Volume 7 – Arco 5
Capítulo 123: Imperadores das Trevas
Cercada pela melancólica escuridão, a jovem garota descansava sobre fragmentos de mármore, protegida do chão gelado pela coberta negra.
Remexia-se de um lado para outro.
Apesar do frio local, transpirava excessivamente pelo rosto pálido. Ficou assim por um tempo, até despertar assustada.
Agarrou o tecido escuro com força ao erguer o corpo de maneira abrupta.
Entre pesados arquejos, flexionou os joelhos e afundou a testa sobre eles. Ao passo que recuperava o fôlego, estalou a língua com frustração.
Embora ninguém estivesse presente, queria esconder a face contorcida a qualquer preço.
Isso deu-se pela percepção tardia das lágrimas, a verterem sobre as bochechas até gotejarem no empoeirado piso de pedra.
Amaldiçoou a si própria por permitir tamanha vulnerabilidade quanto àquelas emoções.
Entretanto manteve a posição por um novo período silencioso.
Quando controlou a respiração desiquilibrada, esfregou as vistas marejadas com força e se levantou do plano.
Por meio de um suspiro desgastado, tateou os fios ondulados soltos sobre os ombros. De volta à cama improvisada, começou a ajeitá-los.
Usava o próprio cabelo em prol de conceber o costumeiro penteado; dois grandes coques laterais, pouco acima das têmporas.
Pegou a bolsa ao lado, utilizada como travesseiro, e dela sacou um pequeno espelho.
Os olhos róseos fitaram o arranjo trabalhoso de mesma tonalidade, conferindo se havia algum erro em sua confecção.
Fitou o semblante amortecido pelo releixo trincado, sem reparar na longa passagem de tempo.
Só quando ruídos encovados cresceram pelo âmbito, foi puxada de volta à realidade. As batidas repetitivas vinham da porta de madeira, no outro lado do recinto.
Perdeu novos segundos antes de reagir, erguendo-se a fim de caminhar à passagem fechada.
Ainda atordoada pelo sono, puxou a maçaneta retangular.
A única — e fraca — fonte de luz jazia das chamas laranjas acesas na pequena lamparina, portada por uma das duas figuras paradas ante a entrada.
Ambos estavam cobertos pelos mesmos mantos negros, do pescoço aos tornozelos.
Embora a caligem posterior obstruísse suas identificações à curto prazo, as pupilas da menina se habituaram à luz, até descobrir quem eram.
— Achei que ia dormir até a primavera que vem, infeliz.
A grave voz feminina soou contra os ouvidos dela, como se a agredissem em conjunto às palavras severas.
Sua postura convencida, o queixo erguido e os braços cruzados sobre o tronco eram acompanhadas pelo olhar afiado.
Logo pôde reconhecer sua fisionomia.
O cabelo vermelho-escuro caía até o início das costas, num penteado que se dividia em duas grandes pontas curvilíneas, separadas na altura do pescoço.
O diferencial estava nas mechas de coloração preta. A primeira, sobre a sobrancelha canhota, alcançava o peito. Já a segunda, oposta a essa, caía à frente da face morena.
— Cala a boca, Hazel.
Antes da rósea reagir à provocação daquela que se chamava Hazel, o rapaz, também de entonação soturna, a repreendeu sem deixar de franzir o cenho.
Esse já era bem conhecido pela recém-despertada.
Os bagunçados fios traziam pontas achatadas pelas ondulações verde-escuras. As franjas repartidas cobriam parcialmente os olhos laranjas-escuros.
Em resposta, a acompanhante revirou as vistas avelã, sustentando o sorriso avantajado no semblante.
Já ele bufou em desprezo a tal reação. Tornou a focar a visitada, subindo um pouco a lamparina que carregava.
— Vista seu manto e venha conosco — murmurou. — Estão nos convocando.
— E por favor, não demore.
A convidada estreitou o olhar contra a sarcástica ruiva, porém resguardou-se em silêncio.
Fez nada mais que dar a volta e regressar às profundezas do miserável dormitório.
Enquanto os dois aguardavam no lado de fora, fechou a estrutura de madeira quebradiça a fim de obter um momento final de privacidade.
Encarou-se novamente na superfície de vidro rachada.
Os dedos apertaram as bordas enferrujadas, quase a ponto de destroçá-las por inteiro.
Através de breves lamentações, manteve o controle da onda quente que começava a lhe tomar o peito.
