Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 1

Capítulo 13: A clareira

5 de Novembro de 4817 - Continente de Origoras, Reino de Yggdrasil, Palácio de Dracone

 

— To-ga-mi! — A voz serena de Reiko soou pelo corredor. — Onde está indo?

A aproximação repentina da princesa arrepiou os pelos da nuca do rapaz de cabelos degradê. Como no dia anterior, ele gostaria de ir treinar em silêncio antes do horário do café da manhã — sua sonolência, contudo, permitiu que o plano fosse frustrado pela sua nova colega.

Mesmo o companheirismo reconfortante de Reiko fora o suficiente para fazê-lo compartilhar a informação de onde teria ido no mesmo horário, há 24 horas atrás. A curiosidade dela, pelo visto, não aceitaria ficar sem resposta. Togami tentou fingir que não era com ele, na esperança de que ela realmente fosse comportada o suficiente para não insistir em uma possível abordagem direta. As passadas rápidas dele quase foram o suficiente, se não fosse o golpe potente que levou-o a se desequilibrar.

— Tenho cara de besta? Você é a única pessoa que eu já vi na vida com essa cor de cabelo! — ironizou Reiko, aproximando-se. A formalidade entre eles havia caído há um bom tempo. — E eu te segui pra fora do quarto. É algum lugar proibido?

Realmente, não tinha como não perceberem seu sumiço. Como foi ordenado, ele só poderia ficar no palácio se ficasse no mesmo quarto que os Chiwa — para a sorte do garoto, a família real não se opôs e ainda o tratou muito bem até então. Tudo isso tornava bem difícil se esgueirar para fazer o que bem entendesse.

Togami deu-se por vencido, deixando o ar morno da manhã primaveril vazar de sua boca.

— Treinar. Prefiro esse horário para espantar a preguiça — confessou, quebrando o desconfortável contato visual com a amiga. — Achei que você fosse o tipo de pessoa que dorme até tarde.

— Você me acordou ontem quando foi sair de fininho do quarto, então fiquei curiosa.

— Já achei que estivesse suspeitando de mim.

— Claro que não! Já somos amigos, e eu confio até que bastante em você!

Novamente, foi desarmado pela sinceridade de Reiko. O sangue subiu às suas bochechas enquanto ele procurava as palavras certas, que ela não teve paciência para esperar. Um movimento sutil aproximou os corpos deles, incendiando ainda mais o calor que o consumia. Observar as safiras brilhantes da amiga a centímetros de distância dele com certeza estava mexendo com seus batimentos.

— De qualquer forma, onde vai treinar? — Havia um subtexto claro para ele na frase que ela proferiu.

“Eu quero ir”, deduziu Togami.

—  Vou sempre pra uma clareira fora da capital. Não é longe daqui — explicou, hesitante. Não tinha problema arriscar. — Quer ir?

A proposta de Togami soou tentadora aos olhos de Reiko, que balançou a cabeça empolgadamente. Ainda teriam algumas boas horas até o momento de voltarem para Sophis, assim um passeio pelo reino seria uma boa ideia. Seu lado racional levantou o último detalhe que faltava antes de qualquer coisa.

— Mas como chegamos lá? — Reiko piscou, confusa. — Você diz ser longe…

— E-Eu tenho uma ideia — murmurou o rapaz enquanto suas bochechas  . — Se me dá licença…

Em um movimento rápido, Togami ergueu-a em seus braços, tal qual um príncipe de conto de fadas. Mesmo desajeitado, os braços dele seguravam firmemente o corpo da princesa pelas pernas e ombros. Reiko estava tão vermelha quanto ele, e sua pele clara tornava isso muito mais perceptível do que na pele de tom chocolate dele.

— V-Você é mais leve do que pensei — riu o garoto, para tentar amenizar o clima.

— S-Se falar mais alguma coisa, eu mesmo corto sua cabeça! 

