que aquele era um reforço para garantir que não fosse capturada se chegássemos a um corpo a corpo.
— Mas quem seria cúmplice de uma procurada pela elite da Longinus? — inquiriu a Líder Suprema.
Reiyo, desperta, fechou os olhos para refletir. Como havia falhado em capturar Koe quando ainda era uma segunda-tenente, sentia-se parcialmente culpada pela situação. Fora a primeira vez que alguém conseguiu fugir da prodígio que era Reiyo Suishima em seus anos finais na Academia de Palas.
Como era esperado, a criminosa evoluiu em força num ritmo assustador. Desde que uma recompensa exorbitante foi colocada em sua captura, muitos Guardiões e civis ingênuos foram mortos pela ganância de abatê-la — sem dúvidas, ela era um alvo de altíssima prioridade.
O contexto tornava a questão de Taeka ainda mais relevante. Alguém que se unisse a esta Guardiã criminosa deveria ser capaz de, no mínimo, duelar de igual para igual com um dos Generais ou Coronéis. Não seria um guarda-costas comum.
— Tivemos uma sequência de acontecimentos estranhos nos últimos anos — ponderou, por fim, a Guardiã de Uriel — mas essa com certeza é a mais preocupante.
— Então não temos tempo a perder. Pode fazer as formalidades? — Shiro enviou um sinal com seu olhar para a loira.
Taeka captou a mensagem. Com a mão apontando para o homem, a ponta do indicador direito dela brilhou em dourado, rodeando a área entre eles com um círculo mágico.
— Eu, Taeka Haruki, na minha posição de Líder Suprema da Longinus, autorizo que Shiro Sorako, General da Brigada das Chamas… — O símbolo nas costas do uniforme dele brilhou à menção de seu nome e título. — utilize todo e qualquer recurso a sua disposição para coletar pistas da atividade de Koe Rikimiya.
Ao completar sua fala, um papel preenchido por um texto muito similar flutuou na direção de Shiro, que o pegou rapidamente. Ofereceu um aceno ao casal antes de desaparecer em velocidade supersônica. Taeka e Reiyo estavam a sós por mais algum tempo.
Haruki se espreguiçou um pouco e, em seguida, deitou no colo da companheira. Os dedos suaves e calejados da moça tocaram de leve o rosto da Líder, cuja expressão amoleceu em resposta à suavidade das carícias.
— Suas olheiras pioraram, Tae. Tem certeza que não quer que eu saia em missão também? — sugeriu Reiyo, de voz baixa e tensa. — Eu sei o quanto está cansada.
— Você passou dois meses na ativa, Rei. — Taeka cruzou seus olhos topaz com os de tom chocolate da parceira. — Eu não deveria ser egoísta, mas eu devo admitir que senti sua falta. Eu preciso de você mais um pouco.
Para quem não conhecia intimamente a Líder Suprema e seu braço direito, poderia ser estranho vê-las trocar gestos e palavras tão doces. O olhar de Reiyo, que quase sempre portava uma indiferença, naquele momento contrariava a impressão de que era incapaz de sentir emoções.
Na presença singular de Taeka, a Arcanjo Mudo se transformava em uma pessoa demasiada expressiva. Os monossílabos e gestos eram substituídos pela eloquência sentimental e pelo brilho natural que ela tinha. Perceber esta peculiaridade de Reiyo sempre aquecia o coração da mulher.
Um suspiro apaixonado escapou enquanto Taeka aconchegava-se melhor no calor de sua namorada. O raro sorriso genuíno, aquele que derretia toda e qualquer preocupação da Líder, preencheu os lábios da Arcanjo.
— Eu também sinto a sua, Tae. Todos os dias — confessou a mulher. — Ainda assim, por favor, comece a delegar suas tarefas. Você não consegue esconder o quanto está se destruindo.
A outra Guardiã não soube responder ao pedido. Que estava passando dos limites, isto ela tinha completa noção — entretanto, ninguém além dela tinha de fazer esse sacrifício.
Taeka era a escolhida de Neith, a Criadora. A divindade reconhecida mundialmente como a cabeça da Longinus e a mais forte de todas as Bênçãos e Maldições. A única a qual todos os reis e rainhas deveriam se ajoelhar, independente de idade, poder ou influência.
Não havia outra pessoa que pudesse carregar o fardo do mundo inteiro nos ombros, mas Taeka não poderia dizer isso à sua amada. Embora a responsabilidade que carregavam fosse similar, Reiyo jamais entenderia o que era estripar-se de seus desejos do início ao fim da vida.
Liderar era e sempre seria a missão de vida de toda Guardiã de Neith. A essência de Taeka jamais importaria.
— Vou tentar, Rei — prometeu vagamente a Líder. — Chega de falar disso, eu só quero aproveitar meu pouco tempo com meu amorzinho, tá?
— Tae…
Os dedos longos de Taeka roçaram os lábios de Reiyo, que corou intensamente. A loira caiu na risada enquanto sua companheira recuperava-se daquele avanço inesperado.
— Te provocar nunca perde a graça, Rei!
Entre xingamentos e carícias, o breve tempo que tinham juntas chegou ao fim. Partiram para seus quartos, uma em cada direção, para evitar escândalos de possíveis fofoqueiros. Mesmo sem dormirem uma ao lado da outra, foi a primeira em meses que Taeka conseguiu descansar sem preocupações.
Cada grupo agora tinha seu próprio destino. Alguns continuariam onde estavam, enquanto outros seguiriam para terras muito distantes do pouco que conheciam.
Todos os caminhos, porém, teriam o mesmo destino final: a Cidade de Palas, capital dos Guardiões localizada no centro de Origoras e separada do resto do continente pelo Mar das Lendas.
Mais cedo ou mais tarde, todos estes fios hão de ser unidos novamente.