Volume 1
Capítulo 11.1: Calor da juventude
3 de Novembro de 4817 - Continente de Origoras, Reino de Yggdrasil, Academia Real de Dracone
Diferente de uma terça-feira comum, a Academia Real de Dracone estava extremamente lotada. Rumores de que Ayame Tengoku, a melhor aluna da instituição, e Reiko Chiwa, uma princesa estrangeira, batalhariam naquele momento espalharam-se como fogo em palha pelos corredores — este duelo de alto nível seria, com certeza, a melhor distração para um dia monótono.
Dito e feito: ao meio-dia, ambas as combatentes apresentaram-se com suas armas no estádio da Academia. Ao longo dos minutos que sucederam o início do embate entre a rapieira branca e a lança dourada, mais e mais espectadores juntavam-se ao espetáculo. Mesmo sob o peso do escudo prateado que fazia a função defensiva, Reiko mantinha grande agilidade; para alguns dos colegas de Ayame, era impressionante ver a destreza exibida pela Guardiã de Atena. Os veteranos, contudo, sabiam que a luta de verdade nem havia começado.
Em meio à multidão, Tatsuyu, Heishi e Haruhi ainda estavam um pouco perdidos com o novo ambiente. Diferente do colégio menor que até então frequentavam, agora eram oficialmente alunos da Academia de Dracone, embora ainda não tivessem seus próprios uniformes. A atenção do trio oscilava entre as mãos rápidas de Ayame e as tapeçarias caríssimas — em um debate bem leigo, chegaram à conclusão que eram de Éden ou Camelot, a julgar pela riqueza de detalhes coloridos como os afrescos que viram nos livros de geografia.
— C-Com licença, poderia me sentar aqui? — perguntou uma voz hesitante. — Tudo está lotado.
Não só os olhares do grupo foram atraídos para a pessoa que os abordou. Vestindo uma saia preta presa por um cinto prateado e uma camisa social rosada, a garota de cabelos laranja-avermelhados desviou a atenção de todos que estavam próximos o suficiente para ouvi-la.
Uma onda de choque balançou a barra de suas vestes, permitindo que suas coxas torneadas fossem temporariamente expostas. Heishi deu um sorrisinho de canto, e Haruhi sabia exatamente o que o “canalha” estava pensando.
— Sou a primeira princesa de Alfheim, Hanako Koufuku. É um prazer.
— O prazer é nosso, Vossa Alteza — gracejou Heishi, com uma reverência — e devo dizer, que belda…
O tapa seco de sua amiga loira foi o suficiente para calá-lo, pelo menos por ora. A princesa não pareceu captar o desrespeito, para a sorte do garoto, visto que se aproximou do grupo — especialmente de Tatsuyu. O plebeu pôde sentir a fragância chiquérrima dela permear por suas narinas.
— Você deve ser o senhor Fukushu, estou certa? — inquiriu, ainda a certa distância do garoto.
— S-Sou.
— Soube que o senhor que interrompeu uma partida após eu ser vítima de uma injustiça — continuou Hanako, puxando a barra de sua saia. — Como a prejudicada pelo incidente, sou grata por você ter agido em prol de minha honra.
— Gostaria de aceitar seu elogio, Alteza. — O rubor tomou conta das bochechas de Tatsuyu, bem como uma expressão acanhada. — Porém, eu nada fiz para ser merecedor dele. Pelo contrário, acho que passei vergonha.
Ver Tatsuyu falando com tanto esmero forçava Haruhi a segurar sua gargalhada. Heishi nem mesmo percebeu a alteração temporária de seu amigo, tamanho era seu foco em analisar a pequena ruiva de cima a baixo: baixa estatura, corpo curvilíneo, pele rosada e belos olhos âmbar. Era provavelmente a pessoa mais bonita em toda a arquibancada e, para piorar a ansiedade de Tatsuyu, estava o encarando curiosamente, a meros três passos de distância.
— Independente do resultado. Coragem é uma qualidade que muito admiro. — Ela sorriu brilhantemente para ele. — E vocês devem ser a senhorita Seishin e o senhor Reiketsu, correto?
— Certamente, Alteza!
