Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 2

Capítulo 93: Conversinhas

Baltasar, vulgo presidente da Associação de Raiders, era uma pessoa de temperamento meio curto. 

Com sua barriga chopp e uma genuína raiva que poderia arremessar qualquer pessoa do seu escritório pelos ares, ele se perguntava genuinamente o porquê justo nessa competição apareceria o tal Patriarca da Seita do Sol Nascente.

Aquele maldito poderia ser considerado praticamente uma múmia ambulante, mas o problema estava em como o clima e as negociações ficariam enquanto ele estivesse lá.

Diga-se de passagem que o Patriarca era muitas vezes chamado de “certinho” ou “homem de época”, no sentido que qualquer coisa que fosse fora de seus preceitos e boa moral fossem imediatamente dedurados.

Baltasar tinha ódio disso, porque dificultava mais o jogo político necessário para manter sua posição e controlar as potenciais consequências por não manter certas pessoas na linha.

O presidente não era uma pessoa ruim, longe disso, apenas precisava fazer o errado pelas causas certas, como lidar com um chefe do tráfico ali ou conversar com um maldito de uma companhia tóxica ao ambiente de raiders.

Não tinha o que fazer, além do mais, todos detinham poderes e uma quantia respeitável de poder social, econômico ou bélico ao seu alcance, e se decidissem usá-lo, seria difícil impedir.

Baltasar respirou fundo e se encostou no canto mais isolado do cômodo, querendo mais do que tudo arrancar seus olhos de tanto revirá-los. A dor de cabeça também não parava.

“Eu poderia bem que estar em casa curtindo minha vida… mas não tenho tanta escolha, não é mesmo?”, pensou, escondendo ambas as mãos no bolso e querendo espantar a série de paranoias em sua cabeça. — As coisas eram mais fáceis vinte anos atrás…

— Chefe — chamou um homem de terno, um de seus secretários —, a senhora Viviane disse que precisa falar com o senhor.

— Hum? — Ele ergueu a sobrancelha. — O que ela quer? 

— Ela disse que é sobre a sua filha, chefe.

— Traga-a aqui.

Não demorou muito para o secretário sair e buscar a garota, que demonstrava o mesmo batom verde e um lindo vestido para a ocasião. 

Baltasar a analisou, buscando algo de errado em seu rosto que entregasse exatamente suas intenções, uma pena que era difícil analisar aquela expressão metódica que escondia tudo de vista.

— Ela está dando problema? 

— Não, muito pelo contrário, a Natália é uma ótima garota. — Ela conteve uma risadinha, comentando bem baixinho no ouvido do presidente: — Você ia se impressionar muito com o que aquela garota tem feito pelas nossas costas nos últimos meses.

— O que você quer dizer com isso? Não… aquela cabeça oca… ela…

— Aham, ela atingiu um novo patamar dentro do uso de transformação. Logo logo, talvez quando fechar um ano, a Natália ficará bem perto do nível do papai “Dragão Dourado” dela.

O homem soltou um suspiro de alívio. Pensava ter sido outra coisa, mas isso também era uma ótima notícia, cada vez mais a antes pequenita Natália estava dando orgulho ao seu velho.

A memória dela sendo uma criancinha e dizendo a todos que seria a melhor no trabalho de raider era clara como diamante em sua cabeça, além do mais, foi uma das coisas mais fofas que já presenciou.

Ele recobrou a compostura, acenando diversas vezes para a informação dada.

— Isso é ótimo de ouvir… mas ainda acho que deve ter outra coisa na sua cabeça, não é mesmo?

— Mais ou menos. Eu queria arranjar mais monstros para manter o nosso acordo, creio eu que a última leva já tenha se esgotado e consegui tudo o que podia.

— Ainda vai demorar mais um tempo. Você sabe que não é fácil capturar esses bichinhos com tanta facilidade.

— Sei disso, só estou me sentindo impaciente a cada dia… — Ela virou os olhos rumo ao restante do evento. — Posso ter muita experiência na área de transformação e manipulação por causa da minha habilidade, no entanto, desaprendê-la é fácil se eu não tenho consumo o bastante. Sou como uma planta; se o solo não tem mais nutrientes o bastante, eu fico alejada no processo. 

