Volume 2
Capítulo 35: Desagradável
Lucas agradeceu por respirar ar fresco de novo. Seus sentidos até demoraram para se adaptar à paisagem urbana, que ainda conseguia ter uma atmosfera completamente diferente da zona por mais que os lugares fossem iguais.
Logo atrás dele, veio Viviane, cuidadosa no seu caminhar e encarando as costas do rapaz, que agora estava cravado em sua cabeça pela cena de luta.
Aquele monstro com certeza teria saído de algo como um portal com um registro de energia fora da curva, algo como Rank D e na pior das hipóteses C.
Isso significava que a pessoa a sua frente, mesmo sem a capacidade física semelhante a de um raider de rank médio e sem demonstrar nenhuma ameaça, solou um monstro de mesmo nível sem sofrer grandes danos.
Pior disso tudo era o seu acesso a objetos estranhos, outro ponto que reforçava a ideia da habilidade de Lucas ser roubadissima. Ora, ele materializava coisas no meio do ar, como que alguém não desejaria algo assim?
A mulher engoliu em seco. Seu nível atual não era o bastante para enfrentá-lo.
Se enviasse os lacaios corretos, talvez até pudessem ganhar, mas a probabilidade das coisas darem errado pela caixa de surpresas que o rapaz demonstrava se tornou um grande alerta.
Além disso, não adiantava de nada derrotá-lo, pois um conflito direto chamaria muita atenção de autoridades e pessoas curiosas. Seu plano tinha a chance de ser exposto.
Ela não abriu a boca, seus olhos encaravam o chão, imaginando o que diria a seguir para se safar sem tantos conflitos, mas Lucas tomou sua fala antes de qualquer coisa.
— Já pode vazar, você foi completamente inútil. — A última palavra alfinetou a mulher de uma maneira brutal. — Se eu soubesse que você ia me largar daquele jeito, nem teria te chamado. Quase morri por sua causa.
— Minha?! Mas você quem foi atrás de enfrentar aquela coisa, e nos tínhamos um trato! Fiz conforme o combinado.
— Sim, e o seu combinado foi uma merda! — Ele passou a mão no cabelo suado, enfim reparando um corte limpo na lateral do cabelo que ia de uma ponta a outra. — Para variar, meu cabelo ficou arruinado.
Ele soltou um longo suspiro e se encostou na parede de concreto. Estava exausto, sua cabeça girava e uma dor infernal se apoderava de seus movimentos, fruto do esforço excessivo.
Como se já não bastasse uma garota reclamona que mal sabia usar sua habilidade direito vindo incomodar seu ouvido, ainda tinha que lidar com essa constante verdade sendo esfregada na cara que não estava apto para tanta coisa quanto antes.
Ao invés de perder mais tempo ouvindo Viviane, ele deu as costas e subiu a escadaria, batendo a porta de casa na cara da garota e revelando a carranca mais feia já feita em sua vida.
A mulher desistiu naquele instante de continuar. Depois de uma pancada na porta, a presença dela desapareceu com batidas pesadas de pé.
Do lado de dentro havia uma moça de óculos com a cabeça virada na direção de seu filho, fuzilando com as profundezas de uma alma curiosa.
— Quem era aquela menina? — perguntou, apoiando uma mão na cintura e a outra na mesa da sala.
— Ninguém, mãe, ninguém. — Lucas rebolou sua bolsa para dentro do quarto e fechou a porta, só para assaltar a geladeira em busca de um iogurte. — Era só uma babaca que atrapalhou umas coisas que eu queria fazer.
— Por acaso é uma menina que você teve uma quedinha?
— Por que toda vez que eu cito qualquer garota a senhora imediatamente pensa que é namoro?
— Porque se pelo menos não vai ter nenhum amigo, que tenha uma namorada, não é? — Ela cruzou os braços, assumindo sua postura de dona de casa. — Que ao menos tenha uma garota ao seu lado… ou garoto… já lhe falei que não vou deixar de te amar se você por um acaso gostar de homem, né?
Lucas revirou os olhos com aquele comentário, típico de sua mãe contar algo desse tipo. — Já contou várias vezes, mãe… Não se preocupa, eu prefiro mulher.
— Hmm… certeza? Certeza mesmo?
— Sim, certeza.
