Volume 1
Capítulo 12.1: Sede de poder
— O que você disse, seu imbecil?
O urro ofensivo de Reiko ressoou claramente para todos ouvirem. Seja lá o que enfureceu a princesa de Sophis, com certeza a tirou dos trilhos — sua aura dourada contornava seu corpo e sua lança se materializou num piscar de olhos.
— Isso mesmo que você escutou, princesinha — debochou Heishi, mordiscando mais um pedaço de seu mousse. — Harenarianos sujos são problema onde quer que vão. Nada do que disser vai mudar esse fato.
Hanako havia perdido o momento em que a conversa escalou para aquele tom agressivo. Havia se distraído em uma conversa com Titania dentro de seu consciente, então as vozes de seus novos amigos tornaram-se sussurros. Agora, porém, queria entender o que raios teria sido dito sobre os harenarianos para sua melhor ter perdido a paciência tão rápido.
Conseguia sentir as engrenagens da mente de Reiko trabalharem a todo vapor, imaginando toda e qualquer possibilidade. Os olhos âmbar esquadrinharam cada mísero detalhe o conflito: Togami estava calado em um canto, cabisbaixo; Heishi e Reiko encontravam-se a um passo de iniciarem uma batalha, o que era impedido por Haruhi, Tatsuyu, Ayame e Shuyu.
Como sempre, ela não sabia o que fazer, e tinha medo demais de tomar uma atitude e apenas incendiar ainda mais os ânimos.
— Você é um completo otário pra um Abençoado. Com um comportamento tão mesquinho, o fracasso é seu único destino.
As palavras ácidas da Guardiã da Atena atingiram o ego enorme de Heishi.
— Corta esse discurso barato, princesinha. Em quase meia década de “paz”, eles ainda não conseguem limpar a própria imagem? — zombou o jovem, com um sorriso malicioso no rosto. — Me conta uma piada que é melhor.
— Se palavras não bastam, que nossas armas decidam a verdade!
— Eu esfregaria o chão com você, Alteza. — O sarcasmo dele foi a gota final. — Uma luta se resolve com força, e isso eu sei que tenho mais que você.
Hanako levantou-se, pronta para defender a honra de sua melhor amiga. Mal teve tempo de rebater a afirmação rude — uma lufada de vento passou frente à princesa das fadas, balançando seus cabelos. O som de metal se chocando veio logo em seguida.
Uma rapieira branca e uma espada de fio azul lutavam pela dominância de seus respectivos portadores. A aura de Ayame tinha uma cor parecida à de seu novo inimigo, embora os contornos estivessem separados tal qual água e óleo. Ela estalou a língua.
— Muita marra pra quem só conseguiu reagir no último instante — provocou Tengoku. — Um instante a menos e você ia passar a tarde na enfermaria.
— Ora, fiquei até do medinho da senhorita furacão. — As faíscas entre eles apenas incendiaram ainda mais o incêndio de emoções. — Que tal um duelo. Prometo pegar leve pra não machucar o seu belo rosto, milady. Tem que ser cavalheiro com as mulheres, né?
A pomposidade na voz dele causou asco em Ayame, que criou distância dando-lhe um empurrão com sua arma. Com o indicador apontado para o coração dele, o encarou no fundo dos olhos, erguendo de leve o queixo para tal. A diferença de altura entre eles não era tão grande assim.
— Vou fazer você rodar tanto dentro do meu vendaval que você não vai saber nem esquerda e direita.
— Vou adorar ver você tentar, gatinha. Me encontre meio-dia na arena.
Ayame, junto de Reiko, Hanako e Togami, partiu a passos pesados para se preparar. Em paz uma vez mais, o Guardião de Búri bebericou seu suco enquanto olhava pensativamente para a porta por onde sua oponente havia saído.
Um brilho de excitação pairava sobre ele. Algo o havia deixado curioso, e Haruhi sabia muito bem o que era. Preparou-se para não perder a paciência com ele, ao menos nos próximos minutos.
