Filho sem Reino Brasileira

Autor(a): Xiaozim


Volume 1

Capitulo 2: O Ferreiro e a Bigorna

A primeira consciência foi o calor.

 Não o calor do corpo sob mantas, mas um calor de forja no centro do peito. Satoshi reviveu o instante antes de abrir os olhos: a chama dourada batendo contra suas costelas, um segundo coração alimentado por algo que não era sangue.

 Ele abriu os olhos. O alojamento provisório respirava com o som de outros dezessete jovens. Amanhã, todos enfrentariam o Cântico das Almas e seriam enviados para um dos três grandes Clãs de Arakua: Solares, Eclipse ou Aurora. A ansiedade pelo ritual era palpável no ar. Cada respiro era um fole distante, cada virar na cama um sinal de insônia coletiva. Sua pele parecia fina demais, crua, como se cada som e sombra do mundo a atravessasse sem perdão. Ele virou a cabeça no travesseiro áspero e viu Cássio, de olhos abertos, observando-o através da penumbra. Não era mais o desdém indolente do templo. Era um cálculo frio, a avaliação de um predador diante de uma fogueira inesperada na floresta. O calor no peito de Satoshi latejou mais forte, uma pontada de agressividade que não era totalmente sua. Ele desviou o olhar, o coração acelerado.

 O dia raiou com o estrondo de um portão de metal sendo aberto. Um oficial do exército, com a insígnia de um falcão negro no peito, encarou os recrutas amontoados no frio da madrugada.

 — Formação! — sua voz cortou como uma lâmina. — Avaliação de aptidão física. O Cântico será amanhã. Hoje, precisamos ver a força bruta que cada um de vocês carrega.

 Não era um pedido. A ordem pairou no ar, carregada de uma intenção não dita. No pátio de treinamento, a geada ainda cintilava sobre a pedra. Satoshi sentiu os olhos sobre ele antes mesmo de ver os observadores. Na varanda elevada, o Estrategista, envolto em mantos escuros, apoiava-se em uma bengala de ébano, seus olhos afiados como os do falcão em sua insígnia. Ele era a única figura imóvel em um mar de atividade calculada.

 Os testes começaram. Corrida, levantamento de pesos, luta corpo a corpo. Cássio dominou cada prova. Quando seu poder foi convocado, o Mapinguari rugiu silenciosamente em seus olhos. Ele ergueu um bloco de granito que dois outros recrutas mal conseguiam balançar, seus músculos tensionados com uma força que era mais do que humana. A aprovação dos instrutores era palpável. Todos sussurravam que ele teria o perfil de um Solário - disciplinado, forte, controlado.

 Então, veio a vez de Satoshi.

 — Recruta Yuta. Centro da arena — ordenou o instrutor, sua voz neutra, mas seus olhos cintilavam com curiosidade contida.

 O Estrategista na varanda inclinou-se levemente para a frente.

 Satoshi caminhou até o círculo marcado no chão de pedra. O silêncio caiu sobre o pátio. O calor em seu peito era uma brasa agora, ansiosa.

 — Teste de resistência elemental — anunciou o oficial, e uma porta lateral se abriu.

 Luan entrou, um guerreiro três anos mais velho que os recrutas. Seus braços descobertos mostravam padrões de geada azulada que se moviam como serpentes aquáticas sob sua pele. Ele era um Aurorino, um portador do Boitatá de Água - uma variação rara e enfraquecida do lendário fogo-fátuo, reduzida a gelo e névoa. Seus olhos, da cor de lagoa turva, fixaram-se em Satoshi sem hostilidade, apenas com a resignação de quem fora escalado para um trabalho sujo.

 Sem cerimônia, Luan atacou.

 Jatos de ar gélido atingiram Satoshi como chicotes. Ele tentou esquivar-se, rolar, mas o frio era implacável. Agarrou seus membros, queimando com um gelo que parecia fogo. Ele caiu de joelhos, seus dedos entorpecidos escorregando na pedra geada. Luan aproximou-se, e uma lança de gelo sólido formou-se em sua mão.

 — Desista, garoto — o Aurorino rosnou, sua voz ecoando com o poder elemental.

 O pânico inundou Satoshi. Ele não conseguia respirar. O frio estava em seus pulmões, em sua mente. Ele iria morrer aqui, um experimento que deu errado. Acabou, pensou, como no templo.

 Mas desta vez, a resposta não foi uma pontada. Foi uma erupção.

 A entidade não esperou por um chamado. Ele simplesmente tomou.

 O calor no peito de Satoshi explodiu para fora, não como chamas, mas como uma onda de calor invisível e absoluta. Um whoomp abafado sacudiu o ar. A geada no chão, nas paredes, em Luan, simplesmente deixou de existir. Não derreteu; evaporou. O guerreiro Aurorino foi arremessado para trás como um boneco de pano, sua armadura fumegante, a lança de gelo reduzida a vapor. Ele gritou, um som de agonia pura, antes de cair inconsciente no chão.

 O silêncio que se seguiu foi mais aterrorizante que o ruído da batalha.

