Volume 2
Capítulo 114: Coração
A cidade continuava movimentada como sempre, coisa que sempre incomodou demais Lucas. Mesmo com um grande repertório de experiências próximas da morte, ele permaneceu fraco a multidões.
Mas nada disso realmente importava, estava ali para dar bastante atenção à quem o acompanhava, uma moça de cabelo prateado e usando um chapéu para esconder as orelhas.
— Solein…
— Ohhh, aquele potinho de batatas queimadas numa substância fervente cheira tão bem.
— Solein?
— Aquele pedaço de pão com carne obviamente falsa, socado até o fim com todo tipo de coisa, também parece saboroso.
— Solein!
— Ai, minhas orelhas! O que foi? Fiz alguma coisa de errado?
— Não, eu tinha acabado de oferecer um espetinho e você não ouviu.
— Desculpa, não dá pra ouvir tão bem com esse barulho todo e com minhas orelhas dentro do chapéu.
Ela pegou o espetinho, cheio de pedacinhos de uma ponta a outra com pedaços de carne dourados. A cara foi icônica, com um par de estrelas brilhando de alegria no lugar das íris cerúleas.
— Lucas, o que é essa coisa na vareta?
— É coração de galinha.
— Saquei… espera, coração de galinha? Que crueldade animal é essa de arrancar a sangue frio o coração de um animal, o órgão mais precioso e especial dele, só pra gente comer?!
— Por que você continua comendo então se é cruel assim?
— Porque é tão gostoso que chega a ser pecado… Urgh, me sinto suja por isso.
A elfa fez um rostinho descontente, mas abocanhou cada pedaço como se não fosse nada. Prestes a chorar ou não, sequer sobrou algo para contar história, e no momento seguinte Solein já estava partindo para outra barraquinha.
Aquele local em questão era uma grande avenida recheada de estabelecimentos com comida, desde os mais caros aos mais caseiros e da vizinhança.
Lucas ocasionalmente ia lá para comer quando estava com fome, porém, com o rigoroso treino e dieta de Amora, acabou nunca mais visitando.
Por causa disso, instintivamente ganhou um peso na consciência sobre o que comer, já que teria que futuramente queimar todas as calorias obtidas.
Solein já estava numa mesa cheia de panelas, e só de ver, o peito de Lucas se encheu de nostalgia. Havia ali creme de galinha, estrogonofe, alface, arroz, baião, enfim, muitas coisas pra um pratinho.
A jovem estava com os olhos cerrados, processando o que era para fazer.
— Como isso funciona?
— Você pega um prato descartável — falou Lucas, separando duas tigelinhas — e coloca o que quer.
— Vai com calma, rapaz, quem coloca aqui sou eu! — reclamou a dona da barraca, tirando a colher das mãos dele. — Esses jovens de hoje em dia, vou te contar.
Depois de sair meio envergonhado, ele só esperou que a tia colocasse todas as coisas que pediu e montou um para Solein já que ela não entendia das coisas.
Os deuses riem da sua pressa.
“Vão rir na casa do cão.”
Você faz jus ao seu sistema.
“Isso foi uma piada diretamente pra mim?”
Sem entender ou não, teve que arcar com a paciência e já começou atacando a comida. A elfa ficou meio receosa de também tentar, levando em conta que nunca mexeu naquela coisa.
— O que é isso?
— É estrogonofe. É apimentado e gostosinho, mistura com o arroz.
— Excrogonofe?
— Estrogonofe.
— Ismogronone?
— Como diabos você conseguiu confundir as coisas assim?
— Eu tenho um dom.
Ele soltou um suspiro e deu de ombros, apenas aguardando que ela terminasse sua refeição antes de continuarem. Naquela altura, começaria a ficar enjoado, mas a outra parecia um buraco negro.
Em seguida, os dois passaram por um cafézinho, onde Lucas escolheu a dedo algumas coisas que faria bem ao paladar daquela moça.
Pães de queijo e tapioca foram deixadas na mesa, com um bloquinho de goiabada no meio da mesa e uma jarra de suco de tamarino.
Com o garfo, Solein cutucou o pão de queijo, estranhando a sua superfície dura.
— Isso é feito de queijo? Não parece.
— Experimenta, é gostoso.
Ela, tentada pela voz da experiência, levou o pãozinho até a boca e deu uma mordida.