Em um instante, Heishi colocou um joelho no chão e pegou as mãos de Hanako, assemelhando-se um príncipe encantado. A ruiva não poupou a careta para mostrar seu desconforto com o toque repentino e não consensual.
— Uma princesa tão bela como a senhorita sabendo o nome de um mero plebeu de outra nação como eu é uma imensa hon…
Um chute bem executado na lateral do torso do moreno o fez rolar algumas arquibancadas para baixo. Haruhi ficou surpresa ao perceber que quem havia se movido com tamanha velocidade fora Tatsuyu, que enrusbeceu ao notar o que tinha feito. As mãos dele mexiam-se com nervosismo, sem saber onde se posicionarem.
— Peço desculpas pelos meus modos, Vossa Alteza — suspirou ele, decepcionado — e também pelo meu… amigo. Ele não tem muita noção sobre espaço pessoal.
— Ei! Eu ainda tô aqui, Tatsu! E esse chute doeu pra cacete!
— Então, Heishi, não toque na princesa sem permissão! — A aura esverdeada de Haruhi vazou levemente em resposta. — Sua mãe nunca te ensinou a respeitar uma mulher?
Hanako riu do trio, que só então percebeu o quão bobos estavam sendo. Ela deixou alguns fios caírem sobre seu rosto — esqueceu-se de colocar a tiara antes de sair do quarto, então estava com uma franja não habitual.
— Fico grata mais uma vez. — A princesa curvou-se com graciosidade antes de sentar ao lado do grupo.
“Ela fica ainda menor assim”, pensou Tatsuyu. Hefesto soltou uma risadinha maliciosa, que ele não entendeu naquele momento.
O público urrou ao sentirem as auras das duas duelistas se chocarem uma última vez. Sem uma vitória expressiva de qualquer um dos lados, ambas apertaram as mãos em mútuo respeito. Enquanto secavam o suor de suas testas, a Guardiã de Atena viu uma brecha para, como diria ela, "confraternizar".
— Ei, quer almoçar comigo? — convidou Reiko, na lata. — Tinha dito pra uma amiga vir assistir, mas não tô achando ela…
— Claro! Mas de quem a senhorita está falando, Alteza?
— Nada demais...
Os olhos da princesa de Sophis buscaram Hanako pelos assentos, encontrando-a conversando timidamente com Haruhi. A empolgação tomou conta de cada centímetro do coração da garota — sem aviso, ela pegou a mão direita de Ayame e ativou seus poderes. Num impulso só, para a surpresa da moça de cabelos azuis com quem duelou, começaram a flutuar.
— Hana! — chamou Reiko ao pousar. — Não acredito, você conversando com pessoas por livre e espontânea vontade?
— E-Eu não possuo tamanha antipatia, Reiko — contrariou a ruiva, estufando as bochechas. — Encontrei com o senhor Fukushu e seus amigos ao acaso, e pretendia agradecê-lo cedo ou tarde.
— Sei… Vou fingir que foi só isso.
O comentário despretensioso e sem sentido de Reiko, aos olhos dos demais, pareceu tocar num ponto sensível de Hanako. A princesa faeri ficou com o rosto da mesma cor que seus cabelos enquanto tentava formular uma frase, sem sucesso.
Na noite anterior, a filha mais velha dos Chiwa foi visitar sua melhor amiga no quarto dos monarcas de Alfheim. A simpatia e lábia fora de série de Reiko permitiu que conseguisse um tempo a sós com a pessoa que desejava.
Deitada sob os lençóis, Hanako sentia-se muito mal pela situação que estava envolvida. Por estar inconsciente desde o fim de sua luta, só soube do incidente ao fim da tarde, quando foi liberada da enfermaria real. A sensação de ter estragado o evento amargava sua boca, bem como o peso invisível de uma responsabilidade que havia sido depositada sobre seus ombros sem mais nem menos.
Lutar contra a autodepreciação da Koufuku era sempre como empurrar uma pedra montanha acima, apenas para ela rolar para baixo ao chegar ao topo.
— Hana, eu já te falei que você foi a vítima! — reforçou Reiko contra a teimosia da amiga. — Se não tivessem que intervir pro príncipe Ketsukai vencer, nada disso teria acontecido!
