Epopeia do Fim Brasileira

Autor(a): Altair Vesta


Volume 7 – Arco 5

Capítulo 124: As Engrenagens se Desenvolvem

Novamente envolvido pelo espaço incolor, sem céu, terra ou vida, o rapaz despertou.

Flutuando a exemplo de todas as outras experiências naquele lugar, pegou-se enclausurado no vazio da própria mente.

A pontada de dor sutil tomou o braço esquerdo, justificada pela profunda cicatriz avermelhada.

Ia de um pouco abaixo do punho, na região posterior, até a proximidade da articulação do cotovelo.

Levantou o membro a fim de apreciar a marca, permanente até o fim de sua vida a partir de então.

Tal imagem o relembrou do objetivo motriz para a visita de mais de dois meses ao templo das Nove Musas.

“Será que tudo deu certo?”, a indagação ecoava no subconsciente.

Ainda não podia ser dito se o procedimento de recuperação estava concluído. 

Contudo, a questão da lucidez devaneadora, de volta àquele âmbito, levantava as dúvidas de sempre.

Talvez fosse hora de deixá-lo de lado em prol do despertar.

O cenário passou a embaçar gradativamente, comprovando a adjacência com a retomada de consciência no lado de fora.

Quando tudo parecia caminhar para a fuga do plano imaginário, uma sensação arrepiante lhe cutucou as costas.

O giro foi tão rápido que mal pôde sentir.

As sobrancelhas ergueram-se em puro instinto defronte à figura que menos desejava encontrar.

A singular sombra, indecifrável a alguns metros, o encarava sem olhos e sorria sem boca.

E diferente das vezes anteriores...

Vá...

Uma voz ecoou dela.

Siga em frente...

O rapaz conseguia enxergar um tipo de movimento na face, ao mesmo tempo que o timbre carinhoso murmurejava contra seus ouvidos.

Tentou caminhar na direção dela, mas a falta de solo trouxe a falha em avançar.

Moveu o corpo, desesperado, na busca por aproximar-se a todo custo.

Rangeu os dentes, executou braçadas desesperadas contra o vazio. Mesmo se encontrasse um modo de seguir em frente, jamais a alcançaria.

Não naquele momento...

A angústia o levou a entoar:

— Quem é você!? ‘Pera! Eu...!!

Incapaz de completar, experimentou os ossos dos dedos esticarem ao limite.

Tudo para ser arrastado de volta à escuridão.

— Ah! — O jovem quase saltou da cama.

Com intensos arquejos, abriu os olhos de forma brusca. Percebeu o braço canhoto esticado na vertente do teto; a mão aberta, como se buscasse tatear algo.

Deu-se conta, após alguns segundos, de que realmente queria fazer isso. Ao menos no mundo dos sonhos.

De volta à realidade, tratou de controlar o fôlego perdido.

Virou a palma defronte o rosto. Diferente do cenário intangível, a inteira extensão do antebraço estava coberta por ataduras.

E em destaque, amarrado no pulso, o laço escuro de sua amiga precedia as faixas contínuas.

Retomada parte do equilíbrio emocional, foi dominado por memórias afetivas da dona daquele acessório, o suficiente em prol de sobrepor a inédita experiência enigmática.

Só naquele instante fez ideia de o quanto era reconfortante pensar nela.

— Será que ela já acordou...? — murmurou.

O que sentia era saudade.

Saudade de vê-la, de tocá-la e de ouvi-la.

Sequer podia cogitar as circunstâncias nas quais se encontraria caso ela tivesse despertado enquanto estava longe.

Descansou a mão na altura do peito, capaz de sentir os batimentos cardíacos, agora mais comedidos.

Passada a turbulência, procurou remeter aos acontecimentos durante o processo de recuperação.

Um célere vislumbre devolveu a tensão às sobrancelhas erguidas. Como se não tivesse noção do tempo, o desejo de se apressar lhe puxou a se erguer.

Mas no exato átimo da reação, o rangido da pequena porta o interrompeu.