— Essa garota é interessante, gostei dela — avaliou, com desejo permeando suas palavras. — Será que, se eu ganhar e pedir desculpa, ela sai comigo?
— Será que você tem tara em ser espancado por mulheres bonitas? — Haruhi, cujos braços na cintura expressavam sua indignação, gritou com seu amigo moreno. — E eu não concordo nem um pouco com o que você disse sobre os harenarianos.
— Qual é, que homem que se preze não gostaria de ter uma mulher bonita batendo nele? — Tatsuyu ergueu a mão em resposta, ao que Heishi exprimiu fisicamente sua discordância. — Você me decepciona às vezes, Tatsu. Quanto aos harenarianos, apenas minha opinião.
— Um harenariano ajudou seu melhor amigo e tentou salvá-lo. Ele parece uma pessoa ruim para você? — Shuyu tomou coragem para se posicionar. — Eu sei que você tem algum problema pessoal com eles, mas isso não é justificativa.
— E no mesmo dia que salvou o Tatsu, fugiu de casa. Ele é problema, Alteza, sabe disso.
Tatsuyu ponderou o ponto de vista de seu parceiro. Havia certa coerência no raciocínio dele, ainda que ofuscada por uma raiva irracional e incompreensível aos demais — inseriu outra larga porção em sua boca para pensar um pouco antes de entrar na conversa.
— Até aí, nenhum de nós é normal, cara — ponderou, por fim, o Guardião de Hefesto. — Eu também achei vacilo, mas você que sabe.
Perceber que nenhum de seus amigos, novos ou antigos, concordava com sua linha de raciocínio o fez bambear mentalmente. Sua insegurança foi espantada rapidamente pelo seu enorme ego, que não o deixaria se abalar com apenas aquilo.
— Enfim, hora de cumprir o que eu disse — estabeleceu, mais para si mesmo do que para os seus colegas.
O rumor de que um dos novos alunos do rei enfrentaria a discípula de Keishi Houseki atraiu pessoas de todos os cantos da cidade. Mesmo os alunos que já haviam voltado antes para casa preenchiam parte das arquibancadas do estádio.
Muitos espectadores, curiosos e empolgados com o embate iminente, iniciaram suas apostas. Quem sairia vitorioso: o escolhido da realeza ou a protegida do terceiro colocado no ranking da Longinus? A incerteza do resultado apenas tornava tudo ainda mais interessante.
Nos assentos mais privilegiados, o grupo de amigos de ambos os combatentes dividiu-se perante às expectativas. Os herdeiros e Togami cantavam vitória para Ayame, enquanto a dupla de Yggdrasil depositou suas esperanças em Heishi. O debate acalorado continuaria até o começo da batalha se Shuyu não percebesse a aproximação de uma certa mulher.
— Ora, ora, se não é o querido príncipe de Yggdrasil. Oi, Shu! — Suika abraçou o rapaz com força, fazendo-o perder o fôlego. — Oh, alguns amigos? Bom dia pra vocês, sou a… mãe, podemos dizer, do Shuyu, Suika Jishima.
— É um prazer conhecê-la, senhora Jishima — saudou Hanako, com sua habitual formalidade.
A mulher ajoelhou-se, seu rosto preenchido por uma expressão chorosa. A princesa de Alfheim entregou em desespero — teria sido rude em alguma ação? Sua mãe ficaria decepcionada se tivesse que lidar com outro escândalo… As possibilidades deixaram-na ansiosa pela próxima fala de Suika.
— É senhorita Jishima! Eu não tenho marido! — Socos leves, pelo menos para a percepção da militar, criaram rachaduras na área. — Eu tô tão velha assim?
— E-Eh… desculpa? — murmurou Hanako, mais para si do que para ela.
“Ela é forte mesmo sem querer”, pensou Tatsuyu, impressionado. Alguns riam por dentro enquanto outros sentiam pena da mulher com alma de jovem.