— Foi tudo porque eu não joguei o jogo, Rei. — A angústia nas palavras de Hanako era palpável. — Eu poderia ter só fingido uma falha e evitado tudo.
— E como você faria isso sem nem saber que ele deveria vencer, Hanako Koufuku? Você é vidente agora? — debochou Reiko, sem paciência.
A Guardiã da Titania deitou-se para o outro lado — o jeito dela de dizer que não corroboraria com aquele diálogo. Reiko decidiu então partir para outra estratégia, a única que tinha certeza que funcionaria para engajá-la efetivamente.
— Sua mãe me disse que você ficou curiosa sobre como é a pessoa que se intrometeu na sua luta. — A aura de Hanako oscilou. Pelo jeito, não era mentira. — Um deles faz o seu tipo.
— O-O que você quer dizer com isso? — A maneira que sua atenção inteira voltou-se para a amiga indicava que a capturou como um peixe no anzol.
— Cabelo preto, alto e parrudo. Tá interessada em um príncipe encantado, é? — provocou de novo a ateniense.
As orelhas de Hanako pintaram-se de vermelho por conta própria. “Bingo”, pensou a Guardiã de Atena.
— C-Claro que não, Rei! Sua chatona, sem graça, bobalhona!
As ofensas infantis da ruiva não foram capazes de esconder a maneira que seus novos sentimentos bagunçaram sua cabeça.
Haruhi, como uma boa observadora do sexo feminino, captou a mensagem entre elas. Seus olhos alternaram entre Tatsuyu e Hanako, cuja proximidade subitamente lhe incomodou — antes que pudesse se expressar, Reiko cortou o assunto — de propósito ou não, ela não tinha como saber.
— Enfim, convidei a Hana e a Ayame para almoçar. Seria deselegante não oferecer também aos amigos da minha melhor amiga. — A princesa deu uma piscadela sacana para o grupo. — Fiquem tranquilos, fica por conta minha e da princesinha aqui.
— Ei! Eu não falei na…
— Vão indo na frente que preciso chamar alguém — anunciou Ayame, com pressa. — Chego lá em cinco minutos!
Como um vendaval, a garota saiu, literalmente, voando por cima do mar de estudantes. Hanako não encontrou abertura para contrariar a afirmação anterior, apenas aceitando a derrota uma vez que começaram a caminhar em direção ao restaurante da instituição.
Não demorou muito para as formalidades para com Reiko fossem suspensas, tornando o ambiente mais agradável para os outros plebeus. Se não fosse pela ausência de uniformes, poderiam ser confundidos com alunos da Academia de Dracone. A memória fotográfica de Reiko os guiasse precisamente pelos muitos corredores, evitando que se perdessem no emaranhado de caminhos e possibilidades de rota.
No restaurante, as mesas circulares encontravam-se vazias — o fim antecipado das atividades escolares dispersou a maior parte dos discentes e o duelo não os prendeu por muito além de seu final. Os cinco acomodaram-se em uma das mesas de oito assentos enquanto discutiam o que iriam pedir para comer.
Mal tinham feito seus pedidos quando escutaram o barulho das portas do local mexerem.
— Cheguei na melhor hora possível.
A voz veio da cadeira mais próxima à Reiko. Tal qual um fantasma, um garoto baixinho tinha aparecido nela, os olhos bicolores encarando risonhamente os demais presentes. Tatsuyu o reconheceu, apesar da aparência mudada.
— Vamos ver esse cardápio. Isso aqui parece bo…
— O que esse alpinista de poltrona tá fazendo aqui? — perguntou Haruhi, sem um único escrúpulo.
A reação foi tão espontânea por parte dela que Togami nem mesmo conseguiu ficar com raiva. Fechou o cardápio com uma mão, relaxando sobre o estofado enquanto encarava o teto, como se estivesse discutindo internamente como se explicar.
— Eu ia voltar só dia 5 pra ir com a Reiko para Sophis, mas tive alguns problemas e fugi de casa — contou com uma indiferença quase assustadora. — Acho que só volto depois do primeiro semestre do ano que vem. Ah, eles tem carne na brasa!