— Uai sô, trêm bão e goxtosu
De fato, devia estar tão bom ao ponto de falar de boca cheia sem problema. Lucas era mais fã de coisas doces, como a goiabada, enquanto a elfa preferia algo salgado, devorando até coxinhas que eram oferecidas no café.
Agora, de volta à rua principal, eles pararam em algumas outras barracas que não tiraram tanto o interesse, já que eram coisas que viram antes.
Uma até tinha pizza, mas comer pizza quando o sol não demoraria para alcançar o topo do céu também não era a melhor ideia — claro, ele também preferia não comentar que comer tanto faria mal igualmente.
Eles se depararam com um novo canto vendendo produtos estranhos. Lucas reconheceu de imediato o cheiro e as vestimentas, era algo temático dos sulistas.
— Quero experimentar aquilo ali.
Solein apontou para o banner estendido com “Chimas original direto do Rio Grande do Sul”. Como era algo que ela queria, não viu outra solução além de comprar.
A elfa deu uma chupadinha, ficando meio surpresa com o sabor. Depois de olhar o copo por mais um segundo, decidiu experimentar mais uma vez, e estava surpresa demais com aquilo.
— Bah, isso parece muito com algo que tomei quando guria…
— Acho que deve ser só impressão. Meio difícil de ser do mesmo lugar, né?
— É, tem razão. As pessoas de fora diziam que tinha gosto de grama.
“Esse comentário me parece familiar… hum, deixa pra lá, não consigo lembrar mesmo.”
O passeio continuou igual a qualquer um, mas aquilo estava dando uma impressão diferente. Ele nunca fez isso, especialmente com uma garota, e cada compra lhe fazia questionar se era certo.
A carteira estava cheia, mas gastar de pouco em pouco lhe doía. Talvez devido aos anos de pobreza e por nunca ter ido num encontro, jamais descobriu o preço de bancar um passeio com uma garota.
Tanta caminhada teve seu devido fim, com os dois parando na seita do Sol Nascente. Lucas precisava resolver algumas coisas com os cabeças de lá, e por suas visitas mais ou menos frequentes, as pessoas lá dentro não se importavam tanto com a visita.
No entanto, às vezes mantinham a cabeça abaixada em respeito, e outras acabavam pedindo autógrafos. Não era nem preciso dizer o quanto a última parte enchia Solein de ciúmes.
Os dois seguiram rumo ao elevador, subindo os andares até se encontrarem com Xing Xong tutorando alguns díscipulos que entraram recentemente.
Ele ficou bastante sorridente quando se encontrou com o rapaz.
— Senhor Lucas, que surpresa agradável vê-lo. Em que posso ser útil?
— Olá, Xing, desculpa a hora. Vim perguntar sobre um dragão que vocês mataram no torneio, queria saber se vocês tem a carcaça dele intacta ainda.
— Ah, aquele monstro? Bem, as escamas foram recolhidas e os órgãos guardados, mas os ossos continuam parados porque não encontramos alguém capaz de usá-los… Os preços estão altos.
— Eu quero dar uma olhada nele. Tem problema?
— Nenhum. Você é um amigo próximo meu, do Zhang Zhao e do mestre, sinta-se livre… Ah, só um momento, vou guiá-lo até lá.
Primeiro, Xing escolheu outro instrutor para dar continuidade a aula, enquanto levava os dois ao subsolo onde ficava vários armazens da seita.
Lá haviam diversos itens, pílulas especiais, medicinas voltadas para o cultivo, armas de centenas de milhares anos atrás cheias de maldições ou bençãos absurdas…
Eles foram ao mais fundo possível, onde a carcaça do monstro era mantida sobre uma plataforma de metal. Algumas pessoas tratavam de cuidá-lo.
A habilidade Fluxo foi ativada.
Os olhos de Lucas se concentraram primeiro no esqueleto, que era gigantesco se comparado a si.
A profissão de Caçador liberta alguns segredos ocultos.
Este dragão é um dragão vermelho. Eles lançam chamas da boca e possuem asas fortes para voar.
Comparando dados com bestiário atual. . .
Relação com Leviatã encontrado.
É um primo distante do Leviatã, com a diferença que seus elementos são opostos entre si e também a estrutura corporal foi adaptada para ecossistemas diferentes.