Demoraram alguns minutos para a comandante acalmar-se por completo. Reclamações e lamúrios ainda eram proferidos por ela em voz baixa, mas seu bom humor estava de volta. Suika pigarreou antes de assumir uma pose formal novamente, um tanto envergonhada pela cena que causou.
— Explicando por cima, eu sou mãe de criação do Shuyu. Não casei com o Shihan — esclareceu a mulher, com uma expressão risonha. — Mas fui eu que ensinei esse meninão a lutar, troquei as fraldas, dei comida, limpei a bun…
— Mãe!
— Tá, parei. — Suika deu dois tapinhas de leve no ombro do emburrado Shuyu. — Ansioso pra ver a Ayame lutando a sério com outra pessoa? Acho que ela vai se soltar de vez.
— Pra ser sincero, tenho medo do que vai acontecer — confessou o príncipe, um tanto receoso. — As vezes que ela se descontrolou de raiva não foram bonitas de ver.
— Tenho certeza que o Heishi consegue aguentar, ele nunca perdeu uma única luta! Né, Haru?
A amiga de infância de Tatsuyu refletiu um pouco antes de respondê-lo. De fato, o Guardião de Búri possuía uma força bruta rara de ser encontrada, o que poderia ser um trunfo de grande relevância contra qualquer oponente. Entre conhecidos da mesma idade, Heishi era um verdadeiro rei.
Entretanto, pelo pouco que escutou de seu pai sobre a “filha” de Keishi Houseki, Ayame não só tinha um talento natural para o uso da mana, como também era incansável quando se tratava de treinar. Fuyu Seishin, assessor pessoal do Guardião, dizia nunca ver a garota fazer outra coisa que não afiar suas garras em todos esses anos.
A loira deu um sorriso de canto — também havia ficado ofendida com o menosprezo de seu amigo. Se ela não conseguiria colocar juízo na cabeça dele, que alguém pudesse o fazer desta vez.
— Acho que a Ayame não vai ter piedade na hora de arrancar um ou dois dedos da mão dele — proferiu por fim, para a surpresa de seu colega de infância.
A espera havia acabado, enfim. De lados opostos da arena circular, os lutadores atravessaram os aros para se tornarem visíveis aos olhos do público. Assim como Ayame, Heishi havia pego emprestado um uniforme da Academia de Dracone especificamente para aquele embate.
O moreno olhava de um lado para o outro, embasbacado pela quantidade de gente que veio presenciar sua estreia. Encontrar seus amigos na arquibancada mais próxima o encorajou a dar passos mais largos ao centro do estádio.
Em um gesto de coragem, puxou sua espada da bainha em suas costas, fazendo-a reluzir à luz do sol. Pouco ornamentada, diferente do que Ayame esperava, a empunhadura negra com o guarda-mão e base dourados era ofuscada pelo brilho do metal azul. Seu tamanho era bem menor do que a garota assumiu que seria, considerando o quão extravagante Heishi se mostrou até então.
“De todas as armas… uma espada de mão única? Por que usar uma arma dessa sem escudo se ele não parece valorizar velocidade?”, analisou, encucada. Não conhecer seu oponente poderia ser fatal — se tratando de armamento, então, a ignorância era uma sentença de morte.
— Não vai me responder, milady? — Seus devaneios foram interrompidos pela pergunta impaciente do rapaz à sua frente. — Estava admirando minha beleza, é?
“Merda, me distrai”. Pelo tom dele, estava há algum tempo estática, o que fez sua face queimar de vergonha. Tinha que concordar com ele, a espada repousada sobre o ombro direito era bem descolada, mas jamais admitiria isso.
— Com toda a certeza, não — retrucou o mais firmemente que conseguiu. — Vamos logo com isso.
Como no duelo anterior, as regras explicadas pelo juiz foram as mesmas: até a incapacitação do oponente, sem chance de revanche. Ayame encarou o fio de sua rapieira branca, com suas emoções crescentes prontas para explodir de seu peito.