Passou por ela a figura daquela que mais desejava encontrar atualmente: a própria Urânia, a Astrônoma.

Ao encarar a posição acuada da mulher, não encontrou palavras exatas a fim de se dirigir.

Para piorar, a anfitriã também congelou na passagem, tanto em postura quanto em objetivo.

Conseguiu recuar dois passos e puxar a estrutura de metal contra si.

Com a timidez aflorada, escondeu-se na fresta sustentada pela mão estremecida e empurrou a voz afônica da garganta:

— V-vejo que está com disposição...

— Ah... eu só...

Pego desprevenido pela fala dela, Damon desviou o olhar.

Com o primeiro contato estabelecido, a musa esgueirou-se um pouco mais pela entrada, corajosa a fim de prosseguir:

— Os procedimentos de recuperação... foram um sucesso. — As palavras dela trouxeram a atenção do garoto de volta. — Porém, eu e a irmã Calí queríamos... confirmar se não restou qualquer sequela em seus canais vitais. Assim que puder..., se não for pedir muito... vá até o salão de treinamento, está bem?...

Preenchido por uma ligeira dose de alívio, o apóstolo suspirou:

— ‘Tá. Já dou um pulo lá.

— Certo... Te vejo em breve, então.

Urânia fechou a porta.

Sozinho de novo, o olimpiano se empenhou para processar todas as informações, mesmo que ínfimas até então.

Voltou a fitar a palma, dessa vez a dominante.

De todo modo, não obtinha sucesso em recobrar quaisquer fragmentos do respectivo evento.

Tudo se apagava quando sofria o toque congelante da musa na ferida no braço.

O retorno abrupto da consciência há pouco era a passagem final. E, entre as duas, residia o cenário incompreensível das profundezas do delírio...

De nada adiantaria manter-se preso naquilo, pensou. Precisava seguir em frente a partir do ponto atual.

Portanto virou-se à bolsa onde guardava os pertences, apanhou uma roupa sem manga e se preparou a fim de seguir ao local designado.

Do outro lado da porta, Urânia encostava as mãos no metal frio, ao passo que mirava os pés descalços sobre o piso escuro.

A palma estremecida tomou a frente da linha de visão, carregando uma angústia nunca experimentada.

A gama de sentimentos, à qual não tinha costume de suportar, lhe oferecia lembranças borradas.

Um aperto insólito contraía seu peito, como se esmagasse o coração. Correntes de agonia conduziam seu espírito ao desequilíbrio absoluto.

“Aquilo foi...?”, a ponderação veio temerosa.

Evocou o instante da conexão aprofundada com o sangue do filho de Zeus, no procedimento de recuperação dos canais vitais.

Foi um mero instante. Uma fração de segundo, mais rápida que o pensamento. E o bastante para que ficasse gravado em sua memória.

“A caminhada desse menino... será muito dolorosa”, fechou as vistas com pesar, misturado a um leve tom de preocupação.

Apesar dos pesares, precisava manter a integridade no objetivo de encerrar aquele propósito.

Ao erguer a cabeça, inspirou bastante do ar gelado do cômodo e adiantou-se até a ala de treinamentos.

Após umas horas, Damon estava pronto para demonstrar os resultados de dois meses em treinamento.

De pé, à frente das tutoras, piscava com lentidão ao ser fitado de maneiras diferenciadas.

Enquanto Calíope esboçava o costumeiro sorriso através de uma feição acolhedora, Urânia contraía as sobrancelhas, em expressão de inquietação.

— Quando quiser, meu jovem.

Diante da permissão da Eloquente, o apóstolo assentiu e fechou as vistas.

Respirou com calma na busca pelo controle da ansiedade. Relaxou os punhos, livrando-se da tensão que os rodeava.

Permitiu, pela primeira vez, ao fluxo de energia construir o caminho habitual por entre os canais vitais.

O nervosismo pelo processo inicial passou a ser varrido da mente, à medida que experimentava a retomada do controle sem problemas.