Devolveu o objeto ao recipiente de linho acinzentado e apanhou a capa do solo, a trajando rapidamente.
Passado todo o ritual silencioso, ajeitou os utensílios em um gancho do cinto enferrujado.
Com tudo pronto, retornou à saída.
A dupla visitante permanecia no aguardo, seus olhares cruzaram assim que o ranger da madeira se proliferou pela quietude.
Sem trocarem uma palavra, iniciaram a caminhada rumo à convocação.
Bluebell os seguiu, deixando os poucos pertences para trás dentro da construção.
A espessa neblina negra dominava toda a dimensão ausente de vida.
O cenário monocromático manifestava-se num ar lúgubre, sombrio e pesado. Nem mesmo o sol era capaz de se infiltrar.
Dia e noite tornavam-se um só.
O lar da eterna escuridão abrigava uma arquitetura, localizada acima do nível do mar.
Preenchida de inúmeras celas, na superfície ou no subsolo, carregava o aroma da morte que envolvia homens e mulheres, adultos e crianças, em profusão.
Pelos caminhos estreitos que davam acesso às mazelas dos calabouços, santuários menores, condenados pela destruição, residiam sob o silêncio.
Sombras esgueiravam-se por todos os cantos, inigualáveis nos trajetos que interligavam as alas do recinto.
Estruturas antigas e mal-acabadas remetiam a pequenas residências.
Era o exemplo de uma cidade abandonada; nada além de ruínas.
— Aliás, fiquei sabendo que ‘cês falharam em recrutar uma pessoa nesses dias. — A voz de Hazel soou solitária, seu tom um pouco debochado. — Tomou aquela bronca marota da mamãe, né?
— Pelo contrário. Ela pouco se importou. E meu irmão também. — Estreitou as sobrancelhas, sem fitar a sorridente. — Apesar de achar que seu aspecto combinasse bastante com todos que procuramos nesses meses. Parece que ela não queria sair daquele fim de mundo congelado.
— E pensar que você foi afugentado dessa forma, kahaha! Chega a ser engraçado só de imaginar a cena! — A garota levou uma das mãos ao rosto. — Aqueles dois irmãos eu até entendo, eles não me parecem muito fortes.
— Mas eles são. Seria bom não subestimar os recrutas. Você também já foi uma.
— Uma não; a primeira! Que honra vocês devem ter sentido por me encontrarem! — Bateu as palmas uma única vez. — Depois de aparecerem, todos pomposos pra eles, perder os últimos meses recrutando fracotes. É cada uma...
Bluebell escutava à conversa dos dois sem se pronunciar.
Não que fosse inapta a cortá-los, apenas não queria fazê-lo. Nada da pauta adiante importava a ela.
Só conseguia reter a raiva crescente por escutar a convencida destilar suas palavras sobressalentes enquanto se gabava.
Se pudesse fazer um desejo nesse momento, esse seria sair de perto dela e retornar ao silêncio.
— E você!? Soube que também foi nesse recrutamento que acabou falhando! Será que a culpa é sua, afinal? — A voz dela a alcançou, destroçando todas as vontades retraídas.
A garota procurava ignorar, mas a língua coçava para dar-lhe uma resposta à altura.
— Você é convencida demais pra quem não sabe da história toda, garota — Keith retrucou por ela.
— Eu não preciso saber, meu bem! Vocês são os que querem tanto acabar com todos os deuses. Nossos objetivos são proporcionais, mas não são iguais. E já deixei isso claro várias vezes.
Nenhuma retruca veio deles após a última declaração, provinda de um mussito risonho.
Em meio ao novo silêncio, Bluebell apenas desviou o olhar. Não demorou até os três alcançarem o destino.
O templo negro, de proporções altivas, parecia se unir à neblina dominante, espalhada ao além.
Logo na entrada, se depararam com uma figura completamente coberta pelo manto característico, à exceção da metade inferior do rosto negro.
— Olha ele aí! O sem identidade que gosta de cortar o barato dos outros! — Hazel resmungou, levantando o queixo.
Também desinteressado em gastar saliva, deu a volta a fim de conduzi-los pelas enormes portas que se abriram com lentidão.
Ser ignorada não a afetava. Ela, pelo contrário, achava tudo mais engraçado daquela maneira.
O grupo avançou pelo primeiro corredor durante um curto período, até que chegaram no salão principal.
