Volume 1
Capítulo 11.2: Calor da juventude
— Heishi, Haruhi, quais são as deidades de vocês? — Ayame jogou a questão ao terminarem de comer. — Fiquei curiosa agora que lembrei que vão estudar aqui na Academia por algum tempo.
— Vou mostrar para as senhoritas — riu Heishi, com grande entusiasmo.
O moreno, de pé e olhos fechados, juntou as palmas abertas em frente ao corpo. Sua aura azul-gelo preencheu lentamente o ar, resfriando-o — o chão ao seu redor também sentiu o poder, tornando-se gelo. Quando abriu os olhos, a projeção de um grande homem barbudo surgiu atrás de si, imponente e titânica.
— Esse é o Búri!
— Heishi… — chamou a divindade, cuja voz era super rouca. — Me acordou apenas para se mostrar para mulheres de novo?
— Qual é, Bubu… — A têmpora do gigante primordial tornou-se aparente ao escutar o apelido "carinhoso". — colabora aí!
— Eu não sei onde estava com a cabeça quando te escolhi há quase dez anos atrás — suspirou Búri, antes de virar-se aos demais. — Enfim, é um prazer conhecê-los. Mesmo que este garoto seja difícil lidar, cuidem bem dele.
O holograma de mana se desfez em partículas. Reiko choramingava de alegria — ver uma nova deidade sempre causava absurda euforia em seu interior. Haruhi sentiu-se sem graça depois dessa apresentação tão elaborada, visto que a atenção dos demais havia sido roubada com êxito pela natureza exibicionista de seu amigo.
— Bem, e eu sou a Guardiã da Medusa, como dá para perceber pelo meu cabelo. Não tenho nenhuma mana elemental, mas…
A loira pausou sua fala, envolvendo-se em uma aura espectral. Quando a fina e opaca camada de mana desapareceu, sua pele clara fora substituída por uma semelhante ao tom chocolate de Togami e seus cabelos tornaram-se vermelhos como brasa. As serpentes, antes esverdeadas, agora tinham escamas em cor cobalto, reluzentes na mesma tonalidade que seus olhos. Ver seus colegas boquiabertos recuperou um pouco de sua autoconfiança.
— Eu posso mudar minha aparência — concluiu a menina, por fim. — As escamas ficam da cor dos meus olhos.
— Isso é simplesmente incrível! — Ayame, que havia saído de seu assento por pura curiosidade, começou a circundar Haruhi. — Você pode mudar o tamanho… sabe, disso?
O movimento por cima de seu busto, quase inexistente, fez a Guardiã da Medusa ter que conter uma risada. Um tímido movimento de negação com a cabeça trouxe uma total decepção aos olhos castanhos.
— Minhas únicas limitações são altura, peso e medidas. Desculpa, não consigo — explicou Haruhi, voltando à sua forma natural. — Costumo manter essa aparência porque é o que chega mais perto da minha mãe. Só mantiver a minha cor natural dos olhos.
— Deve ser extraordinário poder ter uma aparência diferente quando quiser. Invejo essa habilidade, senhorita Seishin — comentou Hanako, enrolando uma mecha ruiva em seus dedos.
— Eu queria só uma cor menos chamativa. Roxo atrai olhares demais… — Shuyu também analisava seus cachos. — Quer dizer, não que eu ser um príncipe já não chame atenção o suficiente.
Tatsuyu, calado até então pela quantidade exorbitante de comida que colocou na boca, virou-se para o herdeiro de Yggdrasil. Na mesma hora, tanto Haruhi quanto Heishi passaram a prestar muita atenção — conhecendo-o, o risco de um comentário desnecessário era enorme.
— Pelo menos, você é sempre reconhecido. Tem vezes que eu olho pra Haru e não consigo perceber que ela até ver o nariz — brincou o garoto, tomando mais um gole de seu suco.
Haruhi comemorou cedo demais a falta de incidentes.
— É mais fácil reconhecer ela pelo tamanho dos peitos, já que até a personalidade ela muda. — O comentário partiu justamente de Heishi, de quem ela esperava o mínimo de noção. — Sem ofensas, Haru.
Uma das serpentes enrolou-se ao redor do pescoço do Guardião de Búri, tapando também sua boca. Ele pensou em protestar, mas o olhar mortal que recebeu da amiga o calou na hora e o fez engolir em seco. Fazia algum tempo que não via sua querida amiga de infância tão furiosa.
— Responda: morrer envenenado ou desmembrado? — perguntou Haruhi, invocando sua lança de ponta dourada. A base do cabo, cujo formato lembrava uma serpente, tinha uma esmeralda em formato de olho. — E antes que fique de gracinha, ficar vivo não é uma resposta.
— Mas fugir é. Olhe pras minhas mãos. — Instintivamente, a garota o fez. — Agora olha pras suas pernas.
