Volume 1
Capítulo 1: Outro pesadelo
28 de setembro de 4817 - Continente de Origoras, Reino de Yggdrasil, Periferia de Dracone
Tatsuyu escutou uma voz chamando ao longe, acordando-o de seu sono leve. No primeiro momento, não entendeu mais do que alguns sons desconexos — ainda não estava totalmente desperto para compreendê-los.
Na segunda vez foi diferente. Seus olhos, de um vermelho-rubi tão vívido, iluminaram-se com o sol da manhã e o cheiro bom de comida que atravessava o corredor.
— Tatsu, filho, hora do almoço! — gritou a mãe para se fazer ouvir no andar de cima.
— Ok, mama! Já tô indo!
Com passos acelerados, abandonou os brinquedos espalhados pelo chão e desceu as escadas, pulando degraus para descer mais depressa. Ao fim do trajeto, a jovem moça o aguardava, de braços abertos e sorriso largo para receber o filho em seus braços. Os olhos dela eram como os do menino, embora um pouco mais afiados.
Enquanto se aninhava no abraço, escutara também o barulho do rádio do lado de fora, além dos assobios agudos e desafinados — só poderia ser seu pai, de quem puxara os cabelos negros. A mulher que o segurava nunca deixava de elogiar os fios escuros, acariciados com tanto amor.
Um sentimento de conforto emanava do ambiente. Fosse das paredes beges, dos móveis de madeira descascada ou do piso de ladrilhos meio sujo ainda a ser lavado, a aura da casa era tão acolhedora que não existia desejo no mundo que faria o garoto querer sair dali.
Tatsu sentia-se protegido no balançar leve de sua mãe. Embalado pela melodia suave murmurada pela moça, acreditava que poderia sentir essa imensa paz para todo o sempre.
No entanto, sabia o que vinha logo em seguida. Não era a primeira vez que estava ali. Nem a segunda, nem a terceira, nem a décima. Ainda assim, o roteiro mais uma vez teria de se repetir, imutável e certeiro.
Em um piscar de olhos, o canto belo dos pássaros e o aroma floral dos jardins foi substituído por gritos desesperados e fumaça mal-cheirosa. Os cabelos castanhos bem cuidados grudavam-se pelo rosto de sua mãe, que agora corria com ele no colo para o segundo andar.
Quando chegaram ao quarto do menino, Tatsu escutou um homem gritando de dor no andar de baixo, fazendo-o apertar, inconscientemente, com mais força as vestes da mulher. Com toda a delicadeza do mundo — e também, que poderia juntar naquele momento —, ela levantou a cabeça do filho.
— Tatsu, eu quero que você pule pela janela.
— Mas mãe, é muito al-
— Tatsuyu, você vai ficar bem. Mamãe promete te encontrar depois, tá bem?
Passos lentos foram ouvidos nas escadas. O menino ainda estava atordoado, sem entender como sua mãe poderia dar uma ordem tão perigosa a ele.
Ela não pularia junto? O que ela faria? A moça até conhecia algumas magias — apenas as mais simples. Não seria suficiente para lutar.
Tatsu precisava dizer. Precisava contar a ela que seria morta se ficasse. Precisava implorar para que ela não seguisse aquela decisão novamente.
A moça aproximou-se da janela, colocando-o no parapeito. Antes que pudesse dizer mais qualquer coisa, a porta foi derrubada logo atrás deles. Ela não hesitou mesmo sob tamanha pressão, nem quanto quem os caçava avançou em um impulso.
E, então, Tatsu viu a lâmina azul trespassar o seio esquerdo da sua querida mãe em uma estocada rápida. O último movimento que ela conseguiu fazer foi empurrar o menino pela abertura, deixando-o fugir em uma queda desajeitada.
Conforme Tatsu esperava e tinha certeza de que ocorreria, sua morte não ocorreu quando caiu pela abertura. Em meio às margaridas — tão adoradas pela sua família —, gemia de dor enquanto apertava o ferimento em seu ombro direito.