Saindo pela janela mais próxima, seguiram, apesar da vergonha os corroer. Reiko se ajustou nos braços dele para ficar mais confortável — Togami sentiu os cabelos macios e volumosos dela roçarem seu pescoço conforme corria mais rápido.

A princesa tentou quebrar o gelo à sua maneira, escondendo o rosto entre seus fios castanhos. Não havia como negar que o perfume que ela usava também era ótimo.

— Fala sério, o quão forte você é?

— Bem mais do que parece, mas bem menos que gostaria — brincou Togami. — Aprendi bastante com os cadernos do meu irmão.

O comentário descuidado deslizou pela língua dele, calando-o em seguida. Seu erro não passou ileso dos ouvidos apurados da princesa, extremamente curiosa.

— Seu irmão entendia de refino de mana? — Os olhos azuis dela buscaram os heterocromáticos dele, em vão. O ar pesou, assim como o estômago dela. — Desculpe, não vou ser intrometida.

— Algum dia eu te conto… eu acho.

O restante do trajeto foi incomodamente silencioso. O canto dos pássaros e o som do vento encobria o som dos batimentos acelerados de ambos, cada um por seus próprios motivos. Quando alcançaram a borda da floresta onde estava a clareira, escutaram o ar sendo cortado em algum ponto dentro da mata.

Togami desacelerou e colocou a princesa no chão após um rápido olhar dela. Receosos, a dupla buscou a origem do barulho, esgueirando por entre os arbustos densos, até localizarem uma silhueta imponente entre as árvores. Não conseguiam definir com clareza suas características físicas, mas tinham certeza de que se tratava de uma mulher.

A longa espada avermelhada em suas mãos movia-se com agilidade, ainda que a dupla não detectasse qualquer sinal significativo de mana.

— Eu sempre venho aqui, mas nunca tinha visto essa mulher — sussurrou Togami, tenso. — É longe demais da capital para ser coincidência.

— Vamos dar o fora e voltar, e aí chamamos algum Guardi…

— Quem está aí?

A voz feminina cortou a conversa aos murmúrios com frieza, o que levou os jovens a saírem vagarosamente de seu refúgio.

A desconhecida tinha a espada em riste e os cabelos loiros e ondulados presos em um rabo de cavalo, além de altura e musculatura consideráveis. Seu corpo era repletos de cicatrizes, a mais notável dela estava em seu rosto — um corte vertical, passando pelo centro do olho esquerdo, com a íris de um vermelho-sangue opaco. Bem diferente do escarlate vivido do olho direito, direcionado a eles.

Quando a guerreira reconheceu a princesa, guardou sua arma em uma bainha jogada ao pé de uma das grandes árvores. Para a surpresa de Togami, o objeto sumiu em um amontoado de partículas brancas.

— Perdoem-me pela minha agressividade anterior. Percebi a presença de vocês há uns bons minutos, mas não acreditei que me encontrariam.

A loira deixou os fios loiros caírem sob seus ombros definidos enquanto colocava um casaco branco com alguns detalhes feitos em pele negra. A lança e espada cruzadas, presentes na parte de trás das vestes da mulher, fizeram Reiko sentir um arrepio na nuca.

— Sou Amaka Ryoujin, rainha de Bellato. É um enorme honra enfim conhecê-los, Reiko Chiwa e Togami.

A Guardiã de Atena fez uma reverência, acompanhada instintivamente pelo seu colega. “Merda, merda”, pensou ela, desesperada e em busca de uma forma de atenuar a situação complicada em que havia se metido.

— O-O prazer é nosso, Vossa Majestade — saudou Reiko, ainda de cabeça baixa e de voz trêmula. — Pedimos perdão por invadir seu espaço de treinamento. Togami diz utilizar esta clareira todos os dias, não sabíamos que viria.

— Oh, entendo. Já o conhecia antes dele causar aquela confusão na Arena de Dracone. Estive nesta clareira na manhã seguinte à minha chegada em Yggdrasil. — A constatação dela deixou o rapaz atônito. Não se lembrada daquela mulher. — Para ser sincera, apenas o reconheci quando já havia acabado. Vim mais cedo na intenção de evitar outro encontro, mas aparentemente fizeste o mesmo.

