Farme! Brasileira

Autor(a): Zunnichi


Volume 2

Capítulo 116: Nerds

Lucas ficou de queixo caído. Esse local se assemelhava muito ao seu antigo quarto, com os personagens de anime nas paredes e cores fortes, misturadas ao reboco da parede.

Claramente as partes do castelo que foram destruídas também se referiam aquele quarto, com rachaduras indo quase até o teto.

A cama, uma muito simples encostada no canto, também lhe lembrava a respeito disso. Esse local por algum motivo transmitia uma nostalgia, dos tempos de infância que não precisava se preocupar com nada.

— E-Ei, não fica parado na porta assim! — Lilith o empurrou para dentro e fechou a porta. — Eu não quero que os outros vejam, seria muito vergonhoso saberem dos meus gostos!

— Ué, mas por que? Isso é normal…

— Normal? Em que mundo é normal investir em cosplay dos seus personagens favoritos, colecionar objetos de luxo de uma franquia esquecida, ter livros de romance de uma ponta a outra que… Ah!

Ela tapou a boca rapidamente, corando ao limite. Essa era uma das poucas vezes que a súcubo demonstrava vergonha, pois normalmente seu jeito agressivo era capaz de ocultar esses sentimentos.

Lilith era o equivalente de um otaku no mundo real, porém gostava de manter uma imagem no mundo real, igual a um homem de 30 anos formado que ainda assistia tranquilamente um anime na tv da sala.

Lucas fazia o mesmo, de uns tempos para cá essas coisas ficaram normais na Terra.

— Relaxa, esse tipo de coisa é normal. Tem muita gente que assiste. 

— Mentira! Eu perguntei um dia desses para Aegis sobre “O Invocador Sagrado”, a produção visual mais polêmica do inferno, e sabe o que ela disse? Falou que só viu uma vez na infância e nunca mais! Ah, e não venha me falar dos outros, até mesmo Igibris jamais ouviu falar de qualquer desenho que eu sequer disse! Que vergonha, vergonhaaaa!

Ela andou de um lado para o outro tapando os rostos, com um claro arrependimento de ter aberto a porta para seu amado. Aquilo era o que sempre quis esconder, infelizmente, dessa vez escapou.

— Só… Só sai. Fiquei estressada à toa e te puxei pra dentro depois de ver que entendi tudo errado, mas era para ter escondido tudo, assim você continuaria com a imagem de mim! Droga, eu estraguei tudo… de novo…

Lilith chorou, jogando o rosto contra o travesseiro rosa da cama e apertando-o contra o rosto. Aquela seria uma ótima deixa para sair, ou melhor, na visão de Lucas, a pior.

“Eu também já estive assim antes.”

Essa cena lhe dava dejá vù, de quando chorava noite à dentro e perdia horas de sono na madrugada. Doía mostrar o lado real para os outros, doía ao ponto de arrancar o coração do peito.

Lucas se sentou na ponta da cama, ouvindo os soluços e fungadas em silêncio. Ao invés de esperar, tocou-a no joelho, o que deu um choquinho na moça deitada.

— Eu te conheço tem muito tempo, por que ia me importar de você ser assim? Não é como se eu fosse muito diferente, sabia? 

Lilith tirou um pedacinho da cara do travesseiro. A face estava horrorosa, assim como acontecia com a maioria das pessoas quando soltavam o peso dentro de si.

Ele sorriu de leve, puxando a tela do celular do bolso e scrollando para baixo.

— Saca só… — Ele colocou nas configurações de Tempo de Tela. — Eu sou um viciado nessas coisas junto contigo.

O filtro demonstrava inúmeras horas gastas em emuladores instalados no aparelho, além de aplicativos para leitura de mangás, lightnovels e animes. 

Uma parte considerável da sua vida tinha ido pelo ralo só de usar aqueles aplicativos, uma parte de si dizia que não valeu à pena, ainda bem que naquele momento serviu para alguma coisa.

— Ehhh… o que são essas coisas?

— Ah, esqueci que você não tem celulares lá, mas isso aqui é tudo coisas que me permite acessar coisas para eu assistir ou ler. Saca só, recentemente eu tava lendo isso…

Ele abriu a página principal. Algumas obras estavam em destaque: A Eternidade de Ana, Knight Of Chaos, Guerra O Legado no Sangue e Sputnik Saga.

