Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 2

Capítulo 47: Aproveite

Lucas queria dormir. Viviane o arrastou de cima a baixo pela cidade, eles foram a um restaurante rico e a uma casa de jogos de aposta.

Se bem lembrava, cassinos eram proibidos no Brasil, e mesmo assim o prédio estava ali operando a todo vapor. 

De qualquer jeito, pouco importava. Nenhum dos dois encheu a cara, Lucas porque não gostava e Viviane por precisar de sobriedade mais tarde.

Não aconteceu nada que verdadeiramente atraiu atenção, muito menos algo que precisava sequer ser revivido para começo de conversa.

Pareceu só uma enorme perda de tempo. Perto da noite, retornaram para a casa no interior, arrasando pelo trânsito numa limusine chamativa.

A dona da casa estava fora ainda, somente os empregados trabalhavam lá dentro e a recepção de Lucas foi breve como esperava. 

O relógio indicava 19:10. As zonas a esse momento podiam ser acessadas, e como Viviane cumpriu sua palavra de não encher mais o saco, Lucas decidiu resolver isso de uma vez logo.

— Bora lá, Viviane — chamou, depois de ter descido da escadaria com seus equipamentos perfeitamente arrumados. — Dá certo ir agora. Ainda lembra como se faz?

— Acompanho você depois de passar por uma porta, certo? 

— Aham. Faça o favor de não destruir nada que ver do outro lado, por favor.

A mulher inclinou a cabeça, tentando entender como destruiria alguma coisa se não havia nada num raio de quilômetros.

Dentro da zona, no entanto, as coisas ficaram mais claras. 

Um pouquinho afastado da mansão, havia diversas caixas de madeira grandes, iluminadas ao redor por pequenas lâmpadas.

Lucas permaneceu quieto, mas quando desceu da varanda, abriu a mochila e separou duas lanças curtas.

— Eu consegui isso há pouco tempo. — Estendeu a lança para a mulher. — Comprei com Xing Xong, um sócio meu.

— Oh, conheço-o também. Ele também é meio conhecido no meio das coisas com raiders e semelhantes, um louco de uma seita cheia de dinheiro. Não sei de onde eles conseguem tanto dinheiro do absolutamente nada.

— Também gostaria. Bom, eu vendi uma coisa que interessava muito a eles, quis pegar vantagem por causa da fama também.

Aproximando-se da caixa de madeira, Viviane entendeu para que serviam. 

Umas criaturinhas surgiam dentro daquela coisa, só para serem mortas por uma lançada pelo vão abaixo. Extremamente eficiente.

Toda vez que Lucas matava um, ele puxava o corpo da criatura para baixo e entregava para que a mulher mastigasse.

Ela, com o maior desgosto do mundo, mordia e arrancava um pedaço da carne. Aquela em especial era seca e salgada, diferente da dos goblins que era macia.

— Que monstro é esse?

— Kobolds. É semelhante ao goblin, mas parece mais um cachorro. 

Ele seguiu explicando que por algum motivo essas criaturas apareciam aqui ao invés do goblins, mas que havia outras caixas dessas lá na primeira zona que entraram.

O motivo de continuar ali era mais por uma questão de ineficiência. Estaria ganhando a mesma coisa se tentasse lá, e como o lugar era muito aberto, muito mais deles spawnavam.

— Ei, posso te perguntar uma coisa? — Estocou um kobold dando bobeira acima.

— Já perguntou, mas pode falar.

— Por que a Natália é sua pupila? 

— Porque eu e ela temos o mesmo tipo de habilidade, e eu, sendo mais velha, obtive mais domínio no uso. Ela correu atrás de mim por saber que minha família era rica e porque tinha uma habilidade forte… acho que deve ter descoberto a essa altura, mas ela se transforma num tipo de dragão dourado.

Ela continuou a falar como era comum encontrar pessoas que possuiam alguns poderes semelhantes, como os manipuladores elementares, ou aqueles que se transformavam em algo.

Existia também aqueles que ganhavam reforço físico, outros modificavam leis da física, mais alguns alteravam seu corpo; as variáveis iam ao infinito e além. 

O caso de Viviane era mais excêntrico, talvez um milagre da genética, pois ela podia se transformar em tudo o que consumia. 

Ela não era muito famosa, muito pelo contrário, se mantinha bastante escondida, diferente de seu pai e mãe.

Os dois eram raiders de rank B, usuários de transformações em outras criaturas. A mulher em si era para ser o somatório dos dois, porém o mundo teve um destino diferente.