— Não, Majestade! Nem mesmo notei sua presença da última vez — admitiu Togami, levantando as mãos em defesa.

Amaka aproximou-se muito rápido dele logo quando terminou sua fala. Seu tapa-olho negro estava de volta sobre sua íris cega, mas sua curiosidade podia ser expressa por seu único rubi. Togami sentiu-se intimidado pela maneira que ele perfurava sua alma, incandescente e julgador.

— Interessante… Você é um Abençoado, não? E de alto nível, presumo — comentou a loira, com a mão no queixo. — Não sentiu nada? Um barulho, um cheiro, uma presença estranha? Nadinha mesmo?

A enxurrada de perguntas aturdiu a dupla, que ficou sem respostas. Deveriam ter percebido algo além do som dos golpes velozes da espada? A falta de reação serviu apenas para Amaka suspirar, um tanto decepcionada — atitude esta que mexeu com a autoconfiança de ambos os jovens.

— Vejo que aprendeu apenas o básico, garoto, apesar do seu potencial.

— Aprendi tudo que sei sozinho, Majesta…

— Não tente me enganar, jovem — cortou ela, sorrindo. Não era um sorriso amigável, nem de longe. — Ninguém além de Taeka seria capaz atingir esse nível sozinho. Você foi treinado por um outro Guardião. E um especializado em percepção mágica.

A constatação fez Reiko encarar seu parceiro nervosamente. Ele havia tentado desviar do assunto sobre o “irmão” anteriormente, e agora ela entendia a razão de também não revelar seu sobrenome.

Havia algo do passado da família de Togami que não desejavam que fosse desenterrado. A flutuação na aura do garoto confirmou se tratar de uma mentira óbvia, o que confirmou a hipótese da mulher. Embora ela quisesse continuar arrancando os segredos dele, sabia que seria extremamente deselegante fazer isto com o protegido de uma grande amiga. "Que garoto curioso você arranjou, Yumeko...", comentou para si.

— Eu não te forçarei a contar sobre quem te ensinou conceitos tão afiados — prosseguiu Amaka — mas saiba que não seremos piedosos se ousar utilizar nossos ensinamentos contra a Longinus.

— Com certeza, Majestade! — Togami ajoelhou-se para mostrar a sua boa intenção. — O que me impressiona é que não detectei nada da sua mana. Existe uma forma de esconder totalmente sua aura?

A rainha bellana gargalhou com a pergunta ingênua dele, fazendo-o corar. A possibilidade de ter dito uma enorme besteira o fez queimar internamente de vergonha. Amaka demorou um pouco antes de conseguir acalmar o riso estrondoso.

— Não, não existe algo assim. Eu que tenho uma quantidade indetectável de mana, mesmo. Não sou uma Abençoada.

Da dupla, apenas Togami expressou fisicamente sua confusão. No imaginário popular, como já sabia Reiko, todo nobre era Guardião de alguma deidade, independente do prestígio de sua família. A rainha não ter uma fonte de poder, bem como dizer com todas as palavras que não possui um estoque de mana decente, foi um choque e tanto de realidade para o plebeu ao seu lado.

Amaka captou o sentimento dele com precisão a partir do olhar de Reiko.

— Eu não sou a herdeira, se é o que pensa. Eu me casei com o antigo rei, verdadeiro líder de Bellato — narrou ela enquanto terminava de limpar a sujeira de suas vestes. — Cumpro o papel de líder de estado até que meu filho possa assumir o trono.

— Então foi assim que as coisas ficaram em teu reino, Majaestade? Não tive antes a chance de desejar-lhe condolências. — Reiko adentrou a conversa em sua primeira oportunidade.

— Sim, mas isto são águas passadas, Chiwa… Pelo menos, para mim são. Não posso dizer que todos lidaram tão bem assim com isso.