Estalos azuis surgiram ao redor do corpo, consoante à aura elétrica crescente para todo o recinto.

A reação espantada veio da própria Astrônoma.

“Consigo sentir”, o descendente mais novo do Rei dos Deuses fitou as mãos iluminadas, extasiado com a sensação que tinha de volta após tanto tempo.

Nenhum refluxo foi constatado.

Tudo caminhava em perfeita ordem.

A eletrizante Energia Vital dimanava sem quaisquer adversidades.

Um sorriso surgiu no semblante do garoto, animado como nunca. Ao mesmo tempo, o rútilo da Bênção preencheu os globos oculares.

Num rápido piscar, as musas o perderam de vista.

Um singelo rastro, seguido por uma luminosa explosão cerúlea, as ultrapassou em altíssima velocidade.

A corrente de ar oriunda do deslocamento sublime as atingiu, junto de um breve estampido que ecoou pelo salão fechado.

Atordoadas, cada uma a seu medo, as deusas voltaram a encontrar o pupilo em frente ao altar escuro.

Circundado por descargas elétricas, entregava a certeza de que havia retornado.

O êxito da “operação” superara as expectativas não só do apóstolo, como das próprias musas.

E para além disso, a soma do árduo treinamento lhe capacitava a utilização aperfeiçoada dessa energia.

O planejamento geral foi um sucesso.

Ele estava ainda mais forte.

— Parece que encerramos definitivamente seu treinamento específico! — Calíope girou, esbanjando desenvoltura. — Meus parabéns! Você, de fato, cumpriu o que prometeu. Agora, irei verificar como estão os outros jovens.

Diante da piscadela da Eloquente, ele permanece em silêncio. Encarou outra vez as palmas cheias de calos e pequenas cicatrizes.

Nenhum resquício da autoridade do relâmpago, a fluir de dentro para fora do corpo, o afligia.

— Cadê aquela maldita? — indagou de súbito, antes da anfitriã deixar a sala. — Fala pra ela que quero outro teste. Pra valer agora.

Calíope sorriu interessada, o rosto virado sobre o ombro.

— Compreensível, eu diria. Irei convocá-la, igualmente.

Por fim, a Rainha das Musas deixou o cômodo.

Restavam a caçula das musas e o caçula do Olimpo.

Após constatar com todos os detalhes o triunfo da reabilitação, o apóstolo inibiu a manifestação vital, livrando-se dos estalos elétricos em volta de si.

Sem precisar resistir à influência pungente deliberada pela autoridade elementar do relâmpago, pôde exalar uma pesada lamentação.

“Daisy... Lilith...”, fechou o punho dominante, como em uma comemoração silenciosa. “Eu ‘tô de volta.”

A Astrônoma fitou o paciente curado com o canto dos olhos e não deixava de expressar receio em sua presença.

Desprovidos de palavras, conectaram as linhas de visão durante alguns segundos. Foi o bastante para que o rapaz percebesse sua inquietação.

Tomado por curiosidade, pensou um pouco consigo e achou melhor não a questionar.

Queria manter a boa relação com a responsável por curá-lo.

Desse modo, resumiu-se a realizar um rápido aceno de cabeça para a agradecer e caminhou até a saída da câmara.

Novamente, a musa expeliu um suspiro duradouro, como se permitisse a todo peso sair de dentro do peito.

Em contestação à respectiva personalidade, o filho de Apolo deixou o sorriso eufórico desmanchar em circunspecção.

Encarou o piso branco e se concentrou, preparando o trabalho da calorosa Energia Vital.

Ao seu lado encontrava-se a Festiva, fixada na meditação do rapaz.

Diferente dele, expressava a radiância de costume, ao passo que segurava a máscara alegre na mão destra. Na outra, portava um pequeno punhal.

Os olhos dele se abriram ao limite.

De seu corpo, uma onda de calor nasceu e se alastrou por todas as partes, capaz de elevar a temperatura local.

