Volume 2
Capítulo 107: Temores
Era impossível dormir.
A mente de Lucas, mesmo que cansada, ainda processava as informações e criava as mais diversas paranoias. Contar ovelhinhas, meditar, ler algo, nada funcionava para desligá-lo.
Ele se levantou da cama em direção a cozinha, onde fez um achocolatado com leite quente, levando seu corpo pesado junto a bebida para a varanda de casa.
Aquela casinha, localizada num lugar bem distante da cidade grande, mostrava uma paisagem agradável para a noite. Não estava escuro demais, mas nem claro demais.
A lua e as estrelas traziam brilho o bastante para ver o ambiente, enquanto o farol em formato de cidade no horizonte entregava um certo conforto.
Essa paisagem era boa de ver, muito boa. Lucas não se arrependeu de comprar a casa oferecida pela seita, pois era uma das melhores decisões que já fez.
Dali, dava para valorizar e ver muitas outras coisas da qual não conseguiu antes, tal qual o céu e a calmaria da vida, longe do som de buzinas, dos gritos de um motorista furioso e até evitar motoqueiros em tempo de atropelá-lo.
Após um curto gole do achocolatado, que inclusive quase queimou sua garganta por ter bebido cedo demais, ele se sentou numa cadeira.
Sentia-se igual um velho, sua alma era assim, mas não dava para evitar. Uma pena que com tudo isso, ainda não teve nenhum lapso de calma.
“É por causa das coisas do patriarca. Eu queria apagar esses pensamentos, mas não tem como evitar…”
Lucas tinha uma complexidade de sentimentos. Medo, ansiedade, excitação, uma mistura caótica que pendia para coisas ruins.
Sua excitação vinha de treinar mais e mais, porém era sobrepujada pela ansiedade e o medo de morrer novamente. Sabia que se morresse, tudo seria jogado fora.
Ele podia voltar com um benefício ou outro, talvez até negociar com Moon, seu parceiro naquela porcaria, para adquirir umas coisinhas a mais… porém as coisas ainda iriam por ralo abaixo.
Quanto tempo se passou para chegar naquele nível? Meio-ano? Ninguém foi tão longe nesse espaço de tempo, porém, se considerasse o tempo gasto dentro das outras dimensões, isso talvez dobrasse.
Possivelmente sua data de aniversário tinha se desalinhado com o mundo real, o que era uma pena, pois quando comemorasse o aniversário, estaria na verdade na data errada se levasse em conta o corpo.
Coisas assim eram engraçadas de reparar, mas sempre retornava com o “e se” sobre morte. Sua mãe, Amora, seu irmão, Viviane e quaisquer outras pessoas que conheceu teriam zero noção do acontecido.
Ele seria esquecido, seus momentos felizes apagados para residir somente em sua memória… Ao menos, outras pessoas não esqueceriam disso, quem sabe.
Hurrto, Solein, Lilith, Igibris, Philomeu — os outros no Lago Congelado ainda o conheceriam, desde que a tela não mentisse.
“Mas a mãe…” Ele suspirou, poderia ser legal manter essas coisas com certas pessoas, mas do que adiantava se aqueles mais especiais esquecessem?
Sua mente retornou ao embate contra o leão. Lá, ele só venceu com a ajuda daquelas duas, sabendo muito bem que perderia se tivesse ido sozinho.
Olhou para a mão, que tinha leves tremores na pele. Este era o custo de abusar muito de seu corpo e querer quebrar limites. Amora foi muito claro o quão perigoso era usar uma porcentagem acima do que se podia controlar.
Ele conseguia ir até 50% com poucos danos, mas dali em diante seu corpo se deterioraria, por isso ficou todo rasgado ao tentar utilizar 80%.
Fluxo
Rank: C
Efeito: Ajuda a canaliar a energia do usuário, tornando suas habilidades e movimentos mais eficientes que antes. Absorver uma grande quantia de energia mental para ser usada.
Essa coisa era treinada até em seus sonhos, então Lucas não perdia um segundo do dia. Não tinha descanso, só treino e treino e treino.
Preferia que fosse assim, estar no máximo de eficiência mantinha sua cabeça satisfeita e também o deixava preparado para qualquer crise.
