Volume 1
Capitulo 1: Garoto Pavio
O sol cortou as nuvens, banhando a Favela do Cipó em tons de ferrugem e sangue seco. Satoshi Yuta pisou numa poça, a água suja salpicando suas canelas. Seus pés descalços conheciam cada pedra daquele caminho. Cada rachadura no barro era uma linha na palma de sua vida.
— Yuta!
Um menino encolhido na soleira de uma porta. Olhos arregalados.
Satoshi não parou. Seu olhar estava cravado no topo da colina, onde o Templo do Fogo interrompia o céu com suas paredes de pedra áspera.
— Vai se jogar no ritual?
A voz sumiu atrás dele. Satoshi cuspiu, tentando limpar o gosto de poeira e medo da boca. Suas mãos, fechadas em punhos, tremiam. Estas mãos que nunca haviam segurado nada mais valioso que uma ferramenta ou um pedaço de pão. Hoje, segurariam seu destino. Ou o deixariam cair.
A subida queimava suas panturrilhas. O ar mudou — o cheiro doce-apodrecido da favela deu lugar ao odor de pedra polida e óleo de armadura. Soldados com as insígnias do exército de Arakua flanqueavam o caminho, seus rostos tão esculpidos e impessoais quanto as armas que carregavam.
O Templo engoliu a luz da manhã. Dentro, a penumbra era úmida e fria. Tochas cuspiam sombras dançantes sobre paredes entalhadas com bestas míticas de Arakua. O chão gelou a sola de seus pés com uma frieza que subia pelas pernas acima.
Dezessete jovens. Uma linha de cordas tensionadas. No centro, ereto como uma espada fincada no chão, Cássio usava uma túnica de linho imaculado. Seus olhos deslizaram sobre Satoshi, dos pés sujos ao rosto marcado pela fome. Um sorriso cortante surgiu em seus lábios.
— Não sabia que recolhiam o lixo antes do amanhecer — sussurrou Cássio para o garoto ao seu lado.
Satoshi mordeu o interior da própria bochecha. O gosto do seu sangue, metal e sal, o ancorou. Ele fixou os olhos no sacerdote que se aproximava, vestido com mantos escuros que pareciam feitos de noite solidificada. Em suas mãos, o Cálice do Despertar. Negro. Absorvia a luz.
— Que as almas de Arakua encontrem voz em seu sangue — a voz do sacerdote rolou pela câmara, grave e impessoal.
O primeiro recruta tocou os líbios no metal e gritou, um som de animal apunhalado. Seu corpo arqueou no chão antes de guardas o arrastarem para fora. O próximo recebeu uma marca fraca de um espírito de riacho — um brilho azul pálido sobre seu peito. Um murmúrio de desdém correu pela galeria dos nobres.
Cássio avançou. Bebeu. O ar estalou. Suas costas se arquearam e o tecido de sua túnica rasgou, não por costuras, mas por algo que emergia de dentro para fora. Sobre seu esterno, o Mapinguari ganhou vida em verde profundo, seus olhos de rubi queimando com fúria ancestral. O murmúrio da galeria tornou-se um rugido de aprovação.
Cássio ergueu o queixo, sua respiração ofegante. Seu olhar encontrou o de Satoshi. Triunfante. Faminto.
As pernas de Satoshi pesavam como se as próprias pedras do chão o puxassem para baixo. Seus dedos se fecharam em torno do cálice. O metal estava quente. Palpitante.
O líquido não tinha gosto. Era o vazio. A ausência de tudo.
Nada.
O silêncio no templo tornou-se uma coisa viva, sufocante. O rosto de Cássio se abriu num sorriso verdadeiro, cruel e aliviado. O peso do fracasso afundou nos ombros de Satoshi, mais esmagador que qualquer fardo que já carregara na favela. Acabou.
Então.
Uma pontada. No fundo do seu estômago. Como um carvão incandescente sendo aceso no seu núcleo.