Seus pais a mantiveram escondido do mundo por motivos óbvios, ela podia ser pega por cientistas malucos para estudos, algum governo talvez teria interesse em usá-la como arma biológica.

A maioria de suas desculpas eram clássicos casos de cinema, em que um ser humano era poderoso demais para viver por conta própria.

— E por que tá me contando tudo isso agora? Não é pra ser segredo?

— Você sabe do meu sistema, coisa que nem meus pais sabem. A essa altura, acho que conhecer o motivo de eu andar livremente com uma habilidade roubada não seria nada demais. Aliás, o que aconteceu contigo de você aparecer na tv repentinamente, hein?

— Meu irmão ficou numa posição de perigo. — Um suspiro fugiu de sua boca ao lembrar da cena na televisão. — Ele estava saindo com a namorada, a Natália… É, os dois são namorados e eu não esperava. Enfim, ele tava desmaiado e eu pensei no pior que poderia acontecer, acabei agindo no instinto e deu no que deu.

— Hehehe, ownt, ele se importa muito com o irmãozinho — provocou, abraçando a lança como se fosse um amigo.

— Ei, nem vem. Qualquer um faria algo assim. Se o teu pai ou a Natália estivesse em perigo, você não iria correndo pra ajudar eles?

Viviane não respondeu. Na verdade, ela somente afastou a arma de perto e abocanhou um pedaço do Kobold novamente.

Levantou a mão, garras saltaram no lugar das unhas e pelo cresceu nas costas da palma. Lucas sempre ficava impressionado com esses truques, queria até poder usá-los.

— Posso confessar uma coisa? — perguntou ela, desfazendo a metamorfose na mão. — Igual aquela que recebi há uns dias. Tem problema?

— Não. Tô te ouvindo.

Outra estocada contra um monstro dentro da caixa, dessa vez ganhou quatro kobolds no espeto. 

— Eu não salvaria o meu pai. — Cruzou os braços, se espreguiçando na parede de madeira da caixa. — Natália, sim. Ela é uma boa garota, faria muito bem ao mundo… Agora meu pai e minha mãe, não, de nenhuma forma. Não compensa.

— Ué, por que? Tem alguma rixa ou só é revoltada contra eles por acaso?

— Eles são manipuladores, Lucas. Desde que minha habilidade foi descoberta, sou alimentada para ter o maior arsenal possível de poderes, e posso dizer que depois de tanto tempo repetindo essas coisas, você começa a pegar um gosto por ter tanto poder nas mãos. Sente vontade de ser imparável, por assim dizer.

Lucas virou o rosto na direção dela. Era óbvio que tinha algo fora do lugar, e mesmo odiando bastante Viviane por causa do seu jeito em relação a ele, não faria mal escutar.

Ignorou os rosnados dos kobolds, seus olhos só se concentraram naquela garota morena de batom verde-neon pela primeira vez em bastante tempo. 

Ela continuava muito bonita como da primeira vez que se conheceram, porém transmitia uma negatividade absurda por causa de seus olhos baixos.

— Eu acho que entendo o que você quer dizer… Não a parte dos pais, é claro, mas sim a parte de se sentir invencível. Esses dias eu fui levado pra delegacia por causa de umas coisas que fiz, e eu imaginando que nunca seria pego, hehehe.

— Hihi… É, é tipo algo assim… — Ela lançou um sorrisinho curto e bobinho, extremamente sincero e penoso. — Mas eu quis dizer isso porque é como estar na história de João e Maria. Eles foram engordados por uma bruxa e presos no porão. Às vezes penso que sou igual a eles, trancafiada dentro de uma casa e sendo constantemente alimentada até não poder aguentar.

— Quer dizer que você mais veio comigo não para arranjar mais poderes, mas pra se livrar desse sentimento? Eu hein, nunca imaginei que houvesse um coração em ti, Viviane.

— Idiota, óbvio que tem. SSe não tivesse, eu não estaria viva. 

— Verdade… Ei, por que quis falar isso pra mim? Sei que me abri contigo, mas não precisava fazer de volta.

— Não sei, sinceramente. Talvez porque você também convive com o sistema, talvez porque você é uma das poucas pessoas que conheceu esse meu lado… Sei lá, parece que é mais fácil contar as coisas pra ti do que para os outros. Imagine eu chamando a Natália para conversar e falar sobre uma tela flutuante que aparece toda vez que eu como um mostro. Loucura, não é?