E com aquela conversa ultra desconfortável sobre sexualidade, os dois foram jantar. Pelo jeito o rapaz não se abriria sobre o que aconteceu entre ele e a garota, porém a dona de casa não iria invadir tanto assim os relacionamentos de seu filho.
Ela só torcia que pelo menos estivesse perto de boas influências.
Uma boa macarronada depois e Lucas foi descansar no quarto. Estava tarde, a lua batia na janela e iluminava parte daquele quarto. Aquele quarto que não era seu.
Dava vontade de mudar o design, tirar os pôsteres de bandas que ele não conhecia e por só as que gostava, talvez até configurar de novo o computador.
Só que por algum motivo, ele não tinha vontade. Estava cansado. Mortinho da Silva. Fazer tanta coisa num dia era satisfatório, diferente da sensação de passar horas a fio assistindo shorts no YouTube.
Um peso fugiu do peito. Será que deveria voltar um pouco ao estilo de vida antigo para relembrar como era ser viciado nos desejos do cérebro? Se isolar do mundo e só viver da mesma forma como sempre?
Sua mentalidade viciada ainda farmava monstros porque seu sistema de recompensas se focou naquilo, mas era quase igual aos jogos.
Lucas estapeou a testa, esses pensamentos tinham que ir embora para dormir e repetir o processo no dia seguinte. Não era necessário pensar, farmar e depois ganhar dinheiro seria mais eficiente.
Amanhã, ele iria para a Scarlet Witch Bazar e venderia alguns itens para descolar grana o bastante e assim facilitar o resto da sua vida.
É, esse seria o melhor plano. Não pensar, não pensar.
*****
Amanheceu. Um gatinho bocejava de sono enquanto esticava suas patinhas para todos os lados. Sua caminha estofada trouxe uma ótima noite de sono, nem mesmo os ratos passaram por perto de seu território.
O rei da casa mantinha seu domínio sem ninguém derrubá-lo. Até mesmo o senhor confusão estava em silêncio, aquele que causou muitos problemas durante anos desde o incidente.
Amora pulou sobre os móveis, fazendo uma ronda geral pelas redondezas do condomínio, o trabalho de sempre.
Estava tudo nos conformes, exceto por Lucas, vulgo senhor confusão, que estava saindo super cedo de casa com um moletom de treino e tênis.
Era muito esquisito ele, de todas as pessoas, aparecer num horário cedo assim para fazer sabe-se-lá o que. A essa hora, estaria dormindo dentro do quarto após revirar uma noite.
Cerca de um mês atrás, houve uma briga entre ele e a dona da casa, vulgo a única que tinha autoridade sobre Amora, e essa briga foi feia, ao ponto do próprio gatinho ter que intervir.
No caso, ele teve que proteger Lucas da inevitável morte já que sua mãe com certeza teria destruído o apartamento inteiro num possível surto de raiva.
Era esperado que depois dessa humilhação o rapaz ficasse meio isolado, especialmente por conta de ser o único da família sem uma habilidade.
Talvez seu comportamento agressivo veio exatamente desse fator, a inveja de não ser especial em relação aos outros, de não ter como lutar de igual para igual contra o outro.
“Mas… ele está também muito mais calmo que antes. Isso é estranho. Não houve também nenhum hematoma ou machucado nele desde então também, parece que nem luta contra mais ninguém.”
Atiçado pela curiosidade, o gato pulou de muro em muro, esquivando das gatinhas coloridas muito lindas que vinham sempre atrás dele quando passava.
Infelizmente, como um bom cavalheiro, Amora recusava a companhia, pois a dona de casa com certeza iria matá-lo se estivesse andando por lugares que não deveria, especialmente quando ela podia a qualquer momento checar sua localização por um rastreador na coleira.
O rei de casa observou do alto o pequeno Lucas atravessar as ruas com um passo apressado, até chegar na praça ali perto.
Ele rapidamente olhou para trás e encarou o mesmo lugar onde Amora se escondia, mas um movimento rápido e a posição do gatinho mudou de lugar.
“Ele me percebeu? Impossível, ele não teria esse tipo de instinto.”
Independente do que fosse, a ideia de que aquele garoto desenvolveu esse tipo de sexto sentido em curtíssimo tempo era assustadora.