Como da vez que o portal quebrou perto de seu irmão Levi, ou quando teve que enfrentar a abominação dos elfos, ou quanto lutou contra Igibris.
Ele tinha que estar pronto para uma crise, não importava o que.
Outro gole no achocolatado afugentou algumas pertubações. Doces funcionavam muito bem para acalmá-lo, uma pena que mais tarde isso custaria um tempo no banheiro.
— Heh, é estranho pensar que cheguei até aqui…
— Concordo, meu amor.
A voz deu calafrios em Lucas. Só tinha uma pessoa que lhe chamava assim, e ter que virar a cabeça para vê-la por cima do ombro era algo que não queria fazer, ainda mais tarde da noite.
Lilith estava bem ali, seus olhos roxos quase se camuflavam na escuridão, mas mostrou-se o bastante para chamar atenção.
Ela estava com uma camisola semitransparente, que dava para ver todas as suas curvas. Pior ainda, ela podia mudar de roupas naturalmente com magia, logo era pouco importante o que iria usar.
Lucas engoliu seco e corou um pouco, escondendo o rosto. A vista era boa, mas como um cavalheiro, evitava encarar para não envergonhar outra pessoa.
No entanto, a súcubo largou um sorriso danado de orelha a orelha, gostando daquela reação. Ela caminhou na direção dele, suas mãos rastejaram pelas costas em direção ao abdômen e subiram para o peito.
— O que você faz aqui fora sozinho, querido? — perguntou, ficando na ponta do pé para alcançar o ouvido. — Por acaso, estava só se preparando para invadir um dos nossos quartos a essa hora? Estava bolando um plano para dominar uma de nós, hã? Eu sei que até homens puros tem os mais maliciosos desejos… ~
— Nã-Nã-Não! — Lucas rapidamente se desgrudou do aperto e deu alguns passos para o lado, evitando as mãos ardilosas daquela mulher. — Eu só estava pensando, só isso! Pensando!
— Hmmm… pensando, né? Pensando naquelas coisas, sim?
— Por favor, não foi isso… Argh… — Ele passou a mão pelo cabelo, tendo que revirar os olhos. — Independente do que eu diga, você ainda vai ficar com essa cara para cima de mim e pensar besteira…
— Claro, você me conhece bem, meu amor!
Lucas conteve uma risada. Ao menos a presença dela tirou sua cabeça das coisas ruins, forçando um suspiro a fugir pela boca e seus braços se recostarem na varanda mais uma vez.
Ele olhou para cidade ao longe, a súcubo seguiu seu olhar com curiosidade. A cidade estava de fato bonita daquele ângulo, seria romântico se um não estivesse de pijama e a outra de camisola.
Na verdade, ao invés de romântico ou com uma tensão sexual no ar, tinha um ar reflexivo. Isso tudo se dava ao excesso de silêncio por parte de Lucas.
Ele não era assim, Lilith sabia de sua personalidade por ter estudado de longe. Ele conversava, xingava e até mesmo gaguejava bem muito.
Era uma pessoa desajeitada, mas alegre, ativa, cheia de vontade para ajudar.
— Hah, já bastou Solein lá atrás… mas como sua amante, tenho que me importar com seu estado mental. O que está passando na sua cabeça agora, meu amor?
— Nada, não é nada.
— Quando alguém diz “Nada, não é nada”, está mentindo. Você não deveria mentir para mim, vai corromper sua alma.
— Sério…? — Depois de inclinar os olhos na direção da moça e vê-la afirmando com a cabeça, Lucas abaixou os ombros e confessou: — Estou pensando só como tudo isso que obtive pode sumir fácil.
— Só isso? Pensei que era na morte de alguém… mas por que isso te incomoda tanto?
— Porque não quero perder essas coisas. Me esforcei muito, muito mesmo, eu mereço isso.
— Meu amor, não pode ser tão apegado a tudo. Uma hora as coisas vão embora e não podemos fazer nada quanto a isso. — A mão da súcubo encostou no braço de seu amado. — Pense bem, você não é imortal, as coisas ao seu redor também não são. É impossível que elas durem para sempre, e se durassem, você não seria quem é agora.
Aquele conselho pesou em sua cabeça. Desde quando Lilith era tão bom em sermões? Quer dizer, ela era uma súcubo, então ser bom com palavras fazia parte de seu currículo.
