Fios do Destino Brasileira

Autor(a): PMB


Volume 1

Capítulo 12.2: Sede de poder

— Inverno Afiado!

Dezenas de cacos pontiagudos, vindos de todas as direções, atravessaram a distância entre eles, tal qual uma chuva mortal de estrelas. A majestosidade do ataque de Heishi não seria suficiente para abalar Ayame — já vira Keishi utilizar técnicas de calibre maior.

Embainhando sua espada temporariamente, sua aura azul-celeste a circundou. O vento respondeu ao seu chamado com um uivo.

— Tornado Cortante! — A magia elemental de seu oponente foi neutralizada em segundos pela lufada potente de vento, despedaçando todos os projéteis. — Lâmina de Vento!

A massa ofensiva de mana concentrada avançou contra Heishi. Um simples toque na empunhadura negra de sua espada, ainda presa ao solo, fez uma barreira maciça de gelo erguer entre eles, defletindo o ataque. O congelamento espalhou-se pelo solo, direcionado rapidamente à Ayame.

Na busca de escapar dos espinhos de gelo, ela saltou, mas aquele foi seu erro. Seus olhos buscaram o adversário ao dar-se conta de seu descuido, encontrando-o com as palmas envolvendo uma esfera de energia azul.

— Disparo Congelante!

Com um urro, arremessou sua magia contra a garota — o orbe crescia mais e mais durante seu deslocamento. A resposta mais rápida que Ayame teve foi solidificar o ar em frente ao seu corpo, como um escudo. Quando a técnica do garoto explodiu contra sua barreira, uma ampla área de efeito esférica foi criada a partir do epicentro do impacto — para infelicidade da Guardião de Eolo, seu braço direito estava dentro dela.

Não havia entendido o que aconteceu. Se havia bloqueado o choque direto, como fora congelada? A frustração dela deveria estar estampada em sua face, visto que Heishi gargalhou com a vingança, limpando uma gota de suor que escorria pela lateral de sua face.

— Manipulação elemental em área é minha especialidade, milady — reforçou, extremamente satisfeito. — Se admitir que perdeu, eu libero seu braço agora mesmo. É só pedir com jeitinho.

A garota de cabelo azul amaldiçoou sua falha, resmungando algumas ofensas. A desvantagem era grande demais para ser contornada meramente por sua técnica — perdeu o braço dominante e seu fluxo de mana apresentava os primeiros sinais de desgaste. A súbita percepção de seu cansaço apenas o piorou, fazendo-a sentir enjoo.

Suas pernas passaram a tremer. Já estavam assim? Não sabia dizer, visto que sua raiva tinha, até o presente momento, aprimorado sua tolerância aos efeitos do controle. Atacar e defender, em alta velocidade e por um longo período, era custoso demais até ao considerável estoque de mana de Ayame.

Heishi não demonstrava o mínimo incômodo em manter-se no mesmo ritmo. O duelo seria vencido exclusivamente pela capacidade mágica surreal do garoto; os anos de treino e refino técnico de suas habilidades de nada serviriam por puro azar. A falta de mérito aflorou um sentimento que há muito não consumia Ayame.

Inveja.

— Mexa-se! Vamos, eu não posso parar de lutar! — repetia para si mesma, como um mantra. — Eu não quero parar!

— Então você deseja vencer, garotinha? 

O sussurro no fundo de sua consciência só poderia vir de Eolo. Sua aparição em um momento tão conturbado era curiosa — sentiu ele sorrir dentro de sua cabeça, ainda que não pudesse ver além do véu que eram seus cabelos brancos.

— O que você quer, Eolo? — respondeu com rispidez.

— Se quer ganhar, que tal um corte na perna? — Tamanha maldade na voz dele enojou a garota. — Faça isso e você vai ter o poder que precisa. Dessa vez, é só isso.

Ayame hesitou. Era a primeira vez que o caminho para a melhora era tão simples, e isso a assustou. Porém, não tinha tempo para refletir — era acatar a proposta de sua divindade ou proclamar sua eventual derrota, ainda que lutasse com tudo de si.