Quem sabe fosse fruto dos diversos conflitos com todo tipo de gente aleatória por causa de sua personalidade ultra-agressiva, mas bem que os genes de Ronaldo vieram a calhar.
Amora quando viu que a barra estava limpa, pôs-se a observar aquele garoto treinando. Uma corrida pela manhã, ele fazia isso há poucos dias, pelas suas estimativas logo desistiria daquela rotina.
Mesmo desejando que isso não acontecesse, Amora julgou ser inevitável que Lucas escolhesse parar em cerca de uma semana, ou assim imaginou antes de ver o rapaz em ação.
Ele corria rápido, muito mais do que esperava, e ainda por cima praticava uma sequência de socos cada vez que terminava metade do trajeto da praça.
Jabs, diretos, ganchos, cruzados, esquivas, corre e repete.
“Aonde Lucas aprendeu essas coisas? Ele mal sabia dar um soco direito há duas semanas atrás e agora tem habilidade…”
Não fazia sentido ele treinar sozinho, pois com certeza Amora perceberia pela mudança de horários.
Uma mudança recente assim não teria tempo o bastante para atingir esse nível de habilidade e muito menos geraria energia o bastante para o esforço usado em ambas as atividades.
Foi como do dia para noite, como se ele tivesse sido possuído por um espírito. Podia até ser isso, era uma ocorrência incomum pessoas terem seus corpos invadidos por alguma criatura fantasmagórica dos portais.
Lucas levou uma hora para terminar o treino, voltando ainda correndo para casa. Amora estava se impressionando mais e mais com o físico do garoto, mas não foi só isso que mexeu com seu chão.
Como se já não bastasse o treino da manhã, ele revirou as coisas do lixão entre os prédios e fez sua própria academia particular com pesos de concreto e ferro, fora alguns itens de treino escondidos ali.
Tinha algo de errado, deveria ter. Lucas foi muito bem possuído por algum espírito viciado em treino, pois era impossível acatar tão facilmente uma rotina absurda.
Cansado de esperar, Amora pulou de seu esconderijo e caiu no centro de treinamento improvisado. Com sua voz grossa e imponente, ele falou:
— Garoto, o que você está fazendo aqui?
— Treinando.
— Isso eu sei, mas por que? Era para estar dormindo agora.
— Porque eu quero ficar forte e saudável, e porque não consegui dormir mais.
Respostas óbvias para perguntas óbvias. O gato não gostava nem um pouco desse tipo de tratamento, mas como descobrir quem era essa pessoa por trás do novo Lucas?
Encucado, ele pulou em cima da carcaça de um carro velho e observou os movimentos do garoto. Eram treinos familiares, do tipo descrito no manual de Ronaldo.
— Você achou o manual do seu pai enquanto bisbilhotava por aqui, correto?
Lucas imediatamente parou de se mover. Na mosca.
— Ora, eu não imaginava que se interessaria nisso, Lucas… mas receio te dizer que talvez não seja pra você, não no ritmo que está fazendo, pelo menos.
— Cala boca. — Os punhos do garoto ficaram mais cerrados, seus olhos queimavam como chamas. — Eu tô cansado de me sentir um bosta e quero descarregar o que tenho em alguma coisa.
Finalmente uma resposta decente. Aquilo fazia sentido, talvez Lucas tivesse caído na real e estava tentando fazer algo para melhorar sua vida.
Não era o método mais eficiente, mas era alguma coisa ainda assim. Amora voltou ao silêncio conforme analisava o garoto treinar.
Ele suava horrores e ofegava, mas mantinha a postura e o ritmo igual. Pior que isso era notar o quão evolutivo também era, como se a cada execução do movimento, mais perfeito se tornava.
Ele usou isso para admirar um pouco da mente de Ronaldo em ação. Tal pai, tal filho. Os dois tinham muito em comum, e esses lados estavam cada vez mais aparentes.
Amora saiu de cima da carcaça e interrompeu Lucas, que demonstrou uma expressão irritada.
— Se é isso que você quer fazer, então me deixe te ajudar. A última coisa que sua mãe quer ver é seu filho lesionado.
Isso ativou uma memória em Lucas, dos primeiros treinos, onde Amora agiu todo durão e deu uma surra nele. O garoto não reclamou, na verdade agradeceu
internamente.
Agora sim seu grind de atributos seria dezenas de vezes mais rápido.