A musa, menor em estatura, pôde observar a aura dourada o envolver.

— Isso, isso! Continue assim! — falava mais baixo do que o costume.

Contornado pela calidez vital, ele pôs em prática os resultados alcançados na primeira fase do treinamento.

Fechou as mãos com força, inclinou a cabeça em direção a elas e passou a dosar o equilíbrio da liberação energética.

Procurou canalizar o fluxo constante nas luvas especiais, o ponto físico principal entre seu corpo e a energia interior.

Aos poucos, foi apto a conduzir um controle regulado sobre essa.

Tal medida era importante não só a fim de oferecê-lo segurança em momentos adversos.

Também o permitiria alcançar o segundo passo de sua evolução: aperfeiçoar a utilização da poderosa Arte do Sol.

Desse modo, seria capaz de avançar a novos patamares até cumprir com sua promessa.

Aquele seria o passo final dos aprendizados de dois meses com a Musa da Comédia. Em prol de alcançá-lo, entregou tudo que podia a si mesmo.

Chamas intensas nasceram em volta das luvas. O cintilar de ouro fez a noite parecer dia no salão encíclico.

Thalia esgazeou as vistas, boquiaberta de surpresa perante a elevação exponencial e balanceada.

No puro reflexo, girou a lâmina com destreza ao ser afligida pela pressão abrasante.

Levou a máscara branca à frente da face.

Escondida pela peça, alterou a expressão ao apontar a arma reluzente na direção do antebraço oposto.

— Está preparado!?

Gael a encarou prestes a se mutilar, apesar da confiança irradiada detrás da máscara representativa.

Tornou a fitar o dorso dos palmos, incapaz de dar a resposta positiva que a tutora aguardava.

Seus lábios tremularam, algo raro.

A feição determinada passou a ruir, junta do otimismo reunido até então.

Prestes a ser forçado a seguir em frente assim que o releixo afiado começou a afundar na carne dela...

— ‘Pera, ‘pera!! — A surpreendeu com o chamado. — Sinto que ainda não estou preparado!!

O fulgor de energia esvaiu-se das mãos, no mesmo momento que os braços da musa relaxaram.

Descendo a máscara do rosto e o punhal do braço apontado, recobrou a habitual expressão radiante antes de indagar:

— O que aconteceu agora!?

— Não sei!! Só sinto que ainda falta algo!!

— Hm... — Levou a mão da arma sob o queixo. — Bem, de qualquer forma, vamos continuar nos esforçando!!

— É claro!!

Observados pela fresta da porta, ergueram os braços ao alto no intuito de sustentarem alguma euforia.

Calíope assentiu contente ao acompanhar o progresso.

Confirmada a constatação que buscava, encostou o restante da porta e regressou pelos outros dois cômodos do aposento.

De volta ao corredor principal, escolheu o próximo alvo da averiguação prometida ao filho de Zeus.

Por meio de poucos passos, alcançou o segundo destino. Levou a mão até a maçaneta e abriu a porta, constatando o silêncio do primeiro quarto.

Seguiu adiante durante alguns segundos, até experimentar uma energia característica irradiar do recinto.

Repetiu o processo cuidadoso de há pouco.

Defronte o altar especial da Musa da Oração, a jovem ruiva-alaranjada postava-se de joelhos.

Observada pela anfitriã em questão, entrelaçou os dedos das mãos e fechou as vistas esmeraldinas com serenidade.

A tênue influência começou a se manifestar, fazendo as pontas dos fios lisos menearem pelo espaço.

Polímnia franziu a testa, ao passo que Helena voltou a despertar as vistas fixadas na estátua da mãe das musas.

Um brilho chamativo irradiou de cada íris em igual proporção, o bastante para ofuscar as velas acesas logo adiante.

De repente, os úmidos lábios róseos se moveram:

— Ó, deuses antigos... respondam minhas preces.

No instante que entoou a oração, o fluxo energético regressou ao invés de ser proliferado com maior intensidade.