Quando ela percebeu, era tarde demais — o gelo já havia prendido-a por completo no chão. Com uma calma surreal, Heishi afastou-se para evitar que sua vida estivesse em perigo. Pelo menos, por enquanto. As risadas altas e escrachadas do grupo de jovens chamou a atenção daqueles que ocupavam uma das poucas mesas do recinto. Keishi, um dos homens sentados, cutucou aquele que estava à sua direita, de cabelos brancos, que segurava um uísque.
— Aquele garoto é bem parecido contigo, Kiyo — apontou o moreno de olhos verdes-musgo puxados. — Totalmente sincero. Só é mais extrovertido.
Por estar embriagado, a fala de Keishi estava lenta e um tanto irritante para o tal Kiyo — o bebum ria entre suas palavras sem motivo algum. As íris rubi do rapaz, vestido em roupas de inverno com cores frias, avaliaram a veracidade da comparação.
De fato, havia algumas semelhanças, como a altura e os cabelos levemente bagunçados — estes de cor diametralmente oposta ao seu, branco como a neve fresca —, mas não era suficiente para ficar satisfeito. Havia algo na aura daquele rapaz que o tornava tão diferente, algo que Kiyo tinha perdido dentro de si.
Um sentimento incômodo o atingiu quando não soube definir o que havia de errado.
— Talvez esteja certo, Keishi — disse por fim, com um gole na sua bebida. — Onde estão Naochi e Koushi?
— Devem chegar logo. Francamente, você não está sentindo a aura deles?
— Estou muito entretido vendo os jovens da mesa ao lado — defendeu-se Kiyo — e eles me distraíram com o barulho.
— O grande rei de Bliz, Kiyo Yukihane, tentando jogar uma mentira descarada dessa? — Keishi quase caiu da cadeira ao se apoiar no encosto. — Poxa, Shiro, não quer usar um pouco dessa sua velocidade pra arrastar os moleques não? Avisa que a bebida tá boa!
Shiro Sorako não gostava de beber, diferentemente de seus amigos, então contentou-se com seu usual cigarro. Tirou-o da boca para soltar sua fumaça negra em um suspiro de decepção, direcionando seu olhar para o Guardião de olhos verdes.
— Você deveria largar esse uísque, Houseki.
— Eu gosto do Kei assim, ele fica tão divertido! — O pescoço de Keishi foi envolto por um abraço de um rapaz de cabelos loiros bem alinhados. — Desperdício de homem desse não cortar pros dois lados.
O flerte implícito de Naochi não passou batido pelo rapaz de pele escura que se sentou com os demais. Um golpe bem dado no topo da cabeça do Segunda Cadeira desfez o contato entre ele e o bêbado em um segundo, bem como o fez se sentar contra sua vontade, de cara feia.
— Neaochin, eu já disse pra não abusar da boa vontade do senhor Houseki! — Koushi puxou o companheiro para longe do homem mais velho, com seus olhos carmim expressando reprovação. — Perdão pelo comportamento dele, senhores!
— Relaxa, relaxa, pequeno Kou! Pede uma gelada e vamos brindar! — garantiu Keishi, com grande simpatia. — Eu pago a rodada pra todo mundo! Deixa eu só ver uma coisa…
“Ele vai dar trabalho pra caramba”, pensaram Kiyo e Shiro, já exaustos de imaginar a ressaca que assolaria o homem no dia seguinte. Este, contudo, não parecia se importar com nada além da diversão em sua mente abobalhada pela embriaguez.
O Guardião começou sua contagem para saber quantos copos teria que pedir. Começou por si mesmo, apontando o dedo lentamente para cada um dos presentes: um, dois, três, quatro, cinco, seis…
— Ela já tava aqui também, Shiro? Ah, você não vai beber, né? Então são só cinco — concluiu o homem enquanto coçava a cabeça. — Mas eu realmente não lembrava de você já estar aqui.
A moça a quem ele se referia, sentada sorrateiramente ao lado de Koushi, sorriu sem mostrar os dentes — um sorriso exagerado demais para ser verdadeiro. Seu cabelo, castanho-claro e bem sedoso, escorria pelas laterais de seu rosto, dando destaque aos seus lábios preenchidos por um batom rosa. Se não fosse o gelo que trazia consigo no ar, qualquer rapaz poderia ser capturado pela sua beleza.
— Acabei de chegar, senhor Houseki — corrigiu a mulher, com uma voz extremamente doce.
Quer dizer, doce para quem não a conhecia. Koushi, estando há centímetros de distância e sabendo muito bem o tipo de pessoa que ela era, teve todos os pelos arrepiados em alerta. Conseguia sentir a fúria nas entrelinhas, emitida pelos brilhantes olhos azul-cobalto que penetravam seu corpo com facas invisíveis de julgamento.
— Então… foi aqui que você veio depois de sua namorada sozinha no jardim, Koushi Fuyusen? — A pergunta dela soou mais como uma ameaça. — Bom saber suas prioridades.
— C-Calma, Shino! O Naochi que me puxou pra cá sem aviso quando fui ao banheiro, eu nem sabia que eles estavam aqui!