No entanto, ir longe ao ponto de até conseguir falar algo assim ia muito longe. Era como se ela já fosse acostumada a esse tipo de coisa.
— Onde você aprendeu a ajudar os outros assim?
— No inferno, enquanto eu fazia meus serviços como súcubo e era invocada, diversos seres demonstravam o mesmo tipo de jeito que você agora. — Aquilo soou meio ofensivo, era como se quisesse dizer que era um fracassado. — Eles normalmente realizavam isso por estarem frustrados com a vida e partirem de um jeito “gostoso”. Era normal escutar seus lamentos.
— Que estranho, muito estranho. As pessoas que te invocavam se apresentavam assim?
— Bom… jovens frustrados com a vida, mulheres que perderam sentido da vida, senhores querendo que a morte viesse logo. Tratei todos eles. Aliás, tem uma profissão neste mundo que tem uma função semelhante a minha, não é? Se chama… psi… psiquo…
— Psicólogo, mas diferente de você, eles não matam e fodem o paciente.
— Que chato. — Ela fez beicinho, até que repentinamente uma lâmpada se acendeu na sua cabeça. — Eeiii, não quer me pagar por ter te ajudado, já que fui sua psicóloga? Eu queria meu pagamento de outra forma…
— Eu tô de boa, e você deveria ter pedido uma recompensa no começo ao invés de agora.
Lilith revirou os olhos, descontente. Após mais alguns momentos de silêncio, Lucas enfim ganhou um sorriso, o mal-estar se esvaiu como um balão sendo solto.
— Haha… hahahahaha!
A súcubo levou um susto daquela risada repentina. Seu coração quase ia pular pelo peito por tamanho susto, ela segurou um tapa apenas porque gostava daquela pessoa.
— Obrigado — disse Lucas, seus dentes pareciam radiantes de tão grande que seu sorriso ficou. — Você me ajudou muito, sério.
Lilith emudeceu. Aquela alma estava radiante, brilhando com sua pureza ao infinito. Sua paixão inicialmente veio da força, mas com o tempo, ela aprendeu a admirar seu brilho.
Diferente dos demônios, que possuíam malícia e uma alma negra, a de Lucas parecia como o sol. Seu desejo inicial foi de manchar essa luz, mas como faria isso quando até seu coração tremia?
Ela, de todas as pessoas, era a mais corrompida e maldosa possível, mas sua verdadeira natureza se ofuscava perto daquele jovem. Por centenas de anos, ela governou e pisou nas pessoas que buscavam o prazer.
Pela primeira vez, Lilith se viu desejando o prazer para si. Queria aquilo, o conforto dos lábios que entregava aos outros, queria tudo o que ofereceu aos mortais.
Seus lábios pareciam secos, o tempo pareceu congelar, e como se fosse instinto, Lilith segurou o rosto de Lucas com força e o beijou sem lhe dar um momento para pensar.
Ele infelizmente perdeu sua reação. Aquele beijo foi igual o de Solein, mas muito mais intenso, como se seu corpo incitasse cada uma de suas células para aproveitar o momento.
Lucas permaneceu quieto, e Lilith continuou atacando sua presa como nunca, aproveitando o sabor do beijo o quanto podia.
Em dado momento, os dois se separaram por falta de ar. A expressão da súcubo era diferente, alguém com olhos vidrados e arregalados, em que se focavam somente nele.
Quanto a Lucas… era difícil dizer. Ele se sentia quente, mais do que nunca, uma gota de suor desceu pelo seu pescoço enquanto trocava olhares com a mulher à sua frente.
Ela era imensamente atraente, mesmo os chifres e a cauda em formato de coração não tiravam nenhum ponto da sua beleza, na verdade realçavam mais os traços delicados do corpo.
O dedo de Lilith traçou linhas do pescoço ao peitoral de Lucas, suas iris roxas ganharam tons vermelhos que pintavam uma cor rosa pelo olho.
Sem mais nem menos, ela o puxou consigo, subindo as escadarias rumo ao quarto, onde uma longa noite os aguardava diante das estrelas.
Nunca que o sono de Lucas demorou tanto para vir e que seu corpo ficou tão energizado quanto naquele momento.