Passou a rapieira para a mão esquerda, o pulso firme ao redor do cabo branco. Um movimento preciso foi tudo que necessitou para trespassar sua perna com o fio de sua lâmina, tornando-se surda aos sons externos. Seus sentidos não captaram as reações da platéia, mas ela não se importou naquela hora. Precisou dar tudo de si para não gritar em agonia.

Como um sopro de vida, o interior de Ayame fora preenchido por uma quantidade embriagante de mana. O pulsar de seu coração, o sangue circulando por suas artérias, o som de sua respiração… Tengoku era capaz de perceber cada mínimo detalhe com extrema clareza. A sensação de poder era deliciosa.

Saltou com sua magia de vento para, em seguida, deixar-se seguir em queda livre na direção de Heishi. O rapaz posicionou a espada acima da cabeça, iniciando um movimento para um contra-ataque. Momentos antes do impacto, sua oponente levantou o braço congelado.

— Explosão!

O uso de impulsão para esquivar em pleno ar desorientou o Guardião de Búri, cuja incapacidade de redirecionar a espada mostrou-se evidente. A armadilha, até ali, funcionou com perfeição.

O que Ayame não contava era com sua falta de destreza com a mão canhota, bem como a rotação rápida de Heishi ao redor de seu próprio corpo. O golpe dela pegou de raspão no ombro do rapaz, e ele emendou o bloqueio com um corte direto na lateral do abdômen de sua rival.

Sem forças para aterrissar, o corpo ferido de Ayame Tengoku chocou-se com o solo  a alguns metros de distância dele, sem qualquer resistência por parte dela. Uma derrota total, indiscutível e brutal. Pelo menos, era o que pensava o público. 

O baque surdo da garota foi seguido por uma força invisível abrindo um enorme ferimento no ombro direito e parte do peitoral de Heishi. O sangue jorrou, obrigando-o a se agachar perante à dor excruciante — seu olhar alterou entre descrença e desespero.

Ayame estava caída, ofegante e sangrando pelo duro impacto, então quem havia sido responsável pela técnica que atingiu o rapaz? O mistério pairando a questão foi logo resolvido por Suika Jishima, cujos olhos brilhavam com o que havia acabado de presenciar.

— Que bela jogada? Vocês viram aquilo? — perguntou com grande entusiasmo.

— O que era pra nós termos visto? — Togami, aquele que a militar mais tinha esperanças de entendê-la, logo acabou com a expectativa. 

— É, eu vi o Heishi acertar ela na queda, e não tinha como ela ter cortado com atraso! — Haruhi interveio, indignada. — Eu não vi absolutamente nada se mover!

— Vocês não viram mesmo — riu Suika, antes de explicar. — Quando ela foi ajustar a posição da rapieira, não passava de uma atuação para invocar uma Lâmina de Vento em plena queda!

— Isso não faz sentido. Eu teria percebido, assim como eu percebi a linha invisível do Segunda Cadeira ontem — contestou Togami, crítico. — Ela não tinha tempo suficiente para esconder uma onda mágica.

— Emissão mágica é onde a Ayame mais se destaca. Não posso dizer muito, mas ela… — Suika pausou, pisando em ovos — precisou mais do que qualquer um ser discreta. Não me surpreende ela ser melhor que o Segunda Cadeira nesse aspecto singular.

Em meio aos gritos da plateia e os questionamentos de seus incrédulos colegas, Shuyu abriu um largo sorriso. Alheio ao ambiente ao seu redor, tudo que podia fazer era pensar no progresso que sua amiga havia feito mais uma vez enquanto batia palmas fervorosas.

— Tô orgulhoso de você, Ayame — sussurrou para ela, na esperança do vento carregar seu elogio à garota.

No campo, Heishi congelou parte do seu corpo com uma camada de gelo, decidido a parar a hemorragia. A profundidade da ferida já era ruim o suficiente — combinada à ardência causada pela diferença de temperatura entre sua magia e a derme, então, era intolerável. Processar a situação naquelas condições degradantes estava se mostrando um esforço sem tamanho.

“A queda e o corte deveriam ter derrubado ela de vez. Então como? Onde eu errei? Eu não errei nada!”, debateu internamente, ofegante e agonizando com a dor. A quebra de expectativa bagunçou seus pensamentos, tornando-o também incapaz de notar a movimentação vagarosa de Ayame.