“Então isso tem o mesmo nível de qualidade que o Leviatã? Quer dizer que Hurrto poderia usar para construir uma armadura! Se não me engano, também sobraram alguns poucos materiais dele…”
O rapaz coçou o queixo, extremamente pensativo. Será que ele pedia para usarem os ossos? Mas as escamas já foram levadas, então o que será que daria para fazer somente com os ossos?
Do outro lado, contido dentro de câmaras criogênicas, os órgãos foram mantidos… mas o que chamou sua atenção era o tamanho do coração, quase igual ao de uma galinha.
Assim era melhor, Lucas já estava pensando em como colocar coisas de tamanho colossal num liquidificador tamanho XXL para moer tudo numa única poção.
Por outro lado, a elfa ao seu lado estava com saliva caindo da ponta da boca e suas mãos tremiam. Não precisou sequer ler sua mente para entender o quanto ela queria lamber o vidro e comer aquilo.
Outra vez, seus olhos se voltaram ao esqueleto, querendo entender como faria para levá-lo.
— Por um acaso está interessado em pegá-lo para o senhor? — indagou Xing, aproximando-se igual um fantasma.
— Que? Cla-Claro que não, eu nunca seria ganancioso a esse nível.
— Ora, não se preocupe tanto, pode levar. Só queremos algo em troca, obviamente…
— Eu sei que vocês nunca receberiam de graça, mas o verdadeiro motivo pelo qual vim aqui não foi por isso, é sério.
— Então qual seria? Estamos abertos para qualquer demanda ou pedido desde que venha do senhor.
— Queria levar o coração e também saber se vocês tem posse ou conhecem algum portal contendo dragões. Não precisa ser necessariamente do mesmo nível desse, só precisam ser dragões.
O chinês ficou boquiaberto, com um rosto complexado querendo entender o que diabos ele queria dizer.
Até onde os conhecimentos linguísticos de Lucas iam, não falou nada complexo demais, mas a falta de conhecimento nos portais e nas políticas dos raiders era grande demais para se tocar.
— Be-Bem, acho que posso ver. Quantos exatamente você gostaria de verificar?
— Queria encontrar quatro dragões no máximo. Os outros órgãos e o esqueleto não me importam muito.
— En-Entendo… apenas para perguntar, senhor Lucas, você enfrentou um dragão antes?
— Hã? Acho que sim, mas já faz uns bons meses.
Xing Xong ficou meio desconcertado de falar alguma coisa, então acenou com a cabeça várias vezes ao invés de questionar mais qualquer coisa.
O coração foi separado numa caixa, contido com cuidado para ser levado, enquanto o esqueleto seria uma situação mais complicada.
— Como lhe disse, não temos alguém para quebrá-lo ainda.
— Hmmm… você se importaria se eu chamasse uma pessoa pra resolver isso? Só faltariam as ferramentas pra ele, mas acho que dá conta do trabalho fácil.
— Oh, o senhor poderia? Nós aceitaremos com uma grande felicidade!
Lucas deu de ombros, fechando o acordo na mesma hora. Talvez seria bom levar toda a trupe para o mundo real, já que três saíram de qualquer forma.
Ainda poderia acontecer de rolar alguns problemas devido a personalidade exótica demais daquelas pessoas, mas era um risco a se seguir.
Resolvida essa questão, era hora de voltar para casa. O céu escureceu bastante, com os carros indo de um lado para o outro em alta velocidade e a luz dos postes iluminando tudo.
Solein estava meio esquisita desde que começaram a andar, seus olhos piscavam bastante e ela constantemente colocava as mãos nas orelhas.
Lucas reparou nesse comportamento estranho. Sabia que elfos não se davam muito bem com sons, seus sentidos eram meio sensíveis, ela só passou muito tempo disfarçando.
Você abriu a Loja dos Heróis
Protetor Auricular
Protege as orelhas contra sons altos. Por que você compraria isso?
Gastou poucas moedas e um par de borrachinhas se materializou na mão. Ele tratou de colocar os dois nos ouvidos da elfa, que por um momento tomou um sustinho e demonstrou um certo alívio.
— Isso deve dar uma ajuda. Vamos pra casa.
— Não consigo ouvir nada de você, Lucas, mas com certeza eu
devo concordar!
Uma risada saiu de Lucas, que tinha se divertido horrores naquele encontro estranho que lhe custou um rim.