O brilho da Bênção, a Oração da Verdade, permaneceu ativo durante um curto período, propício para o alcance do objetivo.

Levantou as sobrancelhas antes de fazer o mesmo com o rosto, virando-se à direção da passagem entreaberta.

O deslocamento assustado conduziu o foco da Sacra ao local em questão, de onde o filho de Poseidon surgiu.

Recebido pelas expressões inquietas, interrompeu o avanço recheado de dubiedade no semblante soturno.

Contudo não demorou a dar-se conta sobre a razão daquelas reações. Isso o fez puxar o restante da estrutura metálica, revelando a acompanhante inesperada.

Calíope apareceu, um dos braços em frente ao torso e o sorriso benévolo, à medida que acenava com a outra mão aberta.

— Então era você, Lío. — A voz da oradora soou lamentosa.

— Olá, querida irmãzinha! Eu queria bisbilhotar um pouco do prosseguimento dos jovens em vossos treinamentos, mas acabei falhando quando ele apareceu! — Moveu a palma à frente do rapaz prateado. — Me perdoem se atrapalhei em qualquer âmbito!

— Imagine. A parte essencial do garoto já foi concluída. Está utilizando o tempo livre em prol de aperfeiçoar suas nuances.

Às palavras bem elucidativas da Musa da Oração, a esmeraldina direcionou o semblante amigável ao apóstolo.

Ele desviou a atenção e exalou um fraco suspiro.

— E nossa outra jovem? Como está indo? — Mirou a garota ao lado de sua irmã, ainda atônita.

— E-estou chegando ao final...

A resposta hesitante de Helena despertou uma silenciosa suspeita na lilácea.

Nem Silver pôde ignorar a repentina inconsistência na fala dela. Os dois, todavia, adotaram a taciturnidade.

Em vista da leve apreensão originada no local, a Eloquente tomou a culpa para si por ter os atrapalhado num instante inoportuno.

— Entendo. Fico feliz por estarem alcançando os resultados desejados! — Gesticulou com a mesma mão para dar meia-volta depois. — Continuarei minha vista às demais câmaras. Boa sorte com o fim de seu treinamento!

— Obrigada.

Recebido o fraco agradecimento da apóstola, a musa alargou o sorriso e regressou pelo cômodo anterior.

Ao escutar o som da porta principal se fechar, Polímnia resolveu focar na Classe Iniciante.

Ela sustentava a mesma feição de sobressalto através do cenho franzido. As vistas entrefechadas miravam os joelhos dobrados sobre o solo.

— Aparentemente, você também já está em um novo patamar. — A voz da Sacra a pegou desprevenida. — Identificar a presença de minha irmã lhe assustou tanto assim?

Helena pressionou os lábios com força, a cabeça balançou para os lados. Como se não fosse o bastante, os olhos retornaram a se arregalar.

Levantou-se com pressa e avançou até a porta do primeiro aposento, com o intuito de acompanhar a Musa da Eloquência.

Próxima de apanhar a maçaneta com a mão trêmula, congelou por inteiro.

Silver a fitou pela retaguarda, inapto a decifrar as circunstâncias que a levavam a tamanho desequilíbrio, interior e exterior.

De qualquer maneira, algo estava bem claro na mente dele; Helena, naquele momento, encontrava-se assolada por um temor incomum.

Antes de ser questionada por qualquer um dos acompanhantes, entoou:

— Eu... senti algo diferente... — Os encarou ao virar metade do torso. O medo estampado na faceta confirmava: — Uma coisa muito ruim vai acontecer.

Calíope prosseguiu com destino ao grande salão principal, nas proximidades da entrada do templo.

Pela reta final do trajeto, escutou vozes abafadas ressoarem detrás de uma das portas em destaque.

A curiosidade a fez se aproximar da estrutura, que possuía o símbolo de um livro cinzelado no topo.

Esse foi o detalhe responsável por despertar o maior questionamento em sua cabeça. 

A princípio, achou estranho escutar vozes diferentes vindas dali. Ela ouvia vozes vindo dali. Ponderou sobre o quão assustador aquilo poderia ser.