Baltasar entendia esse tipo de coisa. Para muitos raiders, prática era algo essencial, você precisava usar suas habilidades diariamente de alguma forma para não perder o costume.

Se perdesse, teria dificuldade em usá-la novamente quando a fosse a hora, e havia a chance de ser uma questão de vida ou morte. 

Não à toa que ele se aposentou anos atrás, depois de muito serviço, para focar primariamente na sua prática e podar partes de suas capacidades que possuíam ainda um mar de possibilidades.

No entanto, em decorrência da idade, não tinha como fazer muito, especialmente por não ter a mesma energia e potencial de quando era jovem.

Esse motivo o levou a chamar Viviane, uma mulher que foi reconhecida por recomendação de seus pais — ambos também com habilidades semelhantes de transformação e com um currículo gordo na área.

Assim, ela e sua filha foram colocadas para sessões de treino constantes, com o objetivo de fazer o talento de Natália florescer enquanto fosse cedo.

A menina talvez não quisesse saber o seu limite, ou quem sabe nem chegar ao topo de carreira como raider, mas ainda assim seria útil o suficiente para garantir-lhe uma boa vida.

— Se é isso, por favor, aguarde mais um pouco. Meus meninos tem ido até mesmo a Coreia para colecionar alguns monstros que possam ser do seu ou do nosso interesse…

— Mesmo? Que curioso, tem aparecido muitos portais e monstros na Coreia com a aparição de uma nova estrela em ascensão. 

— Sim, ninguém sabe se os eventos são correlacionados. Talvez seja uma dadiva ou só grande coincidência, mas o que importa é que os novos espécimes são muito efetivos no tratamento e estudo de alguns campos de pesquisa. 

— Entendo… — Ela pôs a mão no queixo, ponderando por um tempo. — Me contacte caso consiga um, também quero uma lista se possível. Não posso deixar passar algo assim… Ah, e foi bom vê-lo hoje, presidente.

— Digo o mesmo. — Baltasar então se despediu com um breve aceno.

Viviane retornou ao meio da multidão, no entanto, o presidente da associação ficou pensativo quanto a essa garota. Há um tempo reparou em seus comportamentos estranhos.

Não só perdeu a timidez, mas parecia mais assertiva e imperativa, como se tivesse o desejo de mandar nos outros quando e como pudesse.

Baltasar odiava isso, mas não queria se levar pelos seus próprios pensamentos e suposições.

“Eu deveria mandar alguém investigar o quanto antes.”

 

*****

 

Hélio zanzava naquela floresta selvagem e brutal como um coelhinho medroso em tempo de ser devorado por uma águia. Seu arco era praticamente inútil, no entanto, ele insistia em sobreviver.

Tudo o que não queria era ter que correr para sobreviver, seu corpo estava suado e em pouco tempo seria obrigado a retornar a luta, no entanto, os concorrentes demonstravam garras e dentes afiados demais para se lidar.

A pessoa atrás dele, inclusive, era uma prova viva dessa realidade. Uma mina de 2 metros de altura, com um bíceps maior que a cabeça de Hélio e uma expressão impassível como se estivesse morta.

“Eu tô dentro de um pesadelo, Deus meu!”

Para contextualizar, um tempo atrás ele caminhava tranquilamente pela ilha, procurando um esconderijo melhor após ter lidado com aquela tensão toda com o homem salamandra.

No meio desse caminho, deparou-se com essa mulher espancando um cara de terno com uma metade branca e outra preta. Os dois trocaram olhares e por instinto o homem correu daquela mutante com suco até no cérebro.

Resultado da opera: ele estava se cansando muito, diferente da garota atrás, que continuava com a mesma expressão e se mexia como um robô sem emoção nenhuma.

Hélio, no entanto, só podia entrar numa zona de desespero. Em dado momento, seus tornozelos só giraram no próprio eixo, enquanto uma flecha foi apontada para trás.

A moça desacelerou o passo e esperou que viesse, mas isso nunca aconteceu, porque numa fração de segundo o arqueiro vesgo mexeu suas pernas e voltou a correria.

“Não é como se fosse acertar mesmo, então que se foda!”, pensou, jogando seu corpo para o meio do mato como forma de sair dali.

