Volume 1

Capítulo II: Submundo de Tóquio

Ela era uma divindade, uma das doze que acreditavam ordenar o seu mundo. Se só isso não fosse o suficiente, o fruto de uma antiga oferenda abriu um mundo para explorar que ela jamais imaginaria.  Ela começou a andar e não dava conta das perguntas que vinham à sua mente. Seguiu por uma estrada asfaltada que ligava a uma e perguntou: “que tipo de calçada é esta que é perfeitamente lisa e limpa?” 

 

Ela também não entendia o que aqueles homens diziam e até fez um esforço para compreendê-los quando se deu conta que também era uma deusa da inspiração. Kuria parou, se concentrou e logo as palavras deste novo mundo começariam a lhe fazer sentido. Ela possuía tantas habilidades e vivia a tanto tempo que às vezes esquecia do que era capaz.

 

Logo surgiu uma situação em que seria necessário o uso dessa nova língua ou melhor o japonês, pois vinha em sua direção pela estrada uma camionete Toyota e este seria seu primeiro choque neste mundo maior até que o idioma. “Maior e mais rápido que uma carruagem e também mais barulhento” ela pensou.

 

A estrada estava tranquila e o dia calmo (poderiam ter sentindo o breve abalo sísmico por causa do vórtice caso passassem mais cedo, mas terremotos são corriqueiros no Japão eles não se importariam). Nesta camionete havia um grupo de jovens que não perderam tempo em parar o veículo e oferecer carona para a visitante de outro mundo. 

Kuria sorridente aceitou, deve ter sido confundida com alguma viajante russa que se perdeu. Ela perguntou aos jovens para onde eles iriam e eles responderam que estavam seguindo para Tóquio a 223 kms mais para ao sul, comentaram que iriam pegar a Tōhoku Expressway e ela parecia interessada nisso.

Agindo de forma dissimulada, Kuria foi perguntando tudo o que podia aos jovens que a levavam para Tóquio. Perguntou sobre o governo, clima, diferentes povos, comércio, costumes e tudo o mais, parecia uma criança de tão inocente aparentava.

Para aqueles que lhe deram carona ela parecia ser alguém que acabara de sair de algum confim do Extremo Oriente Russo, vai ver os garotos pensam, ela era de algum vilarejo costeiro de Kamchatka, quem sabe das Kurilas ou Sacalina, ilhas que em um passado não tão distante, pertenceram ao Japão.

Assim ela soube que Tóquio era a maior cidade daquele país e uma das maiores deste mundo, por ser tão grande e populosa a cidade reunia todos os tipos de pessoas. Um dos rapazes disse que lá tinha lugares onde lindas garotas dançavam e prestavam seus “serviços”. “Um lugar de loucura e prazer...” ela pensou. Depois de divagar sobre isso ela se dirigiu aos rapazes e disse:

— O que esses belos garotos acham de levar essa moça para uma noite de diversão?

— Parceiro, o que você acha? —Perguntou o motorista para o amigo no banco do carona.

— A vida é uma só!!!! Vamos brindar nossa nova amiga. —Berrou um rapaz no banco de trás.

— Então vamos...para onde? —Outro rapaz perguntou.

Kuria observou que um rapaz ao seu lado estava com um tablet, ela não poderia imaginar o que era, o que não a impediu que olhasse fascinada as imagens de vários lugares de Tóquio enquanto o rapaz buscava ver os locais que ele ou seus amigos poderiam conhecer ou visitar. Ela então abruptamente simplesmente tomou o objeto gritando:

— Dê- me este quadro mágico! Aqui! Aqui é aonde quero ir e nós iremos nos divertir!!!

— Sério? Amigos hoje está se tornando um dia louco, bem vamos então. Teremos muitas histórias para contar pelo visto. Disse o motorista.

— Tem certeza, está moça quer ir para Kabukicho. 

O espanto tinha uma razão, pois o local escolhido por Kuria era justamente o distrito de Tóquio famoso pelos bordeis, casas de massagem e locais de divertimento adulto.

— Eu sou a deusa do prazer, loucura e inspiração, qual tipo de lugar seria mais digno de mim?!!! —Kuria já ficando visivelmente nervosa insistiu.

— Vamos então! —Todos os rapazes concordaram em uma só voz.

Finalmente eles chegaram a Tóquio, já era de noite e logo foram para o famoso distrito, onde se localizavam bordeis e outros lugares do tipo. Eles podiam escolher qualquer lugar, havia vários estabelecimentos de nomes bem diferentes e chamativos, nomes que faziam referências a cultura pop e animes/mangá, mas de uma forma apelativa ou explícita. 

Por serem tantos lugares, ninguém do grupo se deu o trabalho de registrar o nome do local onde entraram. O que se sabe é que Kuria via aquele distrito com uma naturalidade de quem só alguém como ela teria. Ela vislumbrava as tecnologias e as construções, ela estava tão curiosa e ao mesmo tempo habituada que nada poderia assustá-la. 