O rumo da conversa naturalmente excluiu Togami, cuja noção de mundo era baixíssima — nem mesmo saberia apontar onde Bellato ficaria num mapa-múndi. Não tinha como ter a mínima ideia de qual acontecimento as nobres tratavam ali, apesar do olhar melancólico na face de Ryoujin lhe dar algumas pistas.

Amaka não quis estender a conversa muito mais. Devidamente arrumada, encarou uma última vez os estudantes, ao que Reiko viu como uma brecha para dizer o que queria desde o início. A princesa abriu e fechou a boca algumas vezes, em busca da frase perfeita para o momento.

— Ah, Majestade! — chamou em voz baixa. — Queria agradecer também pelo apoio na libertação deles. Sem sua ajuda, não acho que nós e a Líder Suprema conseguiríamos convencer as demais famílias.

— Não há de que. Coragem é a base de Bellato, e vocês mostraram determinação louvável para ganharem esta chance.

— Agradeço o elogio, senh… Vossa Majestade! — agradeceu o rapaz, com uma reverência.

— Espero que você se mostre digno deste respeito, Togami.

Com apenas estas palavras, a monarca sumiu de vista, sem deixar um único traço de sua presença. Reiko deixou-se cair no chão, claramente aliviada. Nem percebera que estava suando tanto até então.

Ao passo que a amiga se recuperava, Togami encarou suas mãos. Como ela deduziu aquilo sobre ele com tão poucas observações? Seria tão clara assim a diferença entre um especialista e um amador no controle de mana? Não só isso, mas a aura dela, embora minúscula, tinha cor branca, a mais rara junto de dourado e preto. 

Eram perguntas demais para serem respondidas — uma pena que aquele não era o momento. Agradeceu internamente que ela não seguiu com um interrogatório.

— Achei que ela fosse nos matar por ter interrompido o treino dela! — suspirou Reiko, tirando-o de sua reflexão. — Dizem que o compromisso com o corpo é sagrado em Bellato.

— Não fazia ideia de que era tão importante assim. Mas, o que rolou com o marido dela?

A questão de Togami gerou uma encarada irônica por parte de Reiko. Ele revirou os olhos antes de continuar, fazendo-a rir de leve.

— Calma, deixa eu terminar. Eu entendi que ele morreu, mas como?

— Um duelo até morte, dizem que por vingança. — Memórias do que escutou há quase uma década atrás rondaram a mente de Reiko. — O filho mais velho do rei também morreu e o caçula, Zuko Ryoujin, não completou 25 anos, então estabeleceram um decreto que a permite governar. Só posso dizer até esse ponto.

— Então foram duas mortes que levaram ela ao poder?

— Isso. Mesmo que ela tenha sido escolhida como rainha por sua própria força, ela não poderia governar em situações normais — pontuou a garota. — Bellato não aceita líderes de Estado mulheres. A senhora Ryoujn só ganhou esse direito por ser excepcionalmente fora da curva.

— Um “torneio de pretendentes”? Que lugar estranho — ironizou o garoto.

— É um país ditado pela força. Enfim, falo mais disso na viagem de volta.

— Quanto tempo mesmo vai ser? — Togami acompanhou a princesa, que começou a se alongar enquanto conversavam.

— 10 dias. 12 se pegarmos a rota de Harenaris, os trilhos de lá são mais lentos que os de Palas.

A lança e o escudo materializaram-se nas mãos de Chiwa, como um convite para finalmente partirem para o que vieram fazer. O rapaz de olhos bicolores retribuiu o gesto e tirou sua espada da bainha, tão contente quanto.

— Melhor de três? — sugeriu Reiko, liberando sua aura dourada.

— Com prazer.

Entre repetidos duelos, muitas provocações e recorrentes gargalhadas, perderam a noção de tempo.