A pedra sob seus pés escureceu, depois brilhou num vermelho doentio. O ar foi sugado do templo num único instante. As tochas se apagaram. Não com um suspiro, mas com um estrangulamento.
Calor. Não do lado de fora, mas de dentro. Brotando de suas entranhas, subindo por sua garganta, enchendo seus pulmões de cinzas vivas. Um redemoinho de chamas douradas e sangrentas explodiu ao seu redor, silencioso e assassino. Não havia som, apenas uma pressão que ameaçava esmagar seus tímpanos.
Dentro do fogo, ele estava intacto. Imóvel. Seus olhos, arregalados, não viam o templo. Viam um deserto infinito sob um sol negro. E uma Presença. Antiga. Indiferente como combustão espontânea. Ela não falou. Ela impressionou sua consciência com um conceito puro, desprovido de linguagem: Pavio.
No peito de Satoshi, onde os outros tinham marcas, sua pele tornou-se translúcida. Por um instante, entre as dobras de luz distorcida, vislumbrou o próprio osso, o esterno, e dentro dele, uma chama dourada e instável pulsando como um núcleo estelar.
O sacerdote gritou, um som distante e abafado pela barreira de fogo. Ele caiu para trás, seus mantos fumegando.
No alto, na galeria real, uma figura se inclinou para a frente, dedos longos branqueando sobre os braços do trono.
Da penumbra ao lado do trono, uma voz soprou, tão baixa que as palavras se perderam, mas carregada de urgência. Uma resposta veio, cortante e final: — Inkara. Ele é meu.
Uma figura separou-se das sombras atrás do trono.
Cabelos de fogo vivo sobre uma armadura de cinzas. Olhos prateados como mercúrio que refletiam o caos abaixo sem participar dele. A Rainha das Cinzas desceu os degraus sem pressa. Os guardas recuaram diante dela. Ela não olhou para o sacerdote, nem para a galeria. Seu olhar permaneceu fixo em Satoshi.
O redemoinho de fogo morreu, sugado de volta para dentro dele. Satoshi cambaleou, seu corpo um trapo fumegante. O mundo girou e ele viu o chão de pedra se aproximar.
Ela não o pegou. Apenas parou a exatamente um passo de distância.
— O pavio sempre queima primeiro — disse ela. Sua voz era baixa, mas cada palavra era distinta, como lâminas se encaixando.
Ela se virou para os guardas paralisados.
— Levem-no.
Sob o olhar dela, eles obedeceram. Mãos rudes o puxaram pelas axilas, seus pés arrastando sobre a pedra. Satoshi mal sentia seu próprio corpo. Apenas o eco daquele conceito imposto: Pavio.
No alojamento escuro, ele caiu sobre um catre de madeira áspera. O cheiro de suor jovem e medo enchia o ar. Os outros recrutas se encolhiam, seus olhos faiscando no escuro. Cássio, em seu canto, não sorria mais. Ele observava. Calculava. Os gêmeos que despertaram o Curupira sussurravam, suas vozes um zumbido de insetos assustados.
Satoshi virou o rosto para a parede de barro. Fechou os olhos.
A escuridão atrás de suas pálpebras não era escura. Era o vermelho profundo de uma forja.
E do fundo do vulcão que agora habitava seu peito, uma consciência estrangeira moveu-se. Não um sussurro, mas uma orientação primordial. Uma verdade geológica: que a função do pavio é ser consumido.
Fora, no corredor, parada na penumbra, a Rainha das Cinzas observava através da fresta da porta. Seus olhos de prata não viam um garoto. Viam uma faísca pairando sobre um barril de pólvora. O dedo indicador de sua mão direita encontrou inconscientemente a ranhura de uma queimadura antiga que tinha na palma, enquanto suas narinas dilatavam levemente, como se aspirando o odor de fumaça que só ela podia perceber.
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