O grupo percebeu que ele está bem mudado de aparência — chamava muita atenção o fato dele ter heterocromia, com o olho esquerdo sendo azul e o direito sendo prateado. “O cabelo curto caiu muito bem nele…”, comentou internamente Reiko, antes de voltar à razão. O pavor preencheu suas veias ao assimilar direito a frase que ele havia pronunciado.
— Pera, pera, pera, você realmente fugiu de casa? Onde estão suas coisas? — Ela está mais preocupada que o próprio garoto. — Não me diga que você só tem essas roupas…
— Calma, deixa eu explicar. Eu saí ontem de noite e tive que parar um pouco de madrugada porque estava exausto. — Em posição defensiva, tentou diminuir a ansiedade de sua colega. — Eu cheguei depois que sua família saiu do quarto. Sua mãe…
— Sua Majestade Chiwa — corrigiu Hanako, já um tanto incomodada pela falta de decoro do plebeu.
— Certo. Sua Majestade Chiwa me acolheu — concluiu o jovem. — Inclusive, vocês provavelmente vão mudar de quarto, porque só aceitaram minha presença se eu estivesse sob supervisão da rainha.
Enquanto os outros da mesa ainda processavam a informação de que ele havia fugido de casa, Reiko já tinha compreendido tudo. Agora mais calma, a princesa já pensava em outras dezenas de assuntos, com sua aura dourada transmitindo a eles toda a empolgação latente dentro de si.
— Tá legal. Que tal um duelo mais tarde?
— Reiko! O senhor… — Hanako olhou para ele. Só então percebeu que ele não havia se apresentado ainda. — Com licença, mas qual o seu sobrenome?
— Prefiro manter só o Togami, mesmo.
— Não gosto muito disso, mas deixarei passar desta vez. De toda forma, o senhor Togami está muito cansado, Reiko! — continuou a ruiva, como uma mãe que dá uma bronca à filha. — Espere pelo menos até amanhã, por obséquio.
Tatsuyu percebeu as olheiras miseráveis sob os olhos bicolores. Viajar durante a noite depois das feridas de ontem, mantendo-se atento para não sofrer ataques e sem dormir deveria ter custado muito do físico dele. Pôde compreender ele muito bem, afinal... ele já esteve na mesma situação.
— Concordo com a princesa certinha. — O deboche de Togami fez a aura alaranjada de Hanako efervescer. — Vamos comer, pelo amor, eu tô morrendo de fome!
Para a sorte do baixinho, as costelas à moda de Yggdrasil chegaram minutos depois, fazendo a boca de todos os plebeus salivar com o aroma suave do molho. As princesas riram da empolgação do quarteto, acostumadas a pratos mais refinados. Vê-los comer como se estivessem no paraíso era divertido.
O grupoo estava totalmente em sintonia àquele ponto. Comportavam-se como se já se conhecessem há muito tempo.
— Se divertindo sem a gente? Que maldade da parte de vocês! — ironizou Ayame, que se aproximou da mesa. Atrás de si, havia um acanhado Shuyu, com a mão direita ao pescoço. — Senta aí, Shuyu, ninguém aqui morde!
— Você me arrastou até aqui, Ayame — suspirou ele, ainda tímido. — Boa tarde a todos. Dando uma volta na Academia de Dracone?
— Quase isso, Shuyu — respondeu Reiko, abocanhando mais um pedaço de carne. — Queria desafiar algumas pessoas pra lutar, mas só encontrei você e a Ayame que valem a pena. Tentei falar com o Ryoujin e ele me respondeu que iria treinar sozinho.
Togami, desconfiado, encarou a garota que sentava ao seu lado. Não que tivesse dúvidas dela ser forte, mas tanto assim que ninguém estaria ao nível dela? Seria prepotência ou arrogância?
— Não duvide de uma Guardiã de Atena, jovem. — Metatron interviu na sua linha de raciocínio. — O sangue dos Chiwa só não é melhor do que de uma família pura de Bellato. Todos são gênios,.
Os questionamentos do menino ficariam para depois. Com a chegada de Shuyu e Ayame, a mesa retomou a conversa animada, entre apresentações e simpatias.
Não por muito tempo, é claro.