 Satoshi ficou de pé no centro da arena, são e salvo, envolvido em um calor tremeluzente. Ele ofegava, não de esforço, mas de terror. Ele olhou para suas mãos. Eles não tinham queimado. Eles não tinham feito nada. O poder simplesmente... havia acontecido. E por um breve, horrível momento, no auge daquela liberação, ele sentira uma euforia avassaladora. O gosto do poder absoluto era adocicado como mel envenenado.

 A euforia passou, deixando apenas o vazio e o horror.

 O Estrategista na varanda não sorria. Ele fazia anotações rápidas em sua prancheta, seu rosto uma máscara de análise clínica. Satisfeito e aterrorizado. "O Cântico confirmará, mas um poder assim... só pode ser de um Eclíptico," sussurrou para um subalterno. Todos agora sabiam. Aquele caos controlado, aquela fúria imprevisível, era a marca de um Eclíptico. O Clã dos rebeldes, dos incontroláveis. O pior pesadelo do sistema.

 De volta ao alojamento provisório, a parede invisível ao redor de Satoshi tinha se solidificado em granito. Os recrutas se afastavam dele, seus olhos cheios de um medo que beirava o religioso. Renan e Ruan, os gêmeos que provavelmente seriam Auroranos, viraram as costas quando ele se aproximou, seu silêncio mais eloquente que qualquer insulto. Cássio, em seu canto, não desperdiçou um olhar. Sua atenção estava fixa na parede, mas Satoshi podia sentir o ódio irradiando dele como calor de um forno. Era um ódio novo, respeitoso e mortal. Ele não era mais um rival; era uma anomalia a ser contida. Um futuro Eclíptico. O caos em forma de homem.

 Naquela noite, o sono fugiu de Satoshi mais uma vez. As vozes na sua cabeça não eram mais sussurros, eram imagens: visões de cidades em chamas, de exércitos se reduzindo a cinzas sob seu olhar, ofertas de poder ilimitado se ele apenas... cedesse. Ele se levantou e escapuliu para o pátio externo, onde o ar noturno deveria ser frio, mas para ele, era morno como o hálito de um forno.

 Ele não estava sozinho.

 A Rainha das Cinzas estava parada perto da muralha, olhando para as estrelas como se lesse presságios nelas. Seus cabelos escarlates pareciam negros à luz da lua, mas seus olhos prateados brilhavam com uma luz própria.

 — Eles não te disseram, não é?

 Satoshi balançou a cabeça, sem palavras.

 — O primeiro fogo que você precisa aprender a controlar — ela continuou, virando-se para ele — é o que queima por dentro. O fogo da raiva. Do medo. Da solidão. — Seu olhar foi até o centro do seu peito, como se pudesse ver a chama batendo. — Amanhã, no Cântico, a Lâmpada vai gritar a sua verdade para o mundo. Provavelmente você ficará entre os Eclípticos. E vão tentar fazer de você uma bigorna. O Rei, o Estrategista, até o deus na sua cabeça. Eles vão martelar você até moldá-lo na forma deles.

 Ela fez uma pausa, deixando as palavras ecoarem.

 — Ou você aprende a ser o ferreiro.

 Ela não esperou por uma resposta. Ao se virar para ir embora, a luz da lua iluminou a palma de sua mão direita. Uma cicatriz em forma de teia de aranha, brilhante e pálida, cruzava sua pele a marca de uma queimadura antiga e profunda.

 — Eles lhe deram um título — Satoshi disse, a voz saindo mais áspera do que pretendia. — Rainha das Cinzas. Mas... qual é o seu nome?

 Ela parou, sem se virar. Seus cabelos escarlates pareciam uma cortina de sangue sob a lua.

 — Nomes têm poder, menino-pavio. — Sua voz era suave, mas carregada do peso de invernos passados. — O meu morreu na Passagem dos Três Sóis, junto com a garota que o carregava. O que sobrou foi isto. — Ela ergueu levemente a mão marcada, a cicatriz branca brilhando fantasmagoricamente. — A cinza é o que resta quando o fogo consome tudo. Até a esperança. Até um nome.

 Ele engoliu em seco. — E o que resta quando a cinza é levada pelo vento?

 Finalmente, ela se virou. Seus olhos prateados, pela primeira vez, não refletiam apenas a luz da lua—eles pareciam emitir uma luminescência própria e melancólica.

 — O silêncio. — Ela fitou-o por um momento que pareceu eterno. — E a terra nua, pronta para um novo fogo. Cuidado para não ser consumido antes de aprender a arder, Satoshi Yuta.

 Sozinho novamente, Satoshi encarou o céu noturno. As palavras dela ecoavam mais alto que os sussurros de fogo em sua mente. "Até um nome." O conselho da Rainha era uma âncora em meio ao mar de vozes incendiárias. Ele sentiu a presença dentro dele, o convidado divino e não convidado, testando os limites de sua casa. Amanhã, ele seria um Eclíptico. O caos seria sua casa. A rebeldia, seu uniforme.

 Ele fechou os olhos, não em rendição, mas em desafio. Ele mergulhou para dentro, em direção ao calor, em direção ao deserto em chamas em sua alma. Não como um suplicante, mas como um dono.

 A última coisa que ele pensou, uma mensagem clara e nítida dirigida à entidade cósmica que agora dividia seu corpo, foi um aviso silencioso e feroz:

-Esta casa tem um dono.

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