Ainda tinha muito o que ler, mas pelas barras de progresso, deveria ter passado bastante conteúdo. Depois disso, ele fechou a aba e abriu para mangás, mostrando um monte lidos por completo e outros pela metade.

— Você não é estranha por olhar essas coisas, Lilith. 

— Eu sou sim, o tio vivia falando do meu fracasso…

— Tio? Que tio? 

A súcubo hesitou, seus lábios se moviam como se quisessem dizer algo, uma pena que nada saia. Seu olhar se direcionou para o canto, no caso, a televisão com uma máquina em cima.

Demorou mais um tempinho para encará-lo de novo, com coragem de continuar:

— O meu tio quem cuidou de mim durante os anos. Uns séculos depois, sai da casa dele e comecei a trabalhar de acordo com minha raça de súcubo, só que…

De novo, as palavras travaram na garganta. Era difícil demais de contar. Lucas não ia forçar, já que era uma forma muito sacana de discutir aquilo.

Ele se direcionou ao aparelho encarado e ia estender a mão para encostar, mas foi interrompido no meio do caminho.

— Não pode encostar, é de última edição! Foi uma fortuna eu ter pego e ainda ter vindo comigo! 

— Cer-Certo, mas o que isso é?

— Ora, é um Bhilips CDI, o mais bem sucedido DVD e videogame do mundo inferior! — disse, estufando o peito e se orgulhando igual um vendedor ganancioso. — Se for por as mãos nele, ponha luvas e deixe que eu te mostre!

A animação apareceu repentinamente desse jeito. Lucas suspirou e pôs as luvas de plástico nas mãos, enquanto Lilith se equipou como se fosse realizar uma cirurgia. 

Tanto preparo para tocar num eletrônico parecia meio excessivo, contudo, não fez questões. Se ela estivesse feliz assim, seria melhor do que comentar a respeito de coisas do passado.

Assim, iniciou-se uma longa avaliação de aparelhos estranhos que não existiam na Terra, quadrinhos inéditos e livros escritos numa língua completamente diferente.


*****


Lucas perdeu noção do tempo. O relógio digital com formato de gatinho demoníaco pareceu pular o horário de um momento para o outro, como se o tempo tivesse cortado o tempo.

Cada momento lhe parecia nostálgico, de momentos antigos demais para se recordar, mas que eram vívidos, de quando esmagava os botões no controle e usava pedaços de papelão para dividir as telas.

Por algum motivo, caiu nessa estranha sensação, abraçou tudo sem culpa ou remorso, pouco se importando com os segundos lá fora ou se o céu estivesse escurecendo.

Aquele pequeno quarto tomou sua mente por completo, ainda mais com muitos jogos e uma biblioteca de mangás que nunca ouviu falar — e que infelizmente não conseguia ler.

Pelo menos, Lilith agiu igual uma tradutora, lendo em voz-alta e até fazendo vozinhas para os personagens. Era engraçado, especialmente quando tentava fazer graça.

Ela até mesmo trocou a camisola por um pijama roxo, que de algum modo lembrava um dragão maligno poderoso.

— Hahahaha, não sabia que você gostava desse tipo de coisa! — riu Lucas, tentando aliviar o próprio choque.

— Aff, eu fico com vergonha, para com isso!

— Relaxa, eu também tenho uns pijamas dos meus personagens. Tenho até um do Charmander.

Com o tempo, Lucas revelava também coisas vergonhosas de si mesmo. 

Ele era um otaku, gamer, geek e a combinação de vários outros termos distintos para “nerd esquisito”, mas por algum motivo se sentia bem falando daquelas coisas.

O mesmo ocorria quando, durante as férias da escola, seu irmão Levi entrava no quarto e os dois passavam horas na frente da tv quadrada jogando.

Fazia um tempo que não estava imerso nessas coisas, talvez por causa do treino excessivo e da sua mente focada no mesmo objetivo.

“Na realidade, eu não devia nem tá fazendo isso, mas pra ter a confiança da Lilith, é melhor deixar do jeito que está”, pensou, dessa vez os dois começaram a assistir um filme. — Ei, por que você nunca se mostrou desse jeito pra mim? 