— Ei, seu otário — chamou a garota, com sangue escorrendo pelos cantos da boca — olha pra cá.

Ayame não só estava consciente como tinha conseguido erguer o corpo com o auxílio de sua arma. A ausência de amortecimento no choque com o solo tinha feito um estrago considerável em seu rosto — suas pupilas, contudo, incendiavam o ar com o fogaréu de emoções as preenchendo.

O mais rápido que conseguia com sua condição física, a Guardiã de Eolo cortou o ar mais uma vez. O peito de Heishi logo foi marcado por outra ferida diagonal, completando um xis em seu abdômen e derrubando-o. A garota manteve a pose por alguns segundos, apenas o suficiente para escutar o seu triunfo ser celebrado pelos espectadores.

Ela caiu de joelhos, semi-consciente e com toda satisfação do mundo preenchendo seu âmago. 

Suika desceu ao estádio sem chamar a atenção dos demais, aplicando sua magia de água curativa sobre o peitoral exposto de Heishi. Acreditou que ele estaria desmaiado — não o julgaria se fosse o caso, visto que conhecia bem até demais a dor de um ferimento como aquele. Foi surpreendida quando os dedos grossos do garoto apertaram suavemente sua mão direita, apenas para chamar a atenção dela.

— Poderia… deixar a cicatriz? - ofegou ele, causando confusão na mulher ao ouvir o pedido incoerente. “O que cacete ele tá falando?”, pensou. — Eu quero lembrar de hoje, por favor. Só ela pode ser minha rival.

Apesar da estranha unilateralidade daquela demanda, Suika não foi contra o ponto de vista dele. Heishi havia escolhido a única que respeitaria como igual entre as pessoas da mesma idade, embora ela estivesse crente de que Ayame não retribuiria o gesto com a mesma simpatia.

Aquela cicatriz era mais um lembrete para ele sobre a vez que reconheceu a força da Guardiã de Eolo. Tudo isso, claro, era meramente sua opinião pessoal, e que não emitiria até ser questionada.

— Tudo bem. Serei rápida para estancar o sangramento — replicou a militar, atenuando o brilho das águas que o envolviam.

Ouviu-o murmurar um baixo “obrigado” antes de desmaiar em seus cuidados — a fadiga física do duelo não era desprezível, afinal. Antes mesmo de terminar de remendar o corpo de Heishi, sentiu a aura gigantesca de Keishi aproximar-se de suas costas, densa como uma floresta. Sua presença a surpreendeu, visto que tinha ouvido dos demais Guardiões que ele estava apagado pela embriaguez há pouco mais de meia hora atrás.

— Ou, Houseki! — chamou a mulher. — Não estava bêbado?

— Eu senti a aura da Ayame oscilar e vim ver se ela estava bem — argumentou o homem, com um bocejo. Ele nem mesmo desviou o olhar para responder, já com as mãos brilhando sob o rosto de Ayame. — Algumas costelas quebradas, um osso fora do lugar aqui e ali e esse corte horrível na lateral da barriga. Nada que não consiga arrumar com algum esforço.

— Ainda bem, aquela queda foi feia.

— Vocês deveriam botar limite nesses duelos. Uma hora vai dar merda — expressou sua preocupação, o olhar afiado direcionado à Suika.

— Deixa a garotada se divertir, Houseki! O que não mata, deixa mais forte!

Keishi grunhiu alguma ofensa à militar, focado em ajustar as feridas de sua “filha”. Estava tão sóbrio que chegava a ser assustador a velocidade de recuperação dele. Não demorou muito para, uma vez quase curada, Ayame abrir os olhos castanhos com certão confusão.  

— Kei… — Uma fisgada dolorosa fez a garota arfar de dor ao tentar pronunciar o nome de seu pai adotivo. — Eu venci?

— Podemos dizer que foi um empate, apesar de eu achar que venceu — confortou o homem, ternura esbanjando de suas palavras. — Descanse por agora, já estou quase chegando na hora de tirar suas cicatrizes.

O grupo se dividiu novamente entre rodear Ayame e acompanhar Heishi, carregado por Suika, até a enfermaria. Discutiam entre eles sobre o resultado — na prática, ambos desmaiaram ao fim do duelo, o que deveria ser um empate. Conforme contavam à jovem sobre suas impressões da luta, sentiram a aura azul dela voltar a balançar o vento ao seu redor.