Incapaz de conter a perplexidade, resolveu contemplar por conta.

Sem bater, moveu a maçaneta e empurrou a estrutura prateada, recebendo a forte iluminação do interior.

Logo quando se deparou com a grande biblioteca...

— Já disse que, se tocarem em meus livros, irei cortar suas mãos — proferiu a mulher sentada no trono isolado.

— Por favorzinho, irmã Clio — implorou a outra, que carregava uma flauta próxima dos seios. — Elas ao menos merecem um prêmio por terem concluído seu treinamento com êxito. E eu prometi que...

— Não faça promessas que não pode cumprir, Euterpe. — Interrompeu o sussurro encabulado. — Agora, saia daqui com essas duas.

Atentas à discussão das duas anfitriãs, embora cientes da intromissão silenciosa da rainha, as gêmeas entreolhavam-se.

Depois das falhas tentativas da Musicista em convencer a proprietária do aposento, elas assentiram em simultâneo.

Avançaram dois passos extremamente alinhados, bateram as palmas e chamaram a atenção de ambas, em virtude do eco espalhado.

De acordo com o planejamento, curvaram as cabeças em demonstração de respeito.

— Por obséquio, digníssima Historiadora. — A voz de Chloe soou, solitária, porém. — Oferecemos nosso juramento: jamais deliberaremos quaisquer riscos a vossas suntuosas criações.

Apesar do gesto e das palavras da ateniense, Clio planejava manter-se irredutível em sua decisão.

Sem ter muito o que fazer a respeito, Euterpe piscou um dos olhos na direção dela, mas de nada adiantava.

A musa de arcos ruivos-bronzeados abaixo das orelhas sustentava o silêncio da negação, válido desde o encontro inicial com aquelas jovens há pouco mais de dois meses.

No entanto ela já esperava por um empecilho irritante de se lidar...

— Por que não empresta alguns para elas? — A voz de Calíope invadiu o recinto, trazendo todos os olhares até sua presença. — Sei que desejam apenas conhecer um pouco de seu magnífico trabalho, Clio!

— Irmã Calí! — Euterpe sorriu contente em direção à mais velha.

Na sequência virou um semblante malicioso à carrancuda.

Embora desejasse permanecer com a primeira escolha, independentemente da interferência de sua irmã, a atenção voltou às meninas de cabeça baixa.

Em nenhum momento abandonaram a posição respeitosa.

Reconhecer isso lhe despertou um nervosismo incomum sobre o peito.

Uma das sobrancelhas se ergueu em resposta, à medida que os punhos cerravam contra os apoios laterais do assento.

Por meio de um suspiro, virou o rosto e enfim cedeu:

— Lhes oferecerei algumas horas, desde que não saiam daqui com nenhum livro ou me perturbem.

Com a decisão positiva, tanto as filhas de Atena quanto a ciana comemoraram, cada uma a respectiva maneira.

A Musicista também não conseguiu esconder o alívio por ter sido capaz de contrariar uma decisão da irmã circunspecta.

Ela ofereceu a mesma piscadela de antes à esmeraldina, que retribuiu numa rápida mesura.

As jovens apóstolas também agradeceram à Eloquente, por conta do gesto decisivo na tentativa de convencimento à bibliotecária.

— Elas são ótimas crianças, Clio. Trate-as bem, como nossa irmã sempre nos tratou!

Sem obter resposta verbal da semelhante, ainda que não as esperasse de todo modo, deu a volta e dirigiu-se ao corredor.

Após exalar um suspiro de alívio por ter alimentado a curiosidade, pôde seguir adiante.

Não levou muito tempo até chegar no destino.

Ao passar pelas portas pesadas, que liberaram um rangido estridente contra a quietude local, encontrou o bagunçado cabelo turquesa no caminho.

Por um átimo, pegou-se deslumbrada diante da cena.