— Porque minha imagem de súcubo é muito importante… e você provavelmente não ia querer ficar perto de mim se me conhecesse assim. — Os olhos dela abaixaram em sinal de tristeza. — Na verdade, você só tá aqui agora porque é gentil. Faz parte da sua alma ser desse jeito.

— Que? Você acredita mesmo que eu só tô aqui pra não te chatear?

— Uhum. Não precisa manter a fachada.

Uma pontada no coração atingiu Lucas. Não gostava desse tipo de preconceito, muito menos fazer com que os outros acreditarem que apenas os tolerava.

Ainda mais, achava impressionante aquela dualidade, de um lado uma demônia do sexo apaixonada e do outro uma garota imersa num mundo de cores e histórias.

— Certo… eu deixo de manter qualquer fachada se me contar o porquê você mantém uma imagem tão diferente.

— Hah. Tá bom, tá bom. No submundo, todo mundo tem uma profissão, um objetivo.

O inferno sempre precisava de pessoas trabalhando — por mais estranho que soasse. —, e cada demônio se empenhava num dever diferente.

Espécies diferentes tinham suas funções quase predeterminadas, e ela nasceu de uma outra súcubo, o que desencadeou numa série de pressões e obrigações.

Seu tio quem cuidou dela o tempo inteiro, plantando os ideais patriotas de como as pessoas precisavam seguir um líder.

— Mas eu nunca quis nada que me mostravam — confessou, inclinando a cabeça para se apoiar no ombro de Lucas. — Eu queria ser diferente, não passar a eternidade sugando a vitalidade de mortais. Uma programadora de demojogos, uma demomangáka, uma demotuber…

De repente, cortou a própria fala. Ao invés de continuar, apontou para um pôster no canto da parede, onde tinha uma moça demônia vestida da cabeça aos pés de maneira exótica.

Era meio indescritível até mesmo sua aparência física, um monte de tentáculos com roupas de colegial.

— Eu queria muito me tornar uma demo-idol! Mas claro, nunca tive talento pra nada, então vivi trabalhando e comprando jogos, ficando sozinha dentro do quarto, que nem agora.

Outra onda depressiva abaixou seu rosto. Lucas achava tudo estranho, além do mais, eram coisas de outro mundo difíceis demais de compreender.

A mensagem, contudo, era plenamente possível de entender. Sua mão tocou na bochecha de Lilith, que agarrou o pulso quando sentiu a quentura encostando na pele.

— Eu sei que é muito idiota e que eu devia me concentrar em outra coisa, que eu devia sair e…

— Cala a boca por um momento, garota.

Os olhos da súcubo arregalaram, espantada pelo esporro repentino. A seriedade nos olhos de Lucas parecia assustadora.

— Quem liga pro mundo ou para os outros dizendo o que você tem ou não que ser? A vida é sua, Lilith, você quem escolhe o caminho a se seguir. Súcubo, diabo, satã, ninguém realmente liga para o que você é, mas para o que você faz. Eu sei que é bom voltar pra cá quando o mundo todo te dá as costas ou quando se sofre pela realidade, mas não adianta a gente tentar evitar, o mundo vai continuar o mesmo se a gente não fizer nada.

Finalmente, uma lágrima caiu da súcubo, mas era feita de sangue preto igual piche. Esse sinal assustador quase deu um ataque do coração em Lucas, mas tendo ido tão longe, devia continuar.

— Escuta, eu não estou de fachada. Os outros apoiarão sua escolha, entendendo ou não. Quando um cai, a gente apoia, porque nos importamos com aquela pessoa, então para de inventar isso na sua cabeça, de que os outros estão mentindo ou que é falsidade. Se fosse mesmo, eu nem estaria aqui! Mas ainda estou, porque me importo contigo.

Lilith afundou o rosto contra o peito de Lucas, não aguentando chorar, sujando a roupa dele com seu choro. Era a primeira vez que ouvia algo assim.

Em centenas de anos, com namorados, namoradas e todo tipo de contato com mortais ou não, ninguém tinha sido tão sincero. Talvez, só talvez, por esse motivo gostava tanto daquela alma pura.

Lucas era uma pessoa com a alma diferente, branca e radiante, diferente da dela que era suja e sombria, e mesmo com tudo isso, ainda era possível encontrá-lo e estarem tão perto um do outro.



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