Sensação física alguma diminuía o desespero crescente que sentia no fundo de seu coração. As lágrimas rolavam pelas laterais de seus olhos, enquanto tentava respirar em meio ao cheiro de carne queimada. Da janela de onde fora arremessado, surgiu um rosto.
Aquele rosto, tão reconhecido e tão indistinguível. A memória mais dolorosa, intensa e odiável em todo o seu subconsciente. A única coisa que nunca fora capaz de esquecer, mesmo que suplicasse todos os dias que sumisse.
Longos cabelos azuis como o céu claro. Olhos carmesins como os seus próprios, mas estranhamente brilhantes mesmo no meio da fumaça. Seus traços físicos eram belos, sem sombra de dúvidas.
Havia um detalhe, entretanto, que transformava toda aquela beleza em algo muito, muito perturbador.
Um sorriso de orelha a orelha, cujos dentes eram todos afiados como presas. Sorria com satisfação em ter causado toda aquela destruição ao que Tatsuyu amava, de uma maneira que fazia o sangue dele queimar de ódio e seu corpo tremer em calafrios.
— Mama! Mama! — gritou com toda a força que restava em seus pulmões, fazendo suas cordas vocais doerem pela intensidade que tentava clamar por uma salvação.
Ele precisava se levantar para ajudar seus pais. Ele precisava ser mais forte. Ele precisava matar aquele que feriu sua família. Nada mais passava na mente dele além da raiva e da vingança.
Mas ele não tinha mais qualquer energia para se mover. Estava paralisado, seu sangue escorrendo pelo ferimento e o calor começava a debilitar seus sentidos. Quando os contornos começaram a se tornar cada vez mais turvos, sentiu o terror dominar o seu ser.
Tatsuyu nada teria como fazer. Aos poucos, os cheiros e sons tornaram-se cada vez mais distantes, desaparecendo e sendo engolidos pelo tom mais negro que já havia visto. Debatia-se na escuridão formada ao seu redor, afogando-se nela como se tivesse sido jogado ao oceano profundo.
— Mama!
O grito desesperado ecoou pelo apartamento silencioso e solitário no mesmo momento em que se levantou em um salto. A pele pálida e o cabelo preto e liso estavam cobertos de suor frio; sua pulsação alta latejava suas artérias. O soco desferido em seguida no travesseiro quase quebrou a velha cama.
Buscou com os olhos o relógio de cabeceira. Os ponteiros marcaram cinco e vinte e quatro da manhã, o que o fez se jogar no colchão e suspirar. Desta vez, tinha acordado duas horas e meia antes do horário normal. Apesar do cansaço, não tinha qualquer vontade de voltar ao mundo dos sonhos.
Sem qualquer ideia de como resolver seu atual problema, decidiu seguir sua rotina. Já no banheiro e desnudo, aguardava o aquecedor deixar a água menos desagradável para aquela manhã de início de primavera. A ociosidade, porém, permitiu que o pesadelo invadisse novamente sua cabeça.
Quase uma década se passou desde aquele dia. Ainda assim, a sensação que aquela memória trazia era tão vívida como se a houvesse experimentado no dia anterior.
O sorriso dentado do homem que acabou com sua família seguia atormentando-o, dia após dia, independente de qualquer esforço para fugir de sua maldição.
As vozes do subconsciente eram insistentes e altas, o que causava dor de cabeça em Tatsuyu. Por instinto, abriu o pequeno armário de vidro fosco e tateou pelo remédio de rótulo negro, apenas para ser parado por sua consciência antes de realizar o que queria. Não iria depender daquilo para sempre.
— Não. Só na hora certa, como o psiquiatra recomendou — reforçou para si mesmo. — A Haru ficaria uma fera comigo também.
Como um último afirmativo para si mesmo que estava tudo bem, olhou-se no espelho e passou os dedos por cima da cicatriz no ombro direito.
Era um impulso natural — sempre que suas emoções o machucavam, sua mão buscava o contato com o traço vertical escuro em sua pele. Ainda sentia os resquícios do toque cálido de sua mãe, o confortando mesmo no além.