Quer dizer, Togami havia perdido, mas Reiko não fazia questão alguma de relembrar que deveriam voltar logo para partirem à Sophis. No âmago da princesa, torcia para que o retorno fosse adiado mais um dia que seja. Uma vez em solo ateniense, sua liberdade juvenil seria sufocada pelos seus deveres como herdeira do trono. Aulas na parte da manhã, treinos durante a tarde e reuniões políticas à noite, quase que sem falta. O fato de Sophis ser a cabeça das nações de Aquapia e membro influente na Longinus tornava as tarefas de sua família ainda mais difíceis.

Cumpria seus deveres com maestria — quem havia definido o ideal de seguir o legado de sua mãe fora ela mesma, afinal. Porém, algo nela invejava a vida despreocupada do novo discípulo de Yumeko Chiwa. Como ele, queria correr sem rumo pelas planícies de seu país, sentir a brisa quente da manhã lamber seu rosto ou visitar as mais belas paisagens que tanto ouviu falar. Sabia que, apesar de sua rotina regrada, era mais fraca que ele.

Foi o sentimento enjoativo dentro de seu peito que a fez falar sem pensar.

— Ei, Togami. Como conseguiu sua deidade?

As palavras escaparam por seus lábios na forma daquela pergunta invasiva. Amaldiçoou a si mesma quando percebeu o teor de sua frase e um misto de culpa e dor preencherem as íris de seu amigo. Como antes, havia sido enxerida demais, um péssimo hábito que infelizmente sempre teve.

— Desculpa, eu não deve…

— Tudo bem. Não gosto de falar sobre, mas posso te dizer que foi há 5 anos — admitiu  Togami, com um sorriso amarelo. — Não foi lá muito legal também.

— Desculpa de novo. Curiosidade é uma coisa característica das Guardiãs de Atena…

Não era exatamente mentira. A ânsia de saber, como estava bem documentado nos livros confeccionados pela Longinus ao longo dos milênios, era incontrolável para os herdeiros da família Chiwa.

Quase conseguiu passar sua justificativa. Quase.

— Deveria é pedir desculpa por me usar, querida Reiko! — reclamou a voz doce atrás da princesa.

Com longos cabelos castanhos esvoaçantes e olhos azuis idênticos aos das garotas da família real de Sophis, a projeção mágica de uma mulher de quase três metros de altura encarava-os furiosamente. As longas vestes, brancas e sem mangas, e a coroa de louros sobre sua cabeça davam boas pistas sobre sua identidade, bem como os braços robustos.

— A-Atena! Que bom que apareceu…

— Me poupe, nos poupe, garotinha! — interrompeu a deidade, para o azar dela. — Vim me defender, e com razão! Tenho interesse apenas nos segredos da criação, não nas histórias pessoais de terceiros. Humpf.

Reiko não sabia onde enfiar a cara naquele momento de tão vermelha. Engoliu em seco, observando a reação do amigo — ele não aparentava compreender o que havia se passado. ”Obrigado pela lerdeza, Togami”, agradeceu mentalmente, enquanto seguia com a saída mais discreta daquele momento embaraçoso.

— Ah… Togami, essa é Atena. Atena, esse é…

— Togami. Eu sei quem ele é, Rei, você só pensou nele nos últimos 3 dias — ironizou a deusa da sabedoria. A cabeça da princesa já soltava fumaça. — Garoto, para não lhe causar desconforto, não foram pensamentos tolos.

Aliviado — e, ao mesmo tempo, chateado —, Togami observou Atena flutuar entre ele e Reiko, que protestava fortemente contra o comportamento de sua Bênção. Uma velha questão surgiu em sua memória, fruto da sua (falta de) interação com sua própria deidade.

— Uma coisa que nunca entendi… — Ambas focaram nele por um momento. “Elas têm o mesmo olhar”, pensou. — Divindades não são seladas? Então como você está saindo do corpo da Reiko?

— Oh, isto é meramente uma miragem — explicou Atena, sem rodeios.

— Quê?

A resposta não fez lá muito sentido para o garoto ingênuo. Sua feição de dúvida genuína arrancou risos de Reiko e sua deusa. Atena pigarreou antes de retomar sua compostura habitual.