Na sequência do trajeto, residia outra passagem enorme, onde havia a marca de um olho no centro de uma estrela com as pontas curvadas.
Diante da estrutura chamativa, três silhuetas encontravam-se repousadas sobre assentos de pedra.
Uma delas se postava na direção do acesso fechado, enquanto as outras duas eram dispostas nos flancos esquerdo e direito, em respectivo.
Perante as presenças escondidas na penumbra, os visitantes mantiveram a postura.
O único a se ajoelhar, prestando o devido respeito, foi o guia encapuzado. Nenhuma reação foi emanada daquele âmbito.
Ao erguer levemente a cabeça na direção do trio em pé, pôde-se verificar sua íris marrom fuzilar aqueles que se recusavam a seguir o procedimento.
Todos eles aparentavam desinteresse em tal gesto.
— Pois bem. — A primeira voz, soturna, se pronunciou. — Cá estão os convocados para a seleção final, visando a grande jornada em prol do primeiro passo para a realização de nosso objetivo. Já tivemos uma conversa pessoal a fim de decidirmo-nos quanto aos demais representantes.
— Portanto, declaremos aqui e agora: — A segunda voz, de timbre menos impactante, ecoou na sequência. — O líder da expedição será Keith. Ele será o responsável por conduzir os demais ao caminho que...
— Podemos acabar logo com isso!?
A terceira voz, tão medonha e gutural comparada às últimas, interrompeu todo o discurso e provocou um novo silêncio.
Bluebell levantou as sobrancelhas só de escutar o tom austero que reverberou por todo o saguão, capaz de trazer calafrios a sua espinha.
Com o novo dilema estabelecido, o quarteto recém-chegado experimentou a elevação da influência pútrida, responsável por fazer um aroma agressivo infestar suas narinas.
Do breu, a figura sorridente surgiu.
Seu cabelo encardido possuía um coque superior, tão escuro quanto os olhos banhados em negrume.
As armaduras acima dos seios, unidas a fragmentos de tecido conectados aos braços cheios de espinhos, chamaram a atenção.
No entanto enormes garras curvadas no lugar dos dedos, semelhantes a lâminas prontas para abater qualquer tipo de presa, ganharam a fisionomia assustadora.
A personificação da monstruosidade arrancava o fôlego daqueles que se postavam à sua frente.
Nem mesmo Hazel conseguia controlar os nervos diante da superior. Despercebida, engoliu em seco, mantendo ainda assim o sorriso contorcido no rosto.
Bluebell inclinou o seu para baixo de maneira involuntária.
Manteve a atenção nos pés descalços, dava o máximo a fim de não encarar as vistas intimidantes daquela que se aproximava a passos curtos e pesados.
— Sempre com a mania de interromper os outros, Megera — reclamou a voz interrompida.
— Todos os seus detalhes insignificantes já foram decididos! É só questão de tempo agora. Por que não relaxa um pouco, irmãzinha!?
Ante a retruca da avançada, manteve-se quieta em resumo de uma lamentação quase inaudível.
Acima do descontentamento com as atitudes imprevistas, restou o foco em elucidar o objetivo do qual as anfitriãs compartilhavam.
Dada a deixa, a primeiríssima tornou a se pronunciar:
— Pela queda dos deuses, iniciaremos os movimentos finais na próxima lua nova. Tal mandamento decisivo partilha das alegações concebidas por nós, as Erínias, em comum acordo com nosso grande aliado.
— Então, a próxima lua nova será daqui a quantos dias?
Megera moveu a atenção até a jovem de cabeça baixa, que sentiu o frio irradiado por sua encarada e demorou alguns segundos para processar a resposta.
Sentindo um aperto indescritível no peito, reuniu coragem em prol de entoar:
— Estimadamente... dez dias...
Apesar da voz ter soado afônica, foi o bastante para que a interrogadora assentisse positivamente.
— Hm, é muito tempo, não acham!? — Virou-se até as outras duas erínias, ainda sobrepostas pela escuridão. — Ei, vocês não se importariam se eu saísse para brincar um pouco até lá, certo!?
— O que pensa em fazer, Megera?
— Irei delegar um recadinho final aos petulantes. Apenas isso! — Apontou na direção do encapuzado. — Arlen, seu moleque! Encontre o melhor local para que eu possa fazer uma festinha! Você os observou durante todo esse tempo que perderam enquanto recrutavam novos peões, não foi!?