Iluminada pelo parco luar, cercado de incontáveis estrelas pulsantes, Terpsícore encarava o topo inalcançável no centro do saguão.

Era o único local onde o teto não era coberto por pedra ou mármore, permitindo a observação do céu.

— A noite está bonita hoje — declarou em recepção à chegada da semelhante mais velha.

— Noites de verão. Não podia ser diferente, mas estão terminando! — Fechou as vistas num sorriso aprazível. — Dizem que é um prenúncio de climas ruins...

— Como foi o procedimento com nosso pequeno irmão?

— Tudo correu nos conformes! Ele está recuperado.

— Que bom. — A Dançarina semicerrou as vistas. — Em breve estaremos nos despedindo deles. Foram dois meses interessantes.

— Fazia tempo que eu não me divertia tanto. — Aproximou-se da companhia a passos curtos. — Eles são bons jovens, creio que o futuro possa ser muito próspero com todos!

— De fato...

A turquesa manteve o foco na abóbada distante, ao que Calíope enfim realizou o questionamento que desejava:

— Terpsícore. Por acaso você se encontrou com a jovem filha de tio Hades!?

Nenhuma resposta veio da musa num primeiro momento.

Quando a esmeraldina diminuiu um pouco mais a distância, a fim de contemplar o cenário altivo junto dela...

— Ei, irmã...

— Hm?

— Você não está sentindo... um cheiro estranho?

— Cheiro?...

Incapaz de compreender o embasamento para tal dúvida, a Eloquente procurou algum aroma em destaque no recinto.

Não alcançou uma resposta satisfatória, mas o clima de tensão somente cresceu.

Decidiu varrer os arredores por meio das vistas castanhas, até dar enfoque máximo à entrada do grande templo, localizada à frente de um pequeno corredor de acesso.

Sem encontrar qualquer detalhe chamativo, se manteve em alerta quanto a qualquer indício suspeito.

Isso até Terpsícore complementar:

— Me parece... cheiro que sangue...

Ao receber as palavras atônitas da esguia, Calíope experimentou um arrepio congelante subir a espinha.

Decidiu agir na direção da passagem principal, mas era tarde demais.

Uma explosão atingiu a entrada do templo, causando um tremor de elevada magnitude por quase toda a extensão do santuário.

Muitas das câmaras mais próximas da zona de impacto sofreram a oscilação vibrante com maior intensidade.

Ainda assim, todos os presentes receberam o aviso ameaçador.

Boa parte da estrutura ao lado esquerdo da entrada foi demolida.

Toda a pressão do lado de fora invadiu o saguão inicial, com uma onda de choque capaz de criar uma cortina de fumaça pelo recinto.

As musas presentes recuaram na hora exata, conseguindo evitar que fragmentos de destruição as atingissem de súbito.

Contudo o pior ainda estava por vir.

Uma silhueta sombria, de pé sobre os resquícios lascados da parede de aceso, foi enxergada pelas anfitriãs.

— Então, é aqui mesmo? — A voz assustadora parecia tocar a alma da dupla. As arranhava por dentro... — Realmente... Parece que é um prato cheio! Arlen acertou demais na escolha! Preciso parabenizá-lo quando eu matar todos aqui!!

As garras grotescas rasgaram a camada acinzentada. Um ar sórdido abraçou as musas acuadas, como se algo tentasse as esmagar.

Por muito pouco não perderam a capacidade de raciocínio ao enxergar o sorriso afiado da invasora.

O restante do corpo negro tomou a frente de toda a ruína na sequência.

A influência sanguinária, por fim, transmitia à Musa da Eloquência o aroma sanguinário discutido há pouco.

— Isso é ruim. Muito, muito ruim... — Semicerrou as vistas dominadas pela angústia.

A adversária mais impiedosa possível encontrava-se diante de seus olhos.

Os globos de trevas estampados na face, sedentos pelo derramamento de sangue divino, lhe entregavam a identidade da inesperada ameaça.

Uma das três erínias, Megera, iniciava o recado surpresa no templo das Musas...

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