O tilintar da moeda em contato ao solo impulsionou-os um contra o outro. A qualidade de ambos tornou-se mais clara logo nos primeiros instantes de combate, com golpes precisos sendo realizados e defendidos sem hesitação.
Ayame era rápida, conseguindo aparar ou desviar de quase todas as investidas de Heishi com tranquilidade. Ele, por outro lado, não havia perdido qualquer disputa de força desde que começaram. Estavam tão focados em encontrar brechas que as técnicas elementais não eram vistas — era um duelo pura e simplesmente físico.
— Sentindo pressão, milady? — provocou Reiketsu, ao se aproximarem-se mais uma vez.
Ela manteve-se em silêncio, o que, para ele, foi uma vitória. “Talvez seja o mais forte que já enfrentei da minha idade, com exceção do príncipe Ryoujin”, assumiu Ayame. Cada corte dele era imbuído de tanta força que se perguntava o que aconteceria se recebesse diretamente o impacto — não que pudesse pagar para ver, claro.
— Mas eu tenho algo que ele não tem — murmurou, concentrada.
Sem demora, avançaram de novo. Heishi vinha com a espada pronto para aplicar um golpe descendente que lhe concederia a vitória absoluta sobre a lâmina fina de sua rival. Naquele cenário, sua aura azul triunfaria.
Ele sorriu. E ela, também.
Um passo sutil para a esquerda, feito em alta velocidade, esquivou Ayame do golpe. Girando a rapieira em sua mão direita, o fio raspou pela lateral da espada azulada de Heishi, um rastro de luz branca sendo deixado para trás na trajetória que a lâmina fez. Quando estavam a uma distância considerável um do outro, a Guardiã de Eolo brandiu sua lâmina.
Pingos de sangue pintaram o chão próximo a ela e o ombro de Heishi. Tatsuyu e Haruhi, desde que o conheceram anos atrás, nunca viram ele ser ferido em um combate mano a mano — em um lugar como a face, então, era mais impressionante ainda. A bela dama que seu amigo havia subestimado penetrou as defesas dele em minutos.
A satisfação no rosto de Tengoku preenchia de um lado a outro de sua face, em um sorriso irônico. Pela primeira vez, a confiança de Heishi em sua própria força hesitou, o que foi sentido pela tremulação momentânea de sua aura.
— A arte da guerra é muito mais do que balançar sua lâmina com toda a força. — Debochadamente, Ayame lambeu o sangue da área suja de sua rapieira. — Sem experiência, eu vou descobrir cada ponto fraco seu antes de você saber os meus. E eu vou acertar cada um deles.
— Calada, sua garota insuportável! — urrou, girando o corpo para mais um ataque.
Como da última vez, a cena se repetiu: ela desviou com grande agilidade e o cortou, desta vez no braço esquerdo. Como Shuyu esperava, o lado predador de Ayame havia, definitivamente, acordado. Que ele escolhesse uma divindade e começasse a rezar.
— Você não sabe redirecionar sua espada quando inicia um movimento, né? — Os olhos castanhos penetraram a alma de Heishi. — Desesperado?
Ayame agora movia-se ainda mais depressa. A defesa passou para o lado dele, que nem com sua incrível percepção era capaz de acompanhar a arma que cortava suas roupas e pele como papel. O ardor das feridas, nunca antes sentido por ele, era incômodo.
Incômodo até demais. Seu orgulho estava em jogo e sua paciência, curta. Não podia negar, contudo, a excitação em finalmente poder se liberar das correntes que impôs a si mesmo até aquele ponto.
— Acabamos o aquecimento, então — anunciou, devolvendo um golpe pesado para afastá-la.
Sem aviso prévio, fincou sua espada no solo. A aura, antes controlada para ocupar uma pequena área ao redor de si, se expandiu imensamente pelo estádio. Aquela sim era sua liberação total de mana, reprimida até então por puro capricho.
Ayame preparou-se, lâmina em riste, para o próximo movimento de seu adversário.