— Como quiser.
O homem de nome enunciado voltou a erguer a postura. Ao estalar os dedos da mão destra, uma repentina ruptura se originou no espaço vazio.
O vórtice negro cresceu em questão de segundos, deliberando uma nova pressão vital dentro do salão.
Antes de atravessar o portal mágico, no intuito de cumprir com o pedido da erínia, trocou um rápido olhar com a garota de cabelo rosa.
O gesto chamou a atenção da dupla em paralelo, mas nenhuma explicação veio a seguir.
Por meio de um aceno de cabeça quase imperceptível aos demais, saltou pela passagem especial, desaparecendo assim que essa se fechou.
Bluebell percebeu os lábios levemente abertos, portanto os pressionou de volta.
O olhar firme, alheio às sobrancelhas contraídas, denotou o entendimento do recado.
Enquanto isso, a segunda erínia soou enervada:
— Megera, até quando faltará tanto com escrúpulos desta maneira? Realmente está decidida a confrontar os deuses antes de nosso plano ser concretizado? Quer arriscar pôr tudo a perder?
— Deixe de ser insuportável, Tisí! Eu não vou nos peixes grandes. Não ainda!
As presas indicaram a posição da desafeta. A língua passeou sobre os lábios rachados.
Defronte a euforia descomedida da mulher, o único rapaz remanescente do recinto tentou aproveitar a oportunidade:
— Então...?
— Nem pensar, você não vai! — Megera o interrompeu no ato. — Depois do que aconteceu naquele deserto, sua mãe não ficaria tão contente, sabia? Eu ainda considero o emocional dela, ainda que não pareça!
Descontente, ele desviou o olhar e escondeu o estalo de língua.
A reação infantil tirou uma risada interior da ruiva ao lado, enquanto a rósea permanecia compenetrada nos sinais sutis oferecidos por Arlen.
Desprezava todos os detalhes nos arredores.
Nem mesmo a presença absurda daquelas três criaturas a afetava mais.
Encontrava-se mentalmente distante de qualquer situação que a envolvesse naquele lugar.
— Eu já tenho alguém em mente pra chamar. Pode ser divertido, então...! — Megera avançou por entre o trio até a saída do recinto.
— Mege...!
— Deixe-a, Tisífone. — A voz da central interrompeu a exasperada. — Prendemos Megera por tempo demais. Forçá-la a deixar de espairecer agora só tende a balançar o equilíbrio.
— Irmã Alecto...
— De todo modo, suas ações não irão nos prejudicar em um curto prazo. Confio nas decisões que ela delegou a Arlen para encontrar o elo menos problemático desta situação. Assim, não precisaremos nos preocupar.
— Entendo. Se a irmã Alecto diz, então não irei impedi-la.
Com a austeridade imposta pela óbvia líder da tríade, Tisífone resfolegou-se de novo no respaldo do assento.
Sem ter mais o que discutir quanto as atitudes da irmã problemática, as duas tornaram a focar nos três jovens em destaque no centro do ambiente frio.
— Para finalizarmos a reunião... — Alecto ergueu a mão direita, como se rasgasse a neblina. — Os convocados nestes últimos meses devem se preparar para a partida. Então, nós daremos início ao plano derradeiro...
Pela primeira vez à vista de todos os presentes, ela despertou seu sorriso sujo.
— Logo, o destino há de ser tomado por nossas mãos. E uma nova Era virá a nascer...
Estava anunciado o grande propósito das trevas.
Visando entregar seu recado final aos Deuses Olímpicos antes dos desenrolares decisivos, Megera deixou o templo.
Partiu à uma ala oposta da grande prisão, sem se importar com qualquer apelo contrário.
Ao encontrar o que desejava, em meio às construções condenadas, sequer bateu à porta.
Somente a derrubou com um chute poderoso e entrou no âmbito desprovido de iluminação.
Os olhos, tão negros quanto, varreram o cômodo na caça ao alvo designado na própria cabeça.
Sem medo, avançou alguns passos, conforme as pupilas se acostumavam à nova tonalidade de escuridão.
— Preciso de você para um projeto que deve se interessar!
A grave voz ecoou do sorriso avantajado, responsável por despertar o som que desejava ouvir em retorno.
A sequência de tênues sibilares cresceu, à medida que os olhos detrás da camada sombria se abriram.