— Realmente, eu arrastei ele mesmo — concordou Naochi, com um gole na sua cerveja. O alívio breve do Guardião de Apófis durou pouco — mas quem decidiu não voltar foi você, Kou. Sorte que ela percebeu, ou só te acharia bêbado aqui.
A menina, Shino Einatsu, soltou uma risada fofa, encarando seu parceiro. Apesar do semblante calmo, sua aura rosa-magenta borbulhante e os anéis de água em seus pulsos indicavam que a situação estava longe de ser favorável para o causador de sua fúria imparável. Quando a katana de fio negro surgiu em suas mãos, ele já estava aceitando sua própria morte
— Agradeço a informação, Naochin! — brincou ela. — Algo a acrescentar, Koushi, querido?
O silêncio respondeu pelo Primeira Cadeira, que aguardou uma merecida agressão. Entretanto, tudo que sentiu foi o nariz dela roçar em seu ombro esquerdo, aconchegando-se no calor do namorado — o que o fez ser fuzilado mentalmente por ambos, Keishi e Naochi. Não conseguiu reagir de maneira apropriada ao chamego de sua mulher, ainda estupefato por ter saído ileso.
— Você tem sorte que eu valorizo o tempo que temos para passar juntos e prefiro ignorar o que você faz — desabafou Shino, suas safiras fixas nos rubis dele. Inspirou suas roupas com muito gosto. — Seu perfume é muito bom, nunca pare de usar.
Keishi não conseguiu conter sua frustração. Com um movimento rápido, roubou a garrafa de uísque caríssimo próxima à Kiyo e tomou goles generosos do líquido. Quando terminou, a cara dele estava ainda mais vermelha; seu rosto bateu direto na madeira da mesa, gruinhindo coisas desconexas. Shiro estendeu o braço para levantá-lo, mas Keishi foi mais rápido em erguer a cabeça novamente.
— Eu quero uma namorada também! Não aguento mais ver todos os casaizinhos na Academia de Dracone — expôs o homem, completamente alterado. — Até quando eu visito o quartel da Longinus, a Taeka e a Reiyo ficam de amorzinho na sala do trono!
— Keishi, acho que você deveria ficar calado. Pelo bem da líder. — Kiyo bebeu o que sobrou de sua bebida.
— Cala a sua boca, Kiyo Yukihane! Você é um gostosão e tem alguém como a Mayumi o tempo todo no seu cangote! — A menção à “admiradora” do rei de Bliz fez a aura deste tremer de raiva. — Não sei como você é tão molenga de não dar uns amassos nela!
— Eu te entendo, Kei! Achar alguém que me queira é tão difícil… — Naochi choramingou, abraçado lateralmente com o homem.
Escutaram um copo bater com força na superfície da mesa, quase virando-a com a potência do golpe. A culpada por trás disso era justamente a única mulher da mesa, que havia acabado de virar uma garrafa inteira de vinho draconiano. Sinceridade não seria mais contida de forma alguma, sabiam bem seu namorado e seu melhor amigo.
— Naochin, você é um gay chato. No sentido mais claro da palavra — manifestou-se Shino. — Fica mais difícil ainda lidar contigo com sua tara em masoquismo. Ninguém é melhor que o Kou, e quem falar o contrário eu mato!
— O contrário! Olha, falei, vai me matar agora, Shinon? — provocou Keishi, despreocupado.
Por puro reflexo, seu escudo bloqueou o golpe mágico da katana da moça, desviando o impacto para o solo. Kiyo encarou o amigo com um olhar curioso, este agora estando de pé no meio do salão. Estava crente que ele receberia o impacto, mas isso não o preocuparia nem se acertasse. “Ele é o General do Esquadrão das Montanhas por um motivo…”, cravou em sua mente, esperando o desenrolar da situação com, digamos, curiosidade.
A aura cor de jade do Guardião inundou o ambiente — embora instável pela sua condição física, ainda era assustadoramente grande. O suficiente para mover os cabelos de todos sentados na mesa. Apesar de ter absorvido um golpe fisicamente potente, não havia um único arranhão ou sujeira em suas vestes.
— Vai mesmo querer lutar comigo nesse estado, garotinha? Eu ainda nem me recuperei de curar o estrago que o Koushi fez naquele plebeu — resmungou o homem, seguido de um bocejo. — Genbu vai ficar uma fera comigo se eu não descansar, então vamos deixar pra amanhã.
Se aquele era o estado “acabado” do Guardião, ela não queria nem saber como seria por inteiro. Embainhou sua lâmina, um pouco mais sóbria pelo receio.
— Você tem sorte que quero aproveitar meu namorado agora, senhor Houseki! — mentiu descaradamente, desviando o olhar e agarrando com mais força o pescoço de Koushi.
Antes que pudessem dizer mais alguma coisa, um grito ecoou pelo refeitório. As coisas tinham ficado mais interessantes na outra mesa, pelo visto.