Uma pena que não adiantou muito, já que correr sem direções exatas o levou justamente para um penhasco, com uma grande recepção para o mar.

— Te peguei… — disse a mulher, estralando os punhos e o pescoço. — Se não quiser levar uma surra, é só pular.

Aquela maromba ao estilo Dragon Ball levava jeito para ameaçar. A única forma de sair seria por meio de algo assim, claro, mas Hélio não queria ser desclassificado de uma forma tão humilhante.

Eis que, do meio da floresta, seu salvador chegou… Um cara de terno metade branco, metade preto, que tinha um olho roxo e uma força de vontade absurda.

— Te encontrei, sua vagabunda! — Ele apontou o dedo para a mulher. — Aquilo não valeu, você me atacou sem avisar e eu ainda dei azar, cacete!

— Ah, eu esqueci de me livrar de você… — respondeu ela, rotacionando o pescoço grosso para trás com tremenda preguiça. — E o que você fará agora? Não tem nenhum equipamento importante, nada além de umas moedinhas de 1 centavo.

— Moedas de 1 centavo? Hahaha, você é mesmo tola, menina! 

O “duas caras” retirou do bolso cinco moedas, todas com seu lindo metal marrom que não valia absolutamente nada nos tempos de hoje.

— Presencie minha técnica: Lançamento de Moedas Múltiplas!

Com uma habilidade e precisão absurda, todas as cinco moedas foram jogadas para cima e rodopiaram em alta-velocidade, então rapidamente aquele sujeito bateu todas contra sua mão numa única vez.

O resultado foi: Coroa, Cara, Cara, Coroa, Coroa.

— Puta merda, não é possível! 

O xingamento não poderia ser mais justo, já que aquela habilidade se voltou contra seu usuário na capacidade máxima. 

De forma simples, a habilidade do tal Duas Caras exigia o lançamento de uma moeda. Se desse cara, seus atributos físicos aumentariam, mas se fosse coroa, diminuiriam.

E como vieram três coroas e ironicamente duas caras, isso significava que…

— Ei, frangote, tô sem tempo — falou a mulher antes de tacar um tapão no rosto do esquisito, que foi nocauteado na mesma hora. — Bon voyage, que não volte nunca mais também!

Num único movimento, ela arremessou o homem rumo às águas, e deu para ouvir o baque forte ocorrendo lá embaixo.

Quem restava agora era somente Hélio, que engoliu seco ao entrar na linha de visão da mulher fortona. Ele se sentia minúsculo diante daquela parede de músculos.

Mordendo a língua para conter seu medo, materializou seu arco no meio do nada, puxando uma corda invisível com uma flecha pronta.

A mutante não esperava ser atingida, na verdade, acreditava que ele nem ia atirar, da mesma forma que Hélio duvidava muito de alguma possibilidade que suas flechas acertariam.

No entanto, ele fez mesmo assim, disparando cada uma com precisão nula e somente com pura velocidade. Cada flecha voou e caiu em diversos lugares diferentes.

Algumas atingiram o chão, outras pegaram num desavisado que andava pela floresta, mais algumas derrubaram árvores, mas ao menos uma inesperadamente atingiu seu alvo.

Aquela flechada inesperada empurrou a mulher alguns metros para trás, abrindo ao menos uma distância para que tentasse de novo.

Se não fosse pelo cansaço, ele conseguiria se manter por mais tempo naquela guerra de atrito, uma pena que seu braço e corpo estavam fadigados demais de lutas e fugas sem fim.

Ele só acertou mais uma, e quando a poeira abaixou revelando o corpo musculoso daquela mulher, suas expectativas racharam como um frágil diamante. 

Ela não demonstrava nenhum hematoma, só uma marca de poeira no canto atingido. A respiração acelerada de Hélio também não colaborou, sua visão estava afunilando e escurecendo aos poucos.

“Ao menos, eu tentei… não é?”

Os últimos pensamentos reverberaram por sua cabeça, enquanto seu corpo caia lentamente rumo ao chão, já sem energia alguma para se manter mais um segundo de pé.

“É, eu durei o tanto quanto pude…”

E assim, sua cabeça bateu no chão, tudo escureceu ao seu redor e os sons se tornaram mais e mais indiscerníveis, declarando a derrota do arqueiro vesgo.



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