A silhueta repousada sobre uma pequena estrutura de mármore foi avistada, assim como as movimentações delgadas em torno de sua cabeça.
Quando contatou as esferas magentas reluzirem como pedras preciosas em meio ao clima lúgubre, a erínia revelou os dentes afiados.
A maldição da Górgona parecia ser suportada pela visitante, porém aquilo não a surpreendeu.
— E o que seria?
À pergunta de Medusa, um vórtice espacial criou-se na entrada aberta da construção, impedindo que a criatura assustadora respondesse de antemão.
Às vistas das mulheres, o homem encapuzado desceu pela passagem. Arlen experimentou o peso das encaradas mútuas contra sua presença, por isso manteve distância.
Protegido pelo capuz que cobria metade da face, reconheceu não só a mulher-serpente a alguns metros, como também o menino que a acompanhava desde o encontro na Floresta Negra.
Ambos também o identificaram sem muitas dificuldades.
A amaldiçoada estreitou as sobrancelhas ao fitá-lo, sempre circunspecto apesar das precauções tomadas contra sua petrificação ocular.
Por fim, a dona da casa também virou seu foco, sedenta pelo que ele tinha obtido de informações relacionadas ao pedido de outrora.
Não demorou até o misterioso abrir a boca:
— Identifiquei a presença dos descendentes divinos que foram enfrentados no deserto e na cidade de Argos. No momento, eles estão localizados em um templo remoto da Ilha de Rodes. Não pude averiguar com precisão. Os protetores daquele lugar são bem perspicazes...
— E é possível atacar!?
— Se formos rápidos e sorrateiros, criando um efeito surpresa, sem dúvidas. Contudo, chamar a atenção será inevitável.
— Assim que eu gosto... — A feição da mulher tornou-se deleitosa. — O que me diz, górgona!?
As garras salientes de Megera estenderam-se contra o rosto de Medusa, que manteve o silêncio num primeiro momento.
Paciente, fitou a soturnidade estampada em seu semblante, agora com destaque às ínfimas escamas douradas das bochechas às laterais dos olhos.
— Eu. Irei.
Todavia, foi a voz fina do garoto em paralelo que soou, surpreendendo ambas as monstruosidades.
— Crisaor...?
A mulher-serpente sentiu um leve aperto na garganta, capaz de fazê-la engasgar-se ao pronunciar o nome dele.
Vidrada na íris cor de mel que o pequeno carregava, percebeu a melancolia da respectiva aceitação
— Eles. Mataram. Tia Eury. Tia Sthe.
Por meio daquelas palavras pausadas, quase incompletas, Crisaor expôs todos os sentimentos cravados no peito.
E aquilo também despertou o desgosto que amargava seu paladar, levando-a a cerrar os punhos sobre as pernas.
Os dois trocaram olhares durante um tempo, espantando a erínia por conta ineficácia da petrificação também decair sobre ele.
Ao constatar sua convicção em se vingar pelas górgonas mortas em combate, optou por acompanhá-lo.
Não que fosse resistir ao convite antes, mas toda e qualquer dúvida restante tornou-se pó.
Tendo a resposta final em mãos, levantou-se do mármore e, no mesmo ritmo das víboras agitadas na cabeça, mirou a emissária do convite.
— Iremos contigo.
Incapaz de controlar a ânsia pela diversão a seguir, a criatura sorridente esgazeou as sobrancelhas ao dizer:
— Partiremos amanhã. Esteja pronta!
Dirigiu-se à saída e deixou a dupla invitada no salão vazio, acompanhada por Arlen.
Sem olhar para trás, soltou risadas presas entre os dentes salientes.
Quando a reunião de mais cedo terminou, logo após a discussão envolvendo as superiores, Bluebell aproveitou para retornar ao cômodo improvisado.
Outra vez cercada por silêncio e caligem, rumou ao topo da construção parcialmente destruída.
Em suas mãos, o espelho com bordas enferrujadas refletia sua feição inexpressiva.
Naquele momento, remetia ao confronto vivenciado meses atrás, na cidade de Argos.
O reencontro com a filha de Ártemis, sua declaração, o beijo que tirou dela... para no fim, ser impedida de finalizá-la graças à insistência dos outros adversários.
A mente travou na chegada do responsável por lhe afugentar: o controlador dos fios de aço que, de quebra, resistiu a sua magia gravitacional.