Ela não se assustou nem mesmo em estar em um veículo que não precisou de animais e fez em pouco tempo uma viagem que os mortais do seu mundo levariam dias. Nem com construções mais altas que os maiores castelos. Nem com ruas que tinham mais pessoas que os maiores exércitos que ela viu na sua longa vida. Nem com objetos cruzando os ares, um sacrilégio, pois os céus são de domínio exclusivo de poucas criaturas aladas e das divindades.

Por que não se assustou? Porque estava na verdade fascinada, estava fascinada porque não importava o tão poderosa que fosse, vivido o tanto que viveu, muito mais que qualquer humano e mesmo assim com uma beleza capaz de fazer seus devotos prometerem a vida. 

Ela estava ela ali como uma criança, que não tem tempo para se preocupar e sentir medo, a curiosidade o fascínio atrai sua atenção, estava em uma cidade que apesar de grande e cheia como um formigueiro reunia uma parcela mínima da população desse mundo, quantos tantos outros lugares como Tóquio haveria de existir ela pensou consigo. 

Com seus amigos entrando em um bordel qualquer com lindas garotas em trajes provocantes que dançavam nas pistas ou servia bebidas, a maioria parecia orientais, mas se souber olhar atentamente um visitante veria garotas de todos os cantos do mundo.

Para seus “amigos” que ofereceram uma carona em Fukushima, aquilo era um paraíso de excitação, bobos como qualquer jovem vendo aquelas moças usando todo tipo de fantasia, oferecendo uma noite de amor e loucura por um maço grosso de notas de ienes. 

Mas Kuria não via nada demais nisso, ora ela era a divindade da loucura, prazer e inspiração, que isso seja gravado nestes registros. Sentimento puro e sincero pelo prazer, pela energia que cobre cada um, isso é o que a movia, observando tudo à volta com um brilho inocente, esta fauna, as danças, o gesto e a lasciva, nada escapava de seus olhos. 

E também todos observam a deusa, seja frequentadores locais, turistas, empresários, estrangeiros vindos a trabalho, todos observam, pois ela tem uma beleza que mesmo entre tantas jovens, ocidentais e orientais, trazia um ar exótico e novo, nunca visto e por isso em meio aquilo tudo ela se destacava.  

Há quem compararia seus belos cabelos com uma certa protagonista de um velho e muito popular seriado de TV de fantasia cujos fãs até hoje se encontram aos montes. E a loucura dos que a viam quando ela subia na pista com toda naturalidade dançava e seduzia? Pois Kuria se sentindo integrada naquele ambiente também participava totalmente entregue. O que poderia ser dito? 

Até mesmo o gerente que inicialmente estranhou, pois nunca tinha visto alguém parecido, depois começou a acreditar que era uma das recém-chegadas meninas do estabelecimento. Teus patrões devem ter trazido e ninguém lhe falou nada. 

Este homem era de um olhar vigilante, possuía cabelos cortados retos, terno e gravata impecáveis, sua função era de zelar pelo divertimento e satisfação de seus clientes. Como um supervisor de uma linha de montagem, cobrava e exigia desempenho de suas “funcionárias”.

Enquanto ela se divertia extasiada, aqueles rapazes que tinham encontrado-a, acabaram percebendo no ambiente alguns mal-encarados e vendo que Kuria estava bem à vontade como se fosse parte daquilo, viram que sua missão havia terminado e resolveram sair dali. Assim eles continuaram seu rumo com mais uma história para contar.

O motivo que fizeram os rapazes saírem é que este inferninho onde estavam era como tantos outros que existiam, comandados pela Yakuza a temida máfia japonesa que entre suas práticas além de negócios da indústria adulta, também lidavam com tráfico de pessoas, principalmente mulheres. 

Estas mulheres vindas de países pobres ou regiões empobrecidas são atraídas por promessas fáceis de emprego, um suspiro para situação miserável e difícil que se encontram (também muitas fogem da violência assim os países em guerra civil se tornam “bons” locais para se aliciar jovens). 

Nem sempre os “empregos” oferecidos são na área de entretenimento adulto, muitas vezes essas garotas são atraídas por propostas de emprego como babás, secretárias, agentes de turismo entre outras atividades.  

Sobre sua formação ou educação, essas moças eram relativamente bem instruídas,dado que em vários destes países pobres por causa da enorme quantidade de grupos étnicos distintos e a influência das antigas potências colonizadoras, faziam com que muitas dessas mulheres acabavam sendo fluentes em inglês, francês e também em ambos os idiomas.

E essas moças que dominam mais de um ou dois idiomas quando chegam são transformadas em acompanhantes de luxo e servem a clientes Vips como empresários ou dignitários estrangeiros vindos a trabalho ou turismo.

 

O esquema nefasto e até simples consistia em convencer estas moças desesperadas a aceitarem a entrar de forma ilegal no Japão, por várias rotas. Por serem ilegais é como se elas fossem “cidadãs fantasmas” e a defesa de seus direitos se tornava algo muito complicado, pois uma vez no país elas já estão cometendo um crime podendo ainda mesmo assim sem saber serem incriminadas em outros delitos o que tornava um instrumento de chantagem por parte de seus captores.