— Eu tomei a liberdade de manusear a mana deste local ao meu bel-prazer pra criar esse corpo etéreo — clarificou a deusa, calmamente.

Aproximou-se de uma árvore e estendeu seu punho em direção ao tronco. Num piscar de olhos, a mana foi absorvida pelo objeto, enfim fazendo o garoto compreender.

— Tá, agora acho que eu peguei. É isso não consome magia da Reiko, não?

— Em parte, sim. Mas é tão mínimo para uma Guardiã como ela que só se eu permanecer semanas assim que ela sentirá algum efeito. — Atena sorriu com amor para sua portadora, acariciando os cabelos dela. — É muito mais agradável conversar com algo que está de frente para você.

— Queria ter essa sorte. Metatron, quando não tá dormindo, só fala como uma voz no fundo da minha cabeça.

O suspiro cansado afiou o olhar da deidade. Um ar misterioso a envolveu conforme ela formulava a melhor maneira de abordar o assunto sem trespassar os limites."Vejo que aprendeu com seus erros, Metatron", destacou para si mesma a deusa.

— Sempre foi assim. Embora eu entenda o porquê dele não se projetar nem mentalmente para você, criança. 

— Vocês deuses são confusos. Não seria mais fácil serem diretos sobre suas vontades?

Atena riu novamente, desta vez de maneira bem mais controlada. Um misto de desprezo e deboche que Togami achou desrespeitoso, embora não fosse admitir. Com os olhos heterocromáticos em contato pleno com as íris safiras da Bênção, ela sorriu.

— Diferente dos humanos, rapaz, a mais boba de nossas frases pode ser suficiente para alterar se uma pessoa viverá ou morrerá. — O tom gentil não mascarou a morbidade arrepiante de sua constatação. — Nossas ações devem ser cuidadosamente medidas. Como os mortais, partilhamos a incerteza do futuro. Somos…

— Ok, ok, amiga deusa, não precisa do seu discurso completo sobre “vivermos numa caverna”! — suplicou fervorosamente Reiko com voz chorosa. — Eu já escutei vezes demais, por favor…

— É mais forte do que eu. Ele foi certamente um mortal brilhante, uma pena não ter conseguido transformá-lo em espírito…

Togami não fazia a menor ideia do que estavam falando, mas invejava a relação de Guardiã e deidade delas. Óbvio que não faria esse comentário, apesar dele reverberar dentro de si.

Atena despediu-se para “pensar nos próprios assuntos” — palavras dela própria. A projeção se desfez em partículas enquanto a deusa acenava para eles, enfim deixando-os a sós.

Pouco mais de 20 minutos se passaram antes de serem interrompidos uma vez mais. Por entre as folhagens, um homem de cabelos loiros e vestido num uniforme da Longinus com detalhes em azul-piscina surgiu. Togami não precisou nem de palavras para perceber a fúria silenciosa transmitida pela aura dele. Sem saber quem era, liberou mais mana — o olhar dele, porém, recaiu sobre Reiko, que fez um gesto para seu parceiro se acalmar.

— Olha só, finalmente achei os dois pombinhos fugitivos. Perdi minha manhã de descanso mas finalmente achei vocês. — Shiro Sorako não poupou acidez em suas palavras ou em seus olhos azuis.

— Oh, verdade! — exclamou a princesa, fingindo inocência. — A gente tinha que ter voltado pra poder seguir viagem…

— Vossa Alteza, com o perdão da palavra, sua família é notoriamente conhecida pela memória perfeita. 

A expressão dengosa de Reiko derreteu-se em uma de derrota pela segunda vez em menos de meia hora. Arrastou Togami para se aproximarem do homem — a confissão da herdeira o satisfez, pelo visto. Cada um deles pegou uma das mãos do Guardião.

— Tá, já entendi, desculpa. Por favor, maneira nessa velocidade aí.

— Vou me controlar — murmurou, tomando posição para começar a correr. — Um pouco.

O grito uníssono que ecoou pela floresta comprovou que o Guardião do Raijin era definitivamente vingativo.



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