Porém o que ganhava destaque, acima de tudo, era o momento em que seus lábios entraram em contato com os dela.
A sensação acalentadora fez os dedos indicador e médio tatearem a região carnuda. As vistas pesadas quase se fechavam.
Todas as lembranças a carregavam até momentos ainda mais distantes...
Um tempo remoto, no qual jamais poderia regressar.
A rigidez no semblante desmontou. Em troca da breve placidez, permitiu aos cílios se unirem por um tempo.
Os sentimentos que a dominavam esporadicamente deveriam ser apagados de seu âmago.
A favor de alcançar o destino desejado, precisava renegar a afabilidade que tais lembranças traziam.
Ainda assim, não conseguia se desfazer do objeto em mãos, a fonte mais acentuada dessas memórias.
Enfim todas as divagações foram varridas.
A influência pesada do vórtice espacial que surgiu em sua retaguarda lhe devolveu à circunspecção.
O homem encapuzado deixou o espaço aberto e, ao se estabelecer sobre uma haste de pedra derrubada, murmurou:
— Diga-me o que deseja.
Em resposta, a garota se levantou e proferiu:
— Preciso que me leve até o templo da Deusa da Lua.
Um momento de silêncio separou ambos, que não encontravam uns aos outros pelo olhar.
Ignorando esse fator, Arlen prosseguiu:
— Você foi uma das escolhidas para ir à jornada. Se perder tempo indo até a cidade de Éfeso...
— Eu preciso disso. — Ela franziu a testa. — Para alcançar minha justiça...
De olho nos punhos cerrados da menina, um deles contra o espelho já rachado, o homem assentiu em silêncio.
— Fui até a ilha onde você estava, após seu conflito em Argos — explicou. — É para lá que Megera deve ir. Irei levá-la e, em seguida, irei cumprir seu desejo. Por isso, prepare-se e tenha ciência de que isso é um segredo nosso.
— Deixe-me perguntar. — A voz dela o impediu de prosseguir com a abertura de um novo portal. — Por que você... decidiu me ajudar?
Por um tempo, ele aparentava pensar na resposta, mas ela saiu naturalmente em seguida:
— Meu irmão me falou sobre você. Sobre quando e como te encontrou. — Estalou os dedos, o vórtice negro ganhou forma aos poucos. — Todos os recrutados passaram por experiência semelhantes ou equivalentes às suas. E, pelo que sei, você só irá nos atrapalhar caso não resolva essa pendência. Portanto, considere que estou lhe ajudando por um capricho meu.
Ela permaneceu quieta, ao que ele complementou:
— Irei levá-la até onde deseja. — Corrupiou-se em direção à abertura negra. — Encontre a resposta que procura.
Finalizado o último recado, ele atravessou a magia espacial, até que a passagem distorcida voltou a apresentar o espaço original.
Novamente solitária, entranhada na névoa negra, a garota respirou fundo.
Pensativa, voltou a se sentar no bloco superior da morada maltrapilha. Mais uma vez encontrou-se no outro lado do vidro.
Passou os dedos da mão livre sobre a rachadura, responsável por dividir simetricamente o centro da superfície refletora.
Para ela, era uma maneira de lembrar sobre o que precisava fazer. Uma maneira de devolvê-la a disposição de vencer todos os obstáculos impostos pela própria mente.
A imagem da filha da Deusa da Lua não escapava de seus pensamentos.
Não importava se fosse proveniente do passado a ser esquecido ou do último encontro; sempre padecia da mesma experiência.
— Se eu não me livrar dela de uma vez, não poderei fazê-los pagar... — murmurou entre os dentes, atônita.
Eu voltarei.
As exatas palavras ditas antes de partir sob a forte chuva de Argos lhe despertou uma ansiedade indescritível.
Mal pôde contar a passagem dos dias, como se fosse levada por um turbilhão veloz em direção à uma cachoeira infinita.
O instante do prometido retorno estava ao alcance das vistas. Ter ciência disso a fazia arrepiar em tremulações das cabeça aos pés.
“Eu sou forte... E vou apagá-la de uma vez”, guardou tal determinação dentro do peito. “Minha única fraqueza...”
Sem perceber, fez uma nova trinca surgir no espelho, graças ao peso dos dedos frios.
— Heh...
Do lado de fora, Hazel a espreitava, com um sorriso interesseiro e olhos semicerrados.
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