Seu banho foi rápido. Minutos depois, encontrava-se na cozinha, devidamente vestido para mais um dia de seu período letivo: calça sarja cinza, camisa branca com gravata azul e, por cima desta, o blazer azul-marinho. Em suas mãos, tinha uma caneca de café frio, cuja porcelana branca era quase indistinguível da cor de sua pele.
Com as irís rubi fixas no líquido preto, Tatsuyu afundou em pensamentos. O silêncio absoluto do apartamento, habitado apenas por ele, o incomodava vez ou outra, quando se lembrava dos dias tão distantes. Sua rotina e seus amigos poderiam mascarar esse sentimento, mas algo parecia faltar.
Algo que fizesse seus dias terem mais sentido.
— Espero que as flores apareçam logo… — disse para si mesmo, observando as árvores sem folhas pela janela.
Deixou o recipiente sobre a mesa antes de pegar suas chaves, saindo em seguida pela porta dos fundos. A placa com seu “sobrenome”, Fukushu, balançou quando a madeira bateu com força na moldura depois que ele passou. Não era incomum estar naquela situação, então ele sabia exatamente para onde seguir.
A passos lentos, ele caminhou pelas ruas da cidade, tão menos coloridas que os campos de sua infância. Os pássaros voavam sob o degradê laranja e azul que o nascer do sol formava ao leste, onde as paredes altas e monocromáticas da civilização não bloqueavam o esplendor da natureza.
A melancolia anterior fora substituída por uma contemplação da beleza da vida comum. Admirar a natureza era um passatempo que valorizava desde que se entendia por gente; perceber a simplicidade das coisas o fazia sorrir toda vez.
Chegou ao seu destino após mais alguns metros de caminhada. A pequena praça era muito bem cuidada, embora não fosse um destaque naquele bairro periférico — das flores aos brinquedos do parquinho, tudo estava perfeitamente arrumado e limpo. Com cuidado, sentou-se no balanço mais próximo para observar os últimos instantes do crepúsculo.
O calor dos raios solares logo o lembrou de outro assunto. Estendeu a palma esquerda e, de súbito, chamas alaranjadas brotaram nas pontas de seus dedos. Brincou por alguns instantes entre aumentar e diminuir a potência do fogo, suspirando por fim.
— Talvez precise de um pouco mais de polimento para passar em Dracone.
— A magia até que está boa, mas e esse corpinho aí, meu rapaz? — disse uma voz grave atrás de si. Tatsuyu estava de olhos fechados, mas pôde sentir a projeção de energia apalpar seus ombros e tornozelos de leve. — Como vai usar minha força com esses palitos de dente, ó “Guardião de Hefesto”?
— Demorou para falar hoje, hein? Tá me escondendo algo, Festo?
Os lábios meio arroxeados do moreno logo se tornaram um sorriso quando o não tão belo deus grego alisou a barba albina como quem nada queria.
Hefesto não era, nem de longe, bonito aos olhos. O corpo de pele cinza era largo e musculoso, além de tremendamente desproporcional ao tamanho de sua cabeça diminuta. As roupas de ferreiro explicavam seu porte físico, e as cicatrizes espalhadas pelos braços e torso desnudo fazia Tatsuyu pensar nas batalhas que ele deveria ter travado.
As íris azuis, entretanto, eram comparáveis às melhores safiras que poderiam existir — refletiam o brilho de um vulcão em erupção. Agora, elas encaravam o rapaz fervorosamente.
— Senti uma fonte de magia poderosa por perto. Você não ter sentido prova que está aquém do verdadeiro domínio sobre minhas habilidades — constatou, para o amargor do humano, em um tom sério. — Eu sei o que quer fazer. Tome cuidado, Tatsu. Mesmo sendo um Abençoado, você ainda está muito abaixo do nível de um Guardião da Longinus. Sei do que estou falando.
— Morrer eu não vou. Já passei por coisas bem piores, como já deve ter visto dentro da minha cabeça.