— É, com certeza. Não contei nem pra minha mãe ou pro meu irmão exatamente por causa disso. Eles não acreditariam.

A conversa se desenrolou normal, o principal tópico era sobre as primeiras reações quando conheceram o sistema. 

Lucas foi o primeiro a falar, ele disse que ficou extremamente confuso no começo, que não entendia todas as funções e que inclusive agora não sabia de tudo.

No entanto, se provou muito útil aquilo. Sem nunca ter uma habilidade durante sua vida, o sistema caiu como uma luva, praticamente tirou o perigo da maioria das coisas que desejava realizar.

— Espera, quer dizer que você só teve o sistema pouco antes de me conhecer? — indagou a mulher, inclinando a cabeça.

— Sim. Eu realmente nasci sem habilidades e é meio recente a aparição dessa coisa.

— E foi difícil passar a infância assim? De não ser especial como os outros? 

— Não, não foi — mentiu, sequer sabia se foi realmente fácil essa época de sua vida. — Eu já sou especial por existir, o tipo de coisa que qualquer mãe falaria… mas, sendo sincero, se eu tivesse uma habilidade igual todo mundo, eu não seria especial, né?

Viviane não pensou por esse lado. Era algo bonito de pensar, que não ser igual aos outros podia também ser uma vantagem e fazê-lo especial. Uma risadinha escapou de sua boca.

— Isso significa que você é um idiota também, porque ninguém que chegaria a isso!

— Tanto faz, tanto faz. Eu sou foda do mesmo jeito.

Outra leva divertida de conversas rolou, dessa vez banais e sem tanta importância. Para duas pessoas que se desgostavam, estavam indo bem demais.

Eles passaram mais algum tempo matando kobolds, até um se enjoar de repetir e optarem por irem embora. 

Viviane saiu satisfeita, ela assimilou bastante do kobold, um dos monstros do qual não encontrou em nenhum lugar.

Durante a volta, ela preferiu também explicar outro motivo para andar com Lucas: o fato de que outras criaturas incomuns pudessem ser encontradas.

Os goblins, por exemplo, eram normais e fáceis, diferentes desses kobolds que acharam naquele dia. 

Uma coisa que reforçou sua vontade também foi a presença daquela vampira na última vez. 

Se existiam monstros fortes como aquele, poderiam ter vários outros, perfeito para consumir mais criaturas e aumentar seu arsenal bélico já grande.

— Eu deveria parar de andar com você pelo tamanho do seu interesse na minha habilidade. Tenho medo que vá atrás de me escravizar pra fazer isso.

— Não vale a pena… ainda.

— Ainda? Cacete, você até leva em conta me escravizar? Acho que seria bom uma terapia pra ti.

De volta ao mundo real, Viviane pediu um tempo no banheiro, precisava lavar as mãos sujas de terra.

Lucas desativou o timing das zonas e mandou para outro horário aproveitando que ela não estava vendo, assim não teriam problema saindo mais tarde.

Agora era necessário esperar, mas lá dentro do banheiro, Viviane lavava as mãos repetidas vezes.

O olhar dela no espelho era relutante. A água não parava de gotejar na torneira. Seu coração pulsava rápido, como se fosse explodir.

“Eu quero ele, ele é muito interessante… Como deve ser o gosto da carne dele?”

— Cale a boca — sussurrou, vendo seu reflexo distorcido no espelho. — Não comeremos ele. Lucas é uma boa pessoa e pode oferecer muitas outras coisas…

“É mesmo? Mas e que tal tentar comê-lo e absorver o sistema que ele tem? Não seria má ideia, isso poderia muito bem te dar poder o bastante para se livrar daqueles malditos.”

— Não faremos. Sei que estamos usando ele, e sei que é errado isso, mas é a melhor forma de sairmos do controle deles.

“Hehee… Hahahaha, Vivi. Você é ingênua, verá que logo vai acontecer o mesmo que sempre aconteceu com todos os que se aproximavam. Devorarei até o último pedacinho, até não sobrar mais nada, até não haver nada que possa ser obtido por mim.”

Aquela voz maldita, sempre manipulando sua cabeça e dizendo o que deveria fazer. O maldito alter-ego que estava consigo desde sua concepção do sistema.

A voz, que não sabia de onde vinha e nem sabia como era, infernizava sua cabeça há anos. Agora, ela não

queria somente machucá-la, mas também queria alcançar algo maior.

Isso era, matar Lucas.



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