 

E quando chegavam ao seu destino, elas eram comunicadas que possuíam uma enorme dívida decorrente de todo o processo de imigração clandestina e somando a dura realidade como imigrante ilegal como a dificuldade de aprender a língua local, acabava quebrando qualquer orgulho, somando às ameaças dos agenciadores a submissão é total. 

 

Agora essas mulheres que antes de serem traficadas tinham uma vivacidade, agora vivem em um estado permanentemente de torpor, embriaguez, como zumbis. A elas haviam as seguintes opções: ou se integravam à fauna de predadores que as trouxeram aqui fazendo com outras, o que já lhe fizeram movida apenas pelo desejo puro de sobrevivência, ou se deixavam sucumbir definhando a cada dia.

 

Somando-se as estrangeiras, havia as mulheres japonesas que tentaram a carreira como modelo, estrela pop ou até como atrizes pornôs que no duro processo para fazer sucesso ficaram pelo caminho e acabaram de várias formas neste mundo. Poucas estão lá por desejo próprio e tem total controle sobre suas vidas sendo presas tão fáceis quanto as que vêm de outros países.

 

Todas essas histórias ao fim da noite iriam chegar a Kuria por meio das garotas que ali trabalhavam. A deusa até então achava que as outras garotas eram como as sacerdotisas dos templos dedicados a ela, espalhados por toda a Mesogéia. Elas escolheram, Kuria imaginou dedicar suas vidas à prática divina da loucura e do prazer. Não era bem assim...

Pode-se imaginar a fúria que ela logo sentiria depois de ouvir esses terríveis relatos. Ora para uma Duocoteseo, o uso forçado de um atributo sagrado como o prazer se torna ofensa grave e não faltam relatos ou lendas do que a sorte que os deuses reservaram a esses infelizes que cedo ou tarde sempre conheciam o destino que era lhes dado e aqui neste novo mundo a história não seria diferente. 

As outras garotas em seus quartos (verdadeiros alojamentos) quando chegavam para descansar tinha olhares que variam do desânimo a alienação, algumas estavam tão acostumadas com suas vidas que relataram o inferno que viviam com uma naturalidade perturbadora.

Uma ou outra tinha uma esperança mínima que permitia seguir em frente e tinha até quem agia movido pelo instinto de sobrevivência de forma egoísta capaz de prejudicar as colegas e prestando favores em troca de posições mais altas ou uma situação um pouco mais confortável.

O prazer é algo sagrado. Há gerações em toda a Mesogéia, vários povos prestam alguma reverência. A prostituição é comum, pois não há pecado em buscar o sustento proporcionando o prazer. Errado, falta grave contra a natureza é forçar alguém na obtenção do prazer e lucrar em cima disso, qualquer ganho vindo disso é maldito. 

— Meu irmão Doriaskipida onde estás, eu preciso da tua ira, dê-me tudo. —Kuria pensou como se estivesse rezando.

Ela ouve uma voz firme na sua mente:

— Irmã, o que queres de mim?

Essas divindades podiam ser invocadas pelos seus adoradores ou entre elas mesmo, a resposta dependeria de alguns fatores como a distância e a conexão entre invocador e invocado. Uma vez que a conexão fosse forte como entre estes irmãos a comunicação era rápida e fácil não importava em que ponto do cosmo estivessem eles. 

— Falta grande alguém lhe cometeu, eu acredito, correto?

— Irmão estes homens por baixo deste ambiente de prazer forçam as mulheres a fazer aquilo, a Falta, transpiro de ódio ao pensar nisso. Profanaram o prazer!

— E precisa do meu dom? Acredito que sua ira irá dar o castigo justo a estes vermes, o que faz longe de casa? É o que imagino? Foste a um novo mundo? E se os deuses deste lugar moverem a guerra contra nós?

— Irmão até agora nenhum deus me procurou, se fossem iguais a nós já teriam percebido minha presença e mesmo que existam irão concordar com o que eu agora farei.

— Então faça! Você não precisa de mim.

Ela então após contatar seu irmão o deus da guerra, elaborou a justa punição que deveria aplicar.

Kuria deu então para si dois dias onde ficou observando cada movimento daquele bordel. Ela logo descobriu que ocasionalmente, algumas garotas iam até o escritório onde em troca de algo, “prestava favores” aos chefões da máfia. Essa seria a oportunidade perfeita imaginou. Enquanto isso agia como se fosse só mais uma, até o olhar vazio imitou estava perfeitamente “integrada” naquele meio.

Chegou então o dia, o dia em que pela primeira vez os mortais do nosso mundo iriam ver que não são capazes de escapar da ira dos deuses de um mundo completamente novo. Quem imaginaria que aquela “russinha” de olhar, andar e vestir provocante iria escrever uma página dos vários contos de mistério deste mundo, algo que logo seria considerado uma lenda urbana, fonte de controvérsia, sem provas, ou será que não?....

 



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