A ideia de que não havia sido uma vitória clara para a garota de cabelos azul-gelo já foi o suficiente para fazê-la surtar de raiva. Mesmo ferida e esgotada, encontrou forças para se pôr de pé em um salto.

— Merda, merda, merda! Como isso acabou em um empate? — praguejou Ayame de súbito, assustando seus companheiros. As orbes dela fixaram-se em Keishi, semicerradas. — Deixa a cicatriz.

— O quê?

— Eu disse, deixa a merda da cicatriz na minha barriga, Kei! — Nem mesmo seu querido familiar foi poupado da tempestade de sentimentos que a capturou. — Eu não posso esquecer dessa vergonha!

— Mas queri…

A rapieira perolada foi velozmente apontada para Houseki. “Ela não deveria estar sentindo a dor fantasma de ser curada?”, refletiu antes de desativar sua técnica de regeneração. Como requisitado por ela, deixou a cicatriz fina e escura marcar a pele clara de seu abdômen. Para ele, vaporizador da graciosidade feminina, ver aquela anormalidade na superfície perfeita da barriga de sua filha o fez soltar um suspiro de decepção.

Ayame, recuperada e bem disposta, disparou para o vestiário feminino junto de Reiko e Hanako com apenas um olhar entre as três. Antes de cruzar o restante do campo, a plebeia parou sua corrida ágil e apontou para Shuyu.

— Shuyu!

— Oi?!

— Treino hoje depois do jantar, sem falta! — ordenou, em tom leve. — Não se atrase, eu estarei te esperando!

As três sumiram nas sombras, deixando Shuyu e Togami para trás com o Guardião. O mais baixo deles colocou a mão no queixo, pensativo.

— Sabe, Alteza, mulheres são confusas. Elas nem falaram entre si e foram todas juntas ao mesmo tempo pro mesmo lugar — analisou o garoto. — Será que elas tem um sinal pra esse tipo de coisa? Não consigo acreditar que seja espontâneo.

— Não sei, cara. Mas bem, como ficamos aqui… — Shuyu olhou para o adulto ao seu lado. — Kei, quer dar uma volta com a gente? Vou mostrar o lugar pra ele.

Sob o breve julgamento do Guardião, Togami sentiu temor de ser rejeitado ali mesmo. Ao contrário do que imaginou, Keishi estendeu a mão cordialmente, com uma expressão simpática — sua aura partilhava desta mesma emoção calorosa, o que quase eliminou os medos do menino.

— Claro, Alteza — concordou antes de voltar a observar Togami. — Eu tenho um bom pressentimento sobre você. Espero vê-lo na Academia de Palas.

Os cabelos degradê fizeram um bom trabalho escondendo o rubor das bochechas dele. Ser elogiado por um guerreiro de alta classe não estava na sua lista de expectativas para aquele dia, fazendo um sentimento de estranheza preencher seu corpo.

“Nunca falei com gente da minha idade lá na vila, e os adultos não falavam comigo por causa do meu irmão… Então qual a razão deles serem tão amigáveis e me tratarem tão bem?”, questionou Togami, ocupado em seguir a dupla pelos corredores. Eles conversavam sobre possíveis destinos da região para mostrar, algo que o plebeu não entendeu uma única palavra.

Contudo, teve a certeza de que não notou qualquer traço de maldade ou menosprezo nas atitudes deles, embora sua guarda nunca baixasse. Queria poder confiar plenamente neles.

— Ei, Togami, está escutando? — duvidou o príncipe, entretido pela reação de vergonha dele. — Sabia que não. Te chamei por quase um minuto inteiro.

— Perdão, Vossa Alte…

— Shuyu — interrompeu o herdeiro — pode me chamar de Shuyu, Togami. Não precisa manter a formalidade, vamos provavelmente ser colegas a partir de fevereiro.

A espontaneidade de Shuyu desorientou o baixinho, que se manteve calado. “Acho que posso dar uma chance”, pensou antes de aproximar-se deles com um genuíno sorriso no rosto. 

— Claro, Shuyu!



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