— Ainda assim, você sabe que é arriscado. — O deus tentou insistir, mas foi em vão. Seu receptáculo já estava se alongando para combate. — Certo. Está a dois quilômetros a oeste, no topo de um prédio. Uma segunda aura ainda mais forte está se aproximando depressa.
— Se for algum babaca usando os poderes pro mal, esfregar a cara dele no chão vai ser uma ótima atividade pra começar o dia.
Tatsuyu terminou os alongamentos e ajustou o corpo para o lado certo. A magia pôde ser sentida na sola dos seus pés, que estavam envoltos em chamas — curiosamente, estas não queimavam suas roupas ou o chão ao seu redor. O fogaréu durou mais alguns instantes antes de uma explosão ser ouvida pela vizinhança, arremessando o garoto para cima.
O vento criado pela propulsão veloz acariciou o rosto e os cabelos negros graciosamente. Momentos como aquele o faziam sentir-se vivo e livre do vazio, embora não tivesse espaço para brincadeiras naquela hora. Conforme ia se aproximando do ponto onde havia a alta concentração de magia, algo dentro de si remexia-se em excitação.
Com grande naturalidade, ajustou seu corpo para aterrissar no local com precisão cirúrgica. Amorteceu a queda com uma liberação de chamas suave e silenciosa — algo que Hefesto provavelmente elogiaria mais tarde. “O treinamento está valendo a pena”, pensou, antes de prestar atenção na situação atual.
A sua frente, duas figuras trocavam golpes rasos. Uma delas era bem baixa e veloz, coberta por uma capa branca com capuz; sua espada de mão única de empunhadura negra, cuja base do cabo e do guarda-mão platinados eram ornamentadas por losangos dourados, tinha um brilho mágico. O sangue espalhado pelo fio metálico talvez fosse o detalhe mais destoante da paleta de cores monocromática daquela silhueta.
O homem careca que duelava com o encapuzado vestia uma regata cinzenta e calças negras, tendo em mãos um machado de batalha aparentemente pesado. Seu abdômen tinha alguns ferimentos, mas nada que o impedisse de retribuir os golpes de seu oponente com grande força.
— Uma briga de gangues? — sussurrou Tatsuyu, analisando as aparências de ambos.
O homem alto tinha tatuagens bem destacadas pelos ombros e antebraços, e até mesmo uma na nuca. Com certeza, ele não era boa gente — na região periférica onde se encontravam, não havia uma pessoa com tatuagens que não fizesse parte do crime. De toda forma, o mais intrigante era a forma agressiva que o adversário dele se movia.
Seus movimentos eram velozes até mesmo para Tatsuyu, acostumado a treinar com outros “Abençoados”, os escolhidos pelos deuses e notoriamente acima da média do usuário de magia comum. Sua aura também era grande o suficiente para ser um Guardião de alguma deidade.
— O que quer de mim, maldito?! — gritou o usuário de machado, aparando mais um golpe.
A resposta dele não veio, apenas mais uma enxurrada de ataques. Enquanto observava o duelo de perto, o espectador constatou o erro em seu julgamento inicial.
A aura mais fraca não era do homem alto defendendo-se com um machado, e sim do baixinho encapuzado golpeando vorazmente com sua lâmina. Aos poucos, o que estava na defensiva foi pressionado a uma lateral do prédio, recebendo um golpe decisivo que o colocou de joelhos.
Antes que a espada separasse a cabeça do pescoço do homem, uma lâmina negra aparou o corte. O som das espadas se chocando reverberou pelo topo do prédio, assim como as palavras direcionadas a Tatsuyu.
As palavras que dariam início a tudo.
— Quem é você? E por que me impediu?
— Te impedi porque acho que é o certo a se fazer.
O Guardião de Hefesto sorriu, sua aura avermelhada emanando por seu corpo, pronto para o combate. Colocou sua arma em riste e a encobriu de chamas mágicas.
— Tatsuyu Fukushu, Guardião de